Tribuna da defensoria

Um "presente de grego"

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22 de junho de 2021, 8h00

Em 20/5/2021, como "um presente de grego" extemporâneo ao dia do defensor público, o procurador-Geral da República (PGR) ingressou com a ADI 6.852 cujo propósito foi afastar o poder de requisição defensorial, vez que pediu a inconstitucionalidade dos artigos 8º, XVI, 44, X, 56, XVI, 89, X e 128, X, da Lei Complementar 80/94.

No presente artigo, tentaremos demonstrar o equívoco das razões alinhavadas pelo PGR para justificar a sua inadequada conclusão. Em síntese, foram quatro os argumentos por ele trazidos, associados incoerentemente a quatro princípios: isonomia, inafastabilidade da jurisdição, contraditório e devido processo legal.

Há, ainda, uma linha mestra em que baseou toda a sua arguição: a suposta equivalência entre as funções desempenhadas por advogados públicos e privados e pelos defensores públicos. Sabidamente, essa correspondência foi superada antes mesmo da EC 80/14, que separou a Advocacia da Defensoria Pública em seções constitucionais distintas. A premissa é completamente equivocada, atestando uma incompreensão absoluta da multifuncionalidade e das peculiaridades da atividade defensorial, as quais a diferenciam verdadeiramente da função advocatícia.

Já tivemos a possibilidade de defender essa distinção. Em obra escrita com Jaime Miranda e Muniz Freire, dissemos:

"Para exemplificar, a advocacia mantém vínculo privado com seu cliente. Lado outro, o defensor mantém relação de direito público com o usuário da assistência jurídica. Mais: as funções institucionais das atribuições são assaz distintas. Ao passo que a advocacia é delineada pela Lei 8.906/94, a defensoria o é pela multicitada Lei Complementar 80/94.
Essa confusão muito provavelmente deriva da própria disposição constitucional que previa, em seção única: 'Da advocacia e da Defensoria Pública'. Isso, aliado à reduzidíssima definição de defensor público como o 'advogado dos pobres', faz
 equivocadamente  concluir o exercício da advocacia.
De mais a mais, em que pese o artigo 3º, §1º, do Estatuto da OAB dizer que a Defensoria Pública exerce atividade de advocacia, trata-se de lei ordinária e o artigo 134, §1º, da CF diz ser atribuição de lei complementar a organização das defensorias" [1].

Já em obra escrita com Zouein, explicamos que "a amplitude da atuação da Defensoria em muito extrapola a mera assistência judiciária". Pontuamos que "a Defensoria Pública possui uma atuação considerável na esfera extrajudicial, solucionando conflitos e prevenindo demandas judiciais, além de atuar como instituição de transformação social, sobretudo pela educação das pessoas em direitos humanos". Além disso, "a assistência jurídica da Defensoria alcança não apenas pessoas economicamente hipossuficientes, mas, também, os vulneráveis jurídicos/circunstanciais (artigo 72 do CPC) e o grupo de hipervulneráveis (dotados de uma hipossuficiência organizacional)", este a englobar idosos, crianças, minorias, pessoas com deficiência, mulheres em situação de violência doméstica, gerações futuras etc. Adicionalmente, "a Defensoria possui legitimidade [institucional] para o manejo de instrumentos e demandas de natureza coletiva". Além disso, sua assistência jurídica "deve ser necessariamente integral (artigo 5º, LXXIV)" [2].

Também anotamos que "a Defensoria possui uma atuação estratégica que visa à promoção emancipatória de direitos, seja na já mencionada atuação extrajudicial, seja como interveniente processual na condição de custos vulnerabilis, instauração de Incidentes de Resolução de Demandas Repetitivas (IRDRs) (artigos 977, II, do CPC) ou suscitação de Incidentes de Assunção de Competência (IACs) (artigo 947 do CPC)", bem como na "atuação como órgão da Execução Penal (artigo 61, III; 81-A e 81-B da LEP)". Salientamos "a autonomia funcional, administrativa e financeira da Instituição, aliada à independência funcional dos defensores públicos", pontuando, ademais, que estes são investidos na carreira por meio de concurso público de provas e títulos. Disso deriva a legitimação da atuação funcional dos defensores, o que não alcança qualquer membro da advocacia pública ou privada (afinal, são carreiras distintas) [3].

Ainda sobre o assunto, é relevante rememorar o voto do ministro Gilmar Mendes, na ADI 4.636:

"A diferença entre a atuação de um advogado (particular) e a de um defensor público é clamorosa, perceptível inclusive antes do advento da EC 80/14. O primeiro, em ministério privado, tem por incumbência primordial a defesa dos interesses pessoais do cliente. O segundo, detentor de cargo público, tem por escopo principal assegurar garantia do amplo acesso à justiça, não sendo legitimado por qualquer interesse privado. Tais características não afastam, obviamente, a prestação de serviço público e exercício de função social pelo advogado, tampouco dispensa o defensor do interesse pessoal do assistido. O ponto nevrálgico é a definição das finalidades transcendentes. O defensor público tem assistido, e não cliente. A ele é vinculado pelas normas de Direito Público, e não por contrato. Sendo assim, a função dos membros da Defensoria Pública é, evidentemente, marcada pela impessoalidade, porquanto o assistido não escolhe seu defensor, tampouco o remunera diretamente. Ao contrário do cliente, que gratifica o trabalho feito com honorários, tendo poder de escolha sobre o profissional de sua preferência, trazendo à função do advogado feição personalíssima. Via de mão dupla, advogados podem escolher suas causas e seus clientes. defensores públicos estão adstritos às funções institucionais, não podendo, de forma alguma, atuar fora delas ou receber honorários. Pertinente ressaltar que as funções institucionais e prerrogativas da Defensoria Pública são previstas sempre em benefício dos assistidos, e não dos membros da instituição".

Diante disso, conclui-se que, apesar contribuírem para o Estado Democrático de Direito e possuírem importância ímpar, mostra-se extremamente equivocado identificar as referidas carreiras. Ninguém, de boa-fé, cogitaria equiparar a advocacia à função ministerial pelo fato de os membros de ambas as carreiras possuírem capacidade postulatória. Nessa esteira, tampouco seria crível arguir a inconstitucionalidade da titularidade da ação penal pública do Ministério Público por "quebra da isonomia" com a advocacia ou com a atividade defensorial.

Entretanto, é preciso ir ainda mais além. Se as carreiras de defensor público e da advocacia não se confundem, não faria sentido invocar o princípio da isonomia para esvaziar uma prerrogativa defensorial. Diferentemente do que supôs o PGR, a incidência da isonomia justificaria  e não infirmaria  a prerrogativa defensorial de requisição, na medida em que, em sua feição geométrica, exigiria o trato desigual de carreiras desiguais. Não existiria razão suficiente para um trato idêntico de carreiras distintas, ao passo que a diferença entre as funções defensorial e advocatícia seria determinante para o tratamento diferenciado.

Contudo, essa não é a única razão suficiente para o tratamento diferenciado dispensado à Defensoria. Na verdade, o poder de requisição defensorial, contra o argumento do PGR, não desequilibra a balança, antes a reequilibra. Ele compensa o déficit de pessoal e estrutura, ainda predominante nas Defensorias Públicas em todo o país [4], evidenciado pelo próprio telos do artigo 98 do ADCT e reconhecido pelo Supremo, por exemplo, no RE 135.328. Além disso, compensa a hipossuficiência informacional e a marginalização social enfrentadas pelos assistidos da Defensoria, as quais dificultam (por vezes inviabilizam) o acesso a eventuais documentos, necessários à propositura de uma demanda ou à defesa de direitos.

É simplesmente inviável que o defensor diligencie em todos os órgãos para obter os documentos necessários para a defesa de seus assistidos. Isso implica uma espécie de denegação oblíqua do acesso à justiça:

"Para aqueles que possuem melhores condições econômicas é mais fácil conseguir, mediante remuneração, que profissionais busquem ou produzam as provas que necessitam para a instrução processual. (…) Para o economicamente necessitado, no entanto, tudo é mais difícil. Como o defensor público não possui condições de realizar pessoalmente as diligências probatórias que antecedem a propositura da ação judicial, o hipossuficiente econômico acaba sendo obrigado a buscar sozinho todas as provas necessárias à postulação de seus direitos. Nessa peregrinação em busca de documentos e informações, a própria locomoção do indivíduo carente para determinados lugares muitas vezes é dificultada por problemas financeiros ou pela impossibilidade de deixar a atividade laborativa. Além disso, a reconhecida limitação intelectiva gerada pela marginalização social dificulta a obtenção de provas pelo hipossuficiente, que na maioria das vezes não sabe o que pedir, a quem pedir e, nem mesmo, como pedir.
No fim, sem recursos materiais e desprovido de cultura, o litigante pobre acaba literalmente perdido e sem condições de buscar o lastro probatório necessário para pleitear adequadamente seus direitos.

Justamente para evitar esse quadro de denegação oblíqua de justiça, o ordenamento jurídico garante ao membro da Defensoria Pública a possibilidade de requisitar exames, certidões, perícias, vistorias, diligências, processos, documentos, informações, esclarecimentos e providências, como forma de garantir ao necessitado econômico a paridade de armas na relação processual" [5].

Justamente pelos argumentos antes apresentados, também se mostra incoerente invocar a inafastabilidade da Jurisdição, o contraditório e o devido processo legal para fundamentar a pretensão manejada na ADI 6.852.

Em primeiro lugar, o poder de requisição defensorial consiste em um dos instrumentos voltados justamente à viabilização do acesso à ordem jurídica justa [6]. Logo, ele não fragiliza, antes robustece a inafastabilidade da jurisdição. Em segundo lugar, esse poder fortalece o contraditório, sobretudo se concebido como simétrica paridade, na medida em que viabiliza uma assistência jurídica mais efetiva dos direitos dos hipossuficientes.

Em terceiro lugar, a feição procedimental do due process of law é igualmente fortalecida pelo incremento da ampla defesa (e contraditório) em favor dos assistidos pela Defensoria. Já a feição material do referido princípio, sinônimo de razoabilidade, simplesmente não infirma – antes fortalece as razões pelas quais a Defensoria Pública deve ser munida do poder de requisição. Irracional, ou contrário à coerência interna do sistema jurídico brasileiro [7], seria justamente negar à Defensoria esse poder, e isso com base na premissa equivocada de que o defensor público nada mais seria que um "advogado do pobre". Essa premissa, como já explicamos, olvida a multifuncionalidade da atuação defensorial.

Por essas razões, são pueris as alegações do PGR, no sentido de ser o poder de requisição dotado de autoexecutoriedade, imperatividade e presunção de legitimidade, pelo que prescindiria inclusive de autorização judicial. Disso derivaria justamente a suposta violação à inafastabilidade de jurisdição. Contudo, se o poder de requisição defensorial violaria o princípio da inafastabilidade da jurisdição no sentido acima proposto, também o faria o poder de requisição ministerial. Evidentemente, esse argumento não convence, pelo fato de que a força da requisição não impede ou inviabiliza o acesso à jurisdição.

Além disso, asseverar que o poder de requisição é dado somente a algumas "autoridades", como os membros do Ministério Público, significa não só menosprezar a atuação constitucional da Defensoria Pública. Trata-se de claro argumento "de autoridade", sem base legal ou constitucional, que, ademais, apenas contribui para o enfraquecimento do acesso à justiça dos vulneráveis.

De mais a mais, como reforço argumentativo jurisprudencial, o PGR usou a ADI 230/RJ, julgada em 1º de fevereiro de 2010. O grande detalhe é que o referido precedente antecede as ECs 69/2012, 74/2013 e 80/2014 que, sabidamente, reforçaram a autonomia prevista na EC 45/2004, além de trazerem, de forma cristalina, a autonomia das Defensorias do Distrito Federal e da União. Logo, trata-se de precedente com ratio decidendi ultrapassada, a exigir necessário overruling.

E não é só. Ainda naquela ADI, a ministra Cármen Lúcia cravou: "Advogado requer, quem requisita é quem exerce a função judicante ou a condição de advogado da sociedade, que é o papel do Ministério Público, este, entretanto, com os limites legalmente estabelecidos". Hoje, contudo, é cediço que as funções de amicus communitas, custos vulnerabilis e ombudsman são exercidas também pela Defensoria. O próprio STJ já reconheceu a possibilidade de defesa, pela Defensoria Pública, dos necessitados organizacionais (REsp 1.449.416/SC).

Essas funções credenciam a Defensoria como instituição de defesa da democracia e dos direitos fundamentais, como bem preconizou o artigo 134 da CF/88, na redação que lhe atribuiu a EC nº 80/2014. Nesse sentido, a defensoria não se limita à defesa de interesses individuais, incumbindo-lhe, "como expressão e instrumento do regime democrático, fundamentalmente, a orientação jurídica, a promoção dos direitos humanos e a defesa, em todos os graus, judicial e extrajudicial, dos direitos individuais e coletivos, de forma integral e gratuita, aos necessitados". Logo, também ela atua em prol da sociedade, ou, mais precisamente, de sua camada vulnerável.

O defensor público não busca  nem nunca buscará  ser um "super advogado", como afirmaram os ministros do STF, na época da ADI 230. Do mesmo modo que jamais pretenderá ser um membro do Ministério Público, um advogado público ou particular ou, até mesmo, um magistrado. Seu único objetivo é cumprir suas funções institucionais. Aliás, o poder de requisição, nos termos da lei, se presta para "esclarecimentos e demais providências necessárias à atuação da Defensoria Pública".

Logo, admira que, num contexto de verdadeira perseguição de grupos minoritários, ataques antidemocráticos frequentes às instituições, desmontes ambientais, exortações a golpes militares e descaso com a Pandemia do Covid-19, motivos que deveriam mobilizar ações incisivas do chefe do Ministério Público da União, esteja esta autoridade assim tão preocupada com o poder de requisição defensorial. Será gratuito tamanho ataque à Defensoria Pública? Seria esse um "presente de grego"?


[1]FREIRE, Muniz; MIRANDA, Jaime; FIGUEIREDO, Rafael. Manual da Defensoria Pública, editora Mizuno e Ouse Saber, 2021, p. 186.

[2] DUARTE; ZOUIEN. Idem, p. 27-29.

[3] Vide ROGER, Franklyn; ESTEVES, Diogo. Princípios institucionais da Defensoria Pública. 2. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2018. p. 848 et. seq.

[4]Para mais detalhes, vide DUARTE; ZOUIEN. Idem.

[5] ROGER, Franklyn; ESTEVES, Diogo. Idem, p. 775.

[7] Nesse sentido, vide CRUZ, Álvaro Ricardo de Souza. Hermenêutica Jurídica e(m) debate. 1ª ed. Belo Horizonte: Fórum, 2007.

Autores

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    é assessor jurídico na Procuradoria da República de Minas Gerais, especialista em Direito Constitucional pelo IEC-PUC-MG, mestre em Direito Público na PUC-MG e professor de Introdução ao Estudo do Direito e Teoria da Constituição no Izabela Hendrix.

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    é advogado, coautor do Manual da Defensoria pela editora Mizuno/Ouse Saber, especialista em Processo Penal.

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