Contas à vista

Os 500 mil mortos por Covid e os estudos de Direito Financeiro

Autor

  • Fernando Facury Scaff

    é professor titular de Direito Financeiro da Universidade de São Paulo (USP) advogado e sócio do escritório Silveira Athias Soriano de Mello Bentes Lobato & Scaff Advogados.

22 de junho de 2021, 8h00

Spacca
Sábado passado atingimos a lastimável cifra de 500 mil mortos pela pandemia de covid-19, em conjunto com a de 18 milhões de infectados. Transmito meus pêsames a cada família enlutada e um fraterno abraço de solidariedade aos sobreviventes, vários dos quais ainda apresentando sequelas em sua saúde por longo tempo.

O intuito desta coluna é didático, e vinculado ao Direito Financeiro. O que se pode aprender, nesse âmbito do Direito, em razão dessa pandemia? Cedo ou tarde ela passará – infelizmente, no Brasil, está ocorrendo de forma tardia, à custa de muitas vidas e muita saúde.

Um primeiro aspecto interessante de análise diz respeito à reserva do possível em contraposição às escolhas trágicas, âmbito próprio da análise jusfinanceira. Tratei disso nesta ConJur muito antes da pandemia (aqui). Como se sabe, existe a reserva do tecnicamente possível e a reserva do financeiramente possível. No âmbito técnico, identifica-se que, nos primeiros meses da pandemia, não havia vacina que combatesse o vírus — logo, naquele período havia reserva do tecnicamente possível.

Porém, quando as primeiras pesquisas apontaram para a produção de vacinas cientificamente adequadas, e elas passaram a ser oferecidas ao mundo, o problema financeiro despontou. Alguns países fecharam contratos com diversos laboratórios adquirindo antecipadamente, a bom preço, número superior ao de sua população. Outros países não conseguiram sequer comprá-las, limitados em suas finanças. Outros, mesmo tendo dinheiro para esse gasto, decidiram não fechar estes contratos — para estes, não cabe alegar a questão da reserva do financeiramente possível — é o caso do Brasil.

Aqui desponta o outro conceito correlato, o das escolhas trágicas, desenvolvido por Calabresi e Bobbit1, na década de 70 do século passado. Diz respeito às opções políticas necessárias ao bom governo de um país. Um exemplo desses autores: porque o serviço militar é realizado aos 18 anos e não aos 17 ou aos 19? Isso implicava em modificações relevantes na vida de um contingente de pessoas que, pouco antes, eram convocadas pelo governo norte-americano para lutar no Vietnã.

No caso brasileiro, especificamente nesse período pandêmico, vê-se que a opção não foi pela compra antecipada de vacinas, mas por medicamentos de eficácia não comprovada cientificamente, como a cloroquina. Havia dinheiro, o que afasta o argumento da reserva do financeiramente possível, mas a escolha trágica foi pela aquisição cientificamente errada. Mais poderia ser dito, referente a outras compras governamentais ou renúncias fiscais, como para a aquisição de armamento — aspectos financeiros do problema —, mas a ideia entre os dois conceitos, para fins didáticos, considero suficientemente exposta.

Outro aspecto que pode ser estudado diz respeito às transferência obrigatórias, tema próprio do federalismo financeiro. É inegável que a União transferiu recursos aos Estados e Municípios, bem como adiou o recebimento de seus créditos, decorrentes da dívida pública que estes possuem com aquele, o que foi formalizado pela Lei Complementar 173/20. Fica a questão jusfinanceira: tratava-se de uma transferência obrigatória ou voluntária? Não se trata de um aspecto de menor importância, pois esse conceito faz toda a diferença. Se for considerada como obrigatória, a União apenas cumpriu a lei, sem nenhum voluntarismo ou facultatividade. O TCU entendeu que esses recursos são obrigação incondicional da União para concretizar os objetivos da Emenda Constitucional 106/20, logo, são transferências obrigatórias (aqui), sem caráter de voluntarismo. Ou seja, foi apenas cumprida a lei. Recordo que teci críticas aos critérios de repartição desses recursos, quando ainda estavam sendo discutidos, mas a decisão política tomou outros rumos (aqui).

Um terceiro aspecto interessante diz respeito aos limites da CPI da covid-19, que mescla direito financeiro e constitucional. Poderia uma CPI constituída no âmbito federal fiscalizar estas transferências a Estados e Municípios, para analisar se foram cumpridas as regras de aplicação dos recursos? No Mandado de Segurança 24.312, que foi relatora a Ministra Ellen Gracie, no já remoto ano de 2003, impetrado originalmente no STF pelo TCE-RJ contra o TCU, ficou decidido que, por ser verba do Estado, ele seria competente para exercer essa atividade fiscalizatória. Logo, somente uma CPI estadual poderia analisar eventuais desvios de recursos dessas verbas que obrigatoriamente são estaduais, pois foram transferidas pela União em caráter obrigatório. No 40º encontro semanal realizado no âmbito da Mesa de Debates do IBDF isso foi bastante discutido e ficou patente essa assertiva (aqui).

Muitos outros aspectos poderiam ser explorados, e não me furto a retornar ao tema, mas, para não alongar este texto, menciono apenas um quarto. Caso sejam identificados culpados pelo atraso na aquisição de vacinas, que é um dos objetivos da CPI em curso, será possível responsabilizá-los financeiramente? Afasto desde logo a questão da responsabilidade política, que possui outra dimensão; tratarei apenas da responsabilidade jurídica, na fronteira entre o direito constitucional, administrativo e financeiro.

A matéria é regulada pelo art. 37, §6º, da Constituição, que estabelece os parâmetros atuais da responsabilidade pública, ao dizer que as pessoas jurídicas de direito público responderão pelos danos que seus agentes, nessa qualidade, causarem a terceiros. Ou seja, quem responde pelo dano é o Tesouro Público (federal, estadual ou municipal), e não o patrimônio das pessoas individualmente consideradas.

Todavia, consta ainda da norma que é assegurado o "direito de regresso" contra o responsável nos casos de dolo ou culpa. Isso aponta para a possibilidade, escassamente utilizada, de que, uma vez condenado o Tesouro Público, este promova uma ação contra o agente público responsável pelo dano causado e já indenizado, caso tenha agido de modo doloso ou culposo para a realização daquele evento. O intuito da norma é o de proteger o credor, que, sob regras anteriores, via-se diante de um devedor insolvente, e o Tesouro não é insolvente, por definição.

No vetusto ano de 1988, quando defendi minha Tese de Doutorado (aqui), já criticava teoricamente esta solução normativa, entendendo que os recursos do agente causador do dano, em caso de dolo ou culpa, deveriam ser utilizados para pagamento da indenização, até seu limite, devendo o Tesouro ser chamado a indenizar o saldo, e não como consta da norma, que obriga a indenização prévia pelo Tesouro, e só após o exercício do direito de regresso. Mas, é o que consta da norma, gostemos ou não.

Enfim, muita coisa há para aprender com esse período pandêmico, e as interseções do Direito Financeiro não se esgotam com o Direito Tributário, objeto de obra específica, lançada semana passada (aqui), que tive a honra de coordenar com Sergio André Rocha e Gustavo Lanna Murici. Existe um mundo a ser pesquisado e muito a ser debatido e aperfeiçoado em nosso ordenamento jurídico.

Renovo meus sentimos às famílias dos vitimados pela covid-19, no inaceitável número de 500 mil, o qual, infelizmente, tende a crescer, e aos cerca de 18 milhões de infectados, cujas sequelas na saúde espero que sejam leves e transitórias.


1 Calabresi, Guido; Bobbitt, Philip. Tragic Choices. The conflicts society confronts in the allocation of tragic scarce resources. New York: Norton & Company, 1978.

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    é professor titular de Direito Financeiro da Universidade de São Paulo (USP), advogado e sócio do escritório Silveira, Athias, Soriano de Mello, Guimarães, Pinheiro & Scaff Advogados.

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