Opinião

A responsabilidade extracontratual do Estado: o julgamento do Tema 366/STF

Autor

  • Camila Martins Vieira Martins

    é procuradora federal em atuação no Núcleo de Atuação Prioritária em Processos Finalísticos da Procuradoria Regional Federal da 4ª Região e pós-graduada em Advocacia Pública pela Escola da Advocacia-Geral da União.

23 de junho de 2021, 6h34

Nas últimas décadas tem se observado a multiplicação de decisões judiciais reconhecendo a responsabilidade do Estado por danos decorrentes da conduta omissiva do agente público. A responsabilidade objetiva do Estado possui amparo constitucional no §6º do artigo 37 da CF/88. Na hipótese, a doutrina e a jurisprudência há muito pacificaram o entendimento de que se aplica a teoria do risco administrativo, que exige relação de causa e efeito entre a atividade administrativa e a lesão [1]. A questão que exsurge é amplitude do nexo causal necessário à configuração da responsabilidade, e foi exatamente neste crucial ponto que o Supremo Tribunal Federal adentrou quando do julgamento do Recurso Extraordinário n°136.861/SP, Tema 366, cuja decisão transitou em julgado em 9/2/2021.

Sob o distorcido fundamento da existência de previsão constitucional, o Estado brasileiro vem sendo acuado à posição de segurador universal [2]. A interpretação ampliativa e irrestrita da responsabilidade objetiva e da teoria do risco administrativo, sobretudo quando se trata de conduta omissiva, tem servido como fundamento de incontáveis decisões judiciais. O custo do acumulado de condenações desse tipo representa perigo aos cofres públicos, posto tratar-se de significativo montante que aproveita a apenas pequeno grupo em detrimento da coletividade.

Significa dizer que projetos de educação, saúde e infraestrutura, por exemplo, deixam de ser atendidos ou têm verba reduzida em virtude da necessidade de pagamento de indenizações muitas vezes milionárias a particulares, sob o pretexto da responsabilidade objetiva do Estado.

A decisão proferida pela Suprema Corte no julgamento do Tema 366 alterou o rumo que se vinha dando ao tratamento da matéria.

Na hipótese, foi negado provimento ao recurso de particular que pretendia ser indenizado por danos supostamente decorrentes da omissão do Estado no dever de fiscalizar estabelecimento que vendia fogos de artifício clandestinamente. Após dez anos da admissão da repercussão geral, os ministros do Supremo Tribunal Federal decidiram que a responsabilidade do Estado por omissão na fiscalização imprescinde de "violação de um dever jurídico específico de agir".

Consta de forma expressa no voto proferido pelo ministro Alexandre de Moraes, relator para o acórdão, que "o poder público não tem a mínima condição de fiscalizar 100% de algo que é clandestino". Os ministros Ricardo Lewandowski, Gilmar Mendes e Roberto Barroso afirmaram que "o Estado não pode ser um segurador universal".

Ao decidir neste sentido, a corte criou espaço para reflexão sobre a amplitude do conceito de "obrigação de fiscalizar" para fins de imputação de responsabilização civil do Estado por omissão. A já consolidada teoria do risco administrativo teve interpretação remodelada, com a inclusão do requisito "violação de um dever jurídico específico de agir".

A necessidade de dever jurídico específico de agir delimita as hipóteses em que a omissão do Estado pode ser alvo de responsabilização extracontratual. No precedente citado, o Plenário do STF afastou a responsabilidade do município de São Paulo por explosão ocorrida em loja de fogos de artifício que funcionava sem as devidas licenças, porquanto ausente o dever jurídico específico de agir, "que ocorrerá quando for concedida a licença para funcionamento sem as cautelas legais ou quando for de conhecimento do poder público eventuais irregularidades praticadas pelo particular" [3].

Então o que seria o dever jurídico específico de agir?

Dever jurídico, segundo o vernáculo do direito, "é o comando imposto pelo direito objetivo, através do qual o sujeito deve observar determinada conduta, sob pena de sanção, trata-se de gênero do qual obrigação é espécie" [4]. Em outros termos, é imposição de determinada conduta pelo ordenamento jurídico.

Se o ordenamento jurídico contém norma prevendo que A tem de fiscalizar os canteiros da cidade, então há dever jurídico imposto a A. Isso, contudo, não significa dizer que toda adversidade ocorrida em canteiro sujeite A à responsabilidade por danos advindos do evento.

Interpretação da novel decisão do STF permite concluir que, além da previsão no ordenamento (dever legal), é indispensável que haja imposição específica de agir no caso concreto, o que abarca a necessidade de análise da existência de reais condições de o Estado fiscalizar o evento que originou o dano.

Por certo que o poder público não possui condições de fiscalizar todas as atividades praticadas à margem da legalidade. Esse fato real deve ser considerado no momento da aferição da responsabilidade.

Dessa assertiva não resulta que o poder público pode aleatoriamente alegar ausência de condições de fiscalizar para se esquivar da responsabilização por danos decorrentes da conduta omissiva, mas somente que a realidade fática deve ser avaliada em cada situação. É preciso voltar-se ao mundo real, posto que nele os fatos ocorrem, e não no reino abstrato das normas.

No ponto, o ministro Ricardo Lewandowski destacou em seu voto que a "casa de fogos se instalou clandestinamente, portanto sem conhecimento da prefeitura". E concluiu que "não há como imputar-se à prefeitura, à municipalidade, a responsabilidade, sobretudo porque não há notícia nos autos de que a vizinhança ou alguém do povo houvesse feito uma denúncia à prefeitura ou à polícia de que estariam sendo estocados fogos de artifício no porão ou na garagem dessa residência".

Conforme destacado pelo ministro, a responsabilidade por danos decorrentes de acidente ocorrido em comércio que funciona na clandestinidade não é de plano imputável ao Estado. Por outro lado, a existência de denúncia ou de outra provocação que levasse ao poder público o conhecimento dos fatos poderia atrair sua responsabilidade porquanto traria para o mundo real a exigibilidade de conduta fiscalizatória específica, caracterizando omissão capaz de configurar o nexo causal.

É momento de aprofundar as reflexões sobre a interpretação do §6º do artigo 37 da Carta Magna, sobre os contornos da teoria do risco administrativo, amplitude do nexo causal exigido para configuração da responsabilidade objetiva do Estado e repercussões práticas da aplicação da opção adotada.

Há certo comodismo permeando a análise do tema, o que é até certo ponto compreensível frente às desigualdades e às vastas carências que assolam o país.

As consequências dessa "inércia interpretativa", todavia, são nefastas, e em última análise resultam em prejuízos ao adequado desenvolvimento da nação, em todas as esferas.

Todos os direitos possuem um custo, que é ser arcado pelo Estado.

Para garantir o direito à educação é necessário investimento em escolas, professores, material didático. O direito à segurança, da mesma forma, imprescinde da contratação de força policial suficiente e adequadamente treinada, além de viaturas, armamento e equipamentos de proteção. Já o direito ao transporte apenas pode ser garantido mediante a existência de infraestrutura de tráfego capaz de atender à demanda da população.

A exemplo dos direitos citados, todos os demais direitos individuais, coletivos e sociais têm um custo. O orçamento do poder público para sua promoção e garantia, contudo, é escasso.

Considerando que o mesmo orçamento responsável por patrocinar todos os direitos é também o que custeia o pagamento das indenizações por responsabilidade imputada ao Estado, fundamental que o tema seja analisado sob o prisma da opção política frente à limitação financeira.

Tratando-se de conflito experimentado por diversas nações, convém fazer um paralelo com o direito norte-americano. Na obra "O custo dos direitos" [5], Sunstein e Holmes destacam que "só em 1987, o município de Nova York pagou US$ 120 milhões em despesas relacionadas a ações de responsabilidade civil; Em 1996 esse valor já subira para US$ 282 milhões".

Como resposta à drenagem dos orçamentos locais, relatam que todos os grandes municípios do país estão tentando implementar reformas capazes de modificar as condições de sua responsabilidade em causas cíveis.

Os autores concluem o raciocínio com a seguinte pergunta: "Por que os juízes, que enfocam unicamente a causa que têm diante de si, têm o poder de decidir que o dinheiro dos contribuintes seja gasto em indenizações de responsabilidade civil e não, por exemplo, em livros didáticos, gastos com a polícia ou programas de nutrição infantil?" [6].

No Brasil, de acordo com o Mapa Anual de Precatórios do Conselho Nacional de Justiça (CNJ), em 2019 União, estados e municípios deviam, por determinação judicial, R$ 183,6 bilhões em precatórios [7], o equivalente a 2,5% do Produto Interno Bruto (PIB) do mesmo período [8].

O orçamento para a área da educação executado pela União em 2020 foi de R$ 88,08 bilhões [9], enquanto para a segurança pública foram destinados R$ 10,72 bilhões [10].

A análise conjunta dos números apresentados demonstra que não está havendo razoabilidade na interpretação do tema. A magnitude dos valores pagos em virtude de condenações do poder público, sem qualquer planejamento, projeção ou lastro [11], põe em risco a execução de políticas fundamentais ao progresso do país.

Para melhor elucidar o tema, convém apresentar alguns julgados recorrentes nos tribunais pátrios.

No julgamento da Apelação Cível nº 5003162-58.2018.4.04.7203, o Tribunal Regional Federal da 4ª Região condenou o Departamento Nacional de Infra-Estrutura de Transportes (DNIT) ao ressarcimento dos danos materiais sofridos por particular em decorrência de acidente de trânsito causado por animal (vaca) na pista de rolamento de rodovia federal [12]. Na hipótese, a autarquia argumentou, que se trata de caso fortuito, pois era impossível prever a existência do animal na pista. Outrossim, defendeu que a responsabilidade pela guarda do animal é de seu proprietário, que deve ser responsabilizado por eventual desídia. A condenação foi mantida.

Em outro caso, o Tribunal de Justiça de Santa Catarina manteve decisão de primeira instância que condenou o município de Rio do Sul ao pagamento de danos morais em favor do autor da ação, em virtude da constatação de que a assinatura do particular, engenheiro, foi falsificada em alteração de projeto de ponte pênsil no município. O próprio acórdão refere que não houve demonstração da atuação direta de agente público na falsificação, mas considera que a supervisão do contrato pelo município atrai a responsabilidade objetiva no ente, sendo suficiente à condenação [13].

As decisões ilustram a forma como a simples presença do ente público no contexto do conflito tem servido para atrair o dever de indenizar.

Todavia, é inarredável que haja congruência com a realidade ampla experimentada pelo país, não podendo ser admitida análise isolada e casuística. Se é verdade que o Estado deve ser responsabilizado pelos danos decorrentes de sua conduta, também procede o argumento de que o custo das indenizações pagas é suportado pela coletividade, o que demanda uma análise cuidadosa e responsável dos fatos, além de interpretação restritiva dos pressupostos de incidência do dever de ressarcimento.


[1] Conforme a doutrina de Cavalieri Filho se "o Estado, por seus agentes, não deu causa a esse dano, se inexiste relação de causa e efeito entre a atividade administrativa e a lesão, (…) o poder público não poderá ser responsabilizado". (CAVALIERI FILHO, Sérgio. Programa de responsabilidade civil. São Paulo: Malheiros, 2008. p.253).

[2] Expressão cunhada por Bandeira de Mello, Curso de direito administrativo.  22. ed. São Paulo: Malheiros, 2007, p. 979.

[3] Transcrição parcial da ementa de julgamento do Recurso Extraordinário n. 136.861/SP.

[5] Sunstein, Cass R.; Holmes, Stephen. O custo dos direitos . WMF Martins Fontes. Edição do Kindle. Posição 257.

[6]   Sunstein, Cass R.; Holmes, Stephen. O custo dos direitos . WMF Martins Fontes. Edição do Kindle. Posição 264.

[11] Lastro no sentido de negócio: recurso de que se dispõe para atender às necessidades do próprio negócio (SILVA, Placido e. Vocabulário Jurídico, 12ª ed.. Rio de Janeiro: Forense editora).

[13] Apelação Nº 0300211-88.2019.8.24.0054/SC, TJSC, 5ª Câmara de Direito Público, relator desembargador Hélio do Valle Pereira. Julgamento em 13/04/2021.

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