Opinião

O impedimento e a suspeição de árbitros

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24 de junho de 2021, 19h21

Uma das principais vantagens da arbitragem é a possibilidade de indicação pelas próprias partes dos árbitros que julgarão a lide, o que se faz de acordo com a especialidade e competência técnica dos julgadores sobre a matéria envolvida no objeto da demanda. Se no âmbito do Poder Judiciário é impossível que o juiz togado se especialize nas mais variadas áreas do Direito, certo é que, no procedimento arbitral, as partes possuem a faculdade de indicar os julgadores que reputam deter maior conhecimento sobre o tema debatido na arbitragem, por mais específico que seja.

A indicação do árbitro, entretanto, é um tema sensível da arbitragem, que gera diversas celeumas doutrinárias e, na prática, tem originado litígios sobre a legitimidade e a validade da sentença arbitral. Isso porque, enquanto o magistrado possui uma presunção de imparcialidade conferida pelos procedimentos legitimadores da instituição estatal, o fato de as próprias partes indicarem um terceiro para solucionar a controvérsia referente aos seus direitos patrimoniais disponíveis pode gerar dúvidas e desconfianças.

A importância e a sensibilidade da indicação do árbitro estão consubstanciadas no fato de a confiabilidade que os julgadores inspiram nas partes ser o principal atributo inerente à pessoa do julgador e constituir elemento fundamental para o sucesso do processo arbitral. Afinal, o laço da confiança faz com que o resultado do julgamento seja aceitável, em tese, inclusive para a parte sucumbente, que participou da escolha de parte dos julgadores, nos casos em que o painel de árbitros envolveu três ou mais profissionais, ou escolheu, ao menos, no caso de árbitro único, as regras que nortearam a sua nomeação. Justamente por esse motivo, o artigo 13 da Lei de Arbitragem dispõe que "pode ser árbitro qualquer pessoa capaz e que tenha a confiança das partes". Nesse sentido, Tercio Sampaio Ferraz Junior leciona que a confiança é mecanismo fundamental na diferenciação entre árbitro e juiz e, consequentemente, entre o processo judicial e a arbitragem.

Mas em que consiste, na prática, o tão importante elemento da confiança? Segundo ensinam Rodrigo da Guia Silva e Vitória Neffá, "para o preenchimento do atributo de confiança, o árbitro deverá, além de ser honesto e probo, julgar sem a influência de relações externas ou interesses no resultado do litígio. Ao lado honestidade e da probidade situam-se, portanto, a independência e a imparcialidade". Ou seja, para que o árbitro possa exercer a função jurisdicional de que lhe revestem as partes, sem suspeitas ou desconfianças, é necessário que, além da ética, a sua independência e imparcialidade estejam garantidas.

A independência se verifica por meio de critérios objetivos, que demonstram que o árbitro não está vinculado profissional ou pessoalmente com qualquer das partes envolvidas na lide; estaria, pois, livre de pressões externas que possam interferir no seu julgamento. Por outro lado, a imparcialidade — que não se confunde com a inalcançável neutralidade — está relacionada a critérios subjetivos de aferição, tendo em vista que diz respeito ao estado de espírito do julgador, que não deve possuir interesse, diretos ou indiretos, no objeto da lide.

A fim de que seja realizado efetivo controle ético dos árbitros, o artigo 14, §1º, da Lei de Arbitragem determina que "as pessoas indicadas para funcionar como árbitro têm o dever de revelar, antes da aceitação da função, qualquer fato que denote dúvida justificada quanto à sua imparcialidade e independência". Esse dever de revelação, que se estende durante todo o procedimento, desempenha papel relevantíssimo para a arbitragem, uma vez que se presta a assegurar, ao fim e ao cabo, a confiança das partes em relação ao árbitro indicado. Tamanha é a importância do dever de revelação ao instituto da arbitragem que Thomas Clay, professor da Universidade de Versalhes, leciona que a revelação é a pedra angular do regime jurídico da independência ao árbitro.

Com efeito, o dever de revelação imposto ao julgador decorre de um dever maior, que é a obrigação de resultado que ele assume ao aceitar o múnus público, qual seja, de prolatar uma sentença que solucione a lide validamente, que possibilite o cumprimento espontâneo da parte que restar vencida, que esteja protegida de eventuais impugnações e que não apenas seja justa, mas que aparente sê-la, o que se alcança por meio da inexistência de dúvidas justificadas a respeito da falta de confiança em relação ao seu prolator.

Por dúvida justificada, entendem-se os fatos ou circunstâncias que podem provocar desconfiança aos olhos das partes sobre a independência ou imparcialidade dos árbitros. Em razão da complexidade da matéria, a International Bar Association editou guidelines que orientam quais situações devem ser reveladas, de acordo com o nível de influência dessas circunstâncias na confiança depositada no julgador. Conquanto as diretrizes perfaçam uma importante orientação para identificar e avaliar situações de potencial conflito de interesses, trata-se de mera soft law. É certo que o dever de revelação exige do árbitro uma avaliação isenta daquilo que, do ponto de vista de uma terceira pessoa razoável, seria digno de ser notado por ser capaz de abalar a confiança necessária no julgador.

Não é todo e qualquer fato revelado, contudo, que é capaz de romper, com relevância jurídica, o laço de confiança entre partes e o árbitro. A avaliação dos fatos capazes de gerar dúvida justificada deve ser realizada em consideração ao árbitro e às circunstâncias específicas do caso concreto. Até porque o mais importante no dever de revelação é que as partes tenham ciência de todas as circunstâncias relevantes que possam macular a confiança que depositam no julgador. Assim, de posse de todos os fatos e circunstâncias que possam, em tese, enfraquecer a independência e imparcialidade, as partes podem decidir sobre a sua escolha, sendo lhes facultado, inclusive, renunciar às hipóteses de impedimento ou suspeição.

Mas e se ocorrer uma falha no dever de revelação? Nesses casos, um fato que deixa de ser revelado pelo árbitro deve ser verificado de forma razoável, proporcional e objetiva, a fim de analisar se a circunstância posteriormente descoberta seria capaz por si só, ou não, de influenciar a independência e imparcialidade do julgamento.

Muito embora possa ser afastada pela vontade das partes, não se pode olvidar que há hipóteses, contudo, em que a Lei de Arbitragem presume, objetivamente, a falta de independência e imparcialidade do árbitro. Dispõe, em seu artigo 14, caput, que, "estão impedidos de funcionar como árbitros as pessoas que tenham, com as partes ou com o litígio que lhes for submetido, algumas das relações que caracterizam os casos de impedimento ou suspeição de juízes, aplicando-se-lhes, no que couber, os mesmos deveres e responsabilidades, conforme previsto no Código de Processo Civil".

A partir da leitura do mencionado dispositivo, é possível constatar que a Lei de Arbitragem não faz distinção entre impedimento e suspeição, conferindo a todas as hipóteses previstas nos artigos 144 e 145 do Código de Processo Civil o mesmo efeito, qual seja, a obrigação de afastamento do árbitro. Pode-se afirmar, portanto, que as causas de suspeição valem como impedimento para o árbitro. A esse respeito, Carlos Alberto Carmona ensina que a distinção entre impedimento e suspeição fica destituída de efeitos práticos na arbitragem.

Em outras palavras, a menos que as partes decidam de forma contrária, na ocorrência de qualquer dos casos dispostos nos artigos 144 e 145 do Código de Processo Civil, mesmo que o árbitro esteja apto para o múnus, no que toca aos aspectos objetivos, ligados à sua qualificação técnica e intelectual, restará o mesmo impedido por força de caráter subjetivo que vincula o exercício da função, qual seja, a desconfiança.

Fora dessas hipóteses, todavia, não há que se falar em impedimento, tendo em vista que, conforme ensinou Luiz Olavo Baptista, "tal como o faz o Código de Processo Civil em relação aos juízes, a Lei de Arbitragem estabelece os casos de impedimento (e suspeição) do árbitro como numerus clausus".

Com efeito, os motivos de afastamento do árbitro estão vinculados ao sentido intersubjetivo da confiança, de modo que, mesmo nos casos previstos nos artigos 144 e 145 do Código de Processo Civil, as partes podem optar por depositar confiança na pessoa e indicá-la como árbitro. No entanto, não é permitido às partes que criem outros motivos — notadamente após a prolação de alguma decisão que lhe tenha desfavorecido — para além do rol taxativo do Código de Processo Civil, pois não seria razoável que os critérios para impedimento ou suspeição de árbitros fossem mais rígidos e rigorosos do que aqueles previstos para juízes, se a atividade desempenhada por ambos é equivalente e de idêntica relevância social.

Além disso, as matérias referentes aos casos de impedimento na Lei da Arbitragem, ao contrário do que ocorre com o Código de Processo Civil, não são de ordem pública. Evidência desse fato é a possibilidade de as partes poderem renunciar ao impedimento constatado. Assim, não há que se falar em ação rescisória na arbitragem, e o artigo 20, caput, da Lei nº 9.307/1996 estabelece que "a parte que pretender arguir questões relativas à competência, suspeição ou impedimento do árbitro ou dos árbitros, bem como nulidade, invalidade ou ineficácia da convenção de arbitragem, deverá fazê-lo na primeira oportunidade que tiver de se manifestar, após a instituição da arbitragem". A não manifestação da parte a esse respeito, portanto, faz precluir o direito à impugnação ao árbitro.

Quanto ao momento de impugnação do árbitro, o artigo 32, inciso II, da Lei da Arbitragem prevê a possibilidade de ação anulatória da sentença arbitral nos casos em que o julgamento emanou de quem não podia ser árbitro. Ou seja, se, após prolatada a sentença, as partes descobrem um fato relevante que macule a independência ou imparcialidade do árbitro, desde que esteja previsto no rol dos artigos 144 e 145 do Código de Processo Civil, lhes é facultado ajuizar ação anulatória, uma vez que o julgador impedido não poderia ter prolatado sentença válida e eficaz.

São cada vez mais comuns as ações anulatórias de sentença arbitral ajuizadas com fundamento no artigo 32, inciso II, da Lei da Arbitragem. Não se pode negar o importante papel dessa medida na afirmação e preservação da confiança e da integridade do procedimento arbitral. Todavia, é igualmente necessário impedir táticas indevidas de reabertura do mérito de uma causa, com o objetivo de protelar o litígio, motivada pela insatisfação com o julgamento consignado em sentença arbitral válida e legítima. Por esse motivo, pesquisa publicada no ano de 2016 demonstrou que "o Poder Judiciário tem mostrado resistência a intervir na nomeação de árbitros ou na escolha de instituições arbitrais por alegada falta de independência ou imparcialidade".

No âmbito da Câmara de Comércio Internacional (CCI), pode-se observar que são poucos os casos nos quais se decidiu pela não confirmação ou pela destituição do árbitro, o que somente ocorre nas hipóteses em que há evidente relação de prestação de serviços relativamente recente entre o julgador, o seu escritório de advocacia e a parte na arbitragem. Já as colaborações materializadas no plano científico, mediante a realização de trabalhos em comum meramente intelectuais, não implicam impedimento.

Por todo o exposto, é salutar que, no caso concreto, as impugnações decorrentes de alegado impedimento do árbitro sejam baseadas em fundamentos razoáveis, por meio de critérios racionais, a fim de evitar oportunismo das partes, notadamente quando apresentada após a prolação da sentença arbitral.

Dessa forma, exige-se, no controle a posteriori, que a parte que alega a falta de independência e imparcialidade do árbitro comprove que o julgador efetivamente agiu de modo parcial durante a arbitragem, com o objetivo de favorecer uma das partes, pois, caso contrário, não há razões para a anulação da sentença arbitral.

 

Referências bibliográficas
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