Opinião

A desestatização portuária e a segurança jurídica dos arrendatários

Autor

  • Heloísa Armelin

    é advogada no escritório Tojal Renault Advogados pós-graduada em Direito Administrativo pela FGV Direito SP e em Direito Constitucional pela PUC-SP.

22 de junho de 2021, 18h14

Na última década, a soma dos investimentos públicos e privados em infraestrutura no Brasil não passou de 2% do PIB. O recomendável, para fins de crescimento sustentável, é mais que o dobro [1]. Considerando as já conhecidas limitações estatais, cresce a expectativa sobre a iniciativa privada para financiamento de grandes projetos.

Um dos setores que mais demandam investimento com vistas ao crescimento e desenvolvimento econômico nacional é o de transportes. As características particulares desse setor exigem o dispêndio de elevadíssimas quantias. A demanda é, portanto, por um capital significativo em um projeto de longa maturação. Justamente por isso, a segurança jurídica é condição para o financiamento privado da infraestrutura nacional [2] [3]. O investidor precisa ter a garantia de que o contrato será cumprido [4] e que as regras do jogo não serão alteradas.

Entretanto, em um dos mais relevantes projetos estatais no âmbito portuário, o de desestatização das autoridades portuárias, há uma dupla ameaça à segurança jurídica: os impactos decorrentes da concessão dos portos organizados sobre os contratos de arrendamento vigentes tanto sob a ótica do risco de descumprimento quanto sob a da alteração do regime contratual.

Disciplinados pela Lei dos Portos (Lei nº 12.815/2013), os contratos de arrendamento portuário regulam a cessão onerosa de área e infraestrutura públicas para exploração por prazo determinado. São contratos celebrados com a União, em regra precedidos de licitação, e de longo prazo (comumente 25 anos, prorrogável por até 70). Na modelagem prevista para a Companhia Docas do Espírito Santo (Codesa) — eleita a primeira a passar pelo processo de desestatização —, esses contratos serão transferidos à autoridade portuária privada e terão, por consequência, seu regime alterado.

A modelagem de desestatização da Codesa foi aprovada no último dia 9 pela Resolução nº 188 do Conselho do Programa de Parceria de Investimentos. Conforme já previam os estudos submetidos à audiência pública, a privatização decorrerá da alienação da totalidade das ações detidas pela União no capital social da companhia e será acompanhada da celebração de um contrato de concessão entre a União e a Codesa, para desempenho das funções de administração do porto e exploração indireta das instalações portuárias dos portos organizados de Vitória e Barra do Riacho [5].

Esse modelo de gestão tem inspiração internacional (private landlord). É atualmente adotado nos portos de Melbourne, na Austrália, e Pireu, na Grécia, em que o particular, gestor do ativo, dispõe de ampla liberdade negocial para administrar o porto. Congrega competência inclusive para celebrar os novos contratos de exploração das áreas públicas e figurar como contratante nos contratos vigentes, mediante transferência. O exercício dessas competências por uma entidade privada, que tem por premissa a diminuição da presença estatal no setor tem como consequência, por outro lado, o aumento da presença do Estado enquanto regulador com o fim de dirimir conflitos [6].

O que chamou a atenção da iniciativa privada nessa modelagem foi justamente a previsão de adaptação e de transferência dos contratos de arrendamento à nova autoridade portuária congregada com mudança do regime público desses contratos para o privado. Essa adaptação contratual será resultado de negociação entre a nova autoridade portuária e o titular do contrato de arrendamento, em que se prevê uma ampla margem de liberdade para a nova autoridade, privada, manter, rever ou extinguir tais contratos.

Todos os direitos e obrigações relativos ao contrato de arrendamento serão transferidos à autoridade portuária, extinguindo-se qualquer vínculo entre o arrendatário e a União. A adaptação ao regime privado prevê, entre outras condições, a exclusão das cláusulas exorbitantes, a desnecessidade de manutenção do equilíbrio econômico-financeiro do contato, o estabelecimento do regime dos bens reversíveis previstos no contrato de arrendamento, entre outros [7].

Caso a modelagem inicialmente pensada para o caso da Codesa se confirme e dissemine, os atuais titulares de contratos de arrendamento com a União poderão enfrentar sérios problemas. Imagine-se o cenário em que um contrato de arrendamento recém-celebrado, que garanta ao arrendatário o direito de realizar os investimentos (para modernização das operações e atendimento de determinada cadeia logística) e de amortizá-los ao longo da vigência contratual, mediante exploração do ativo por 25 anos, seja submetido a uma negociação privada com a administração portuária. Se ao final dessa negociação o arrendatário discordar dos termos apresentados pela administração portuária, mesmo após a mediação da agência reguladora, o que lhe restará será "requerer a resilição contratual, arcando com os ônus e encargos decorrentes da rescisão" [8].

Em resposta às fortes críticas recebidas na fase de consulta pública dos arrendatários [9], o secretário Nacional de Portos e Transportes Aquaviários do Ministério da Infraestrutura indicou que as previsões estabelecidas nas minutas submetidas à audiência pública seriam ajustadas para deixar claro que os contratos de arrendamento vigentes serão respeitados. A agência reguladora também se manifestou formalmente informando que seria dada nova redação aos dispositivos que tratam do tema.

Importa registrar a disciplina normativa da questão. O decreto regulamentador da Lei dos Portos prevê que os contratos de arrendamento vigentes "poderão (não há a obrigatoriedade) ter sua titularidade transferida à concessionária" na hipótese de concessão do porto organizado e que "a concessionária deverá respeitar os termos contratuais originalmente pactuados" [10].

Assim, as atenções se voltam, agora, para os ajustes prometidos pelo governo federal. A questão que se coloca é: será que eles estarão à altura dos desafios criados?

Considerando o pioneirismo da Codesa, é preciso que a resposta institucional seja exemplar, apta a gerar a tão necessária segurança jurídica para a realização dos investimentos privados em infraestrutura. Postura diversa dificultará não apenas projetos setoriais já em curso, mas também futuros, ante o anunciado desejo estatal de privatizar outras autoridades portuárias nacionais.

 


[1] Estimado de 4,25% do PIB, conforme aponta estudo do IPEA: "Investidores institucionais: e o financiamento da infraestrutura — Uma estimativa do volume de recursos em potencial para o Brasil". Kátia Rocha. Abril 2021. (Disponível em https://www.ipea.gov.br/portal/images/stories/PDFs/TDs/210415_td_2644.pdf). Acesso em 10/6/2021.

[2] Os problemas comumente debatidos sobre o tema dizem respeito à falta de coerência e de estabilidade entre os atores estatais envolvidos que, por vezes, adotam posturas contraditórias e geram um ambiente sem a necessária previsibilidade. Exemplos não faltaram nos últimos anos. Voltando apenas um mês no calendário, tem-se um verdadeiro imbróglio sobre a 6ª Rodada de Concessões Aeroportuárias. Há decisões conflitantes do Tribunal Regional Federal da 1ª Região e do Superior Tribunal de Justiça a propósito da inclusão do aeroporto de Manaus no Bloco Norte. Enquanto o TRF1 havia determinado cautelarmente a retirada do aeroporto, o presidente do STJ permitiu a reinclusão. Depois de realizado o leilão, o STJ reviu seu posicionamento, determinando a exclusão. Na sequência o Supremo Tribunal Federal foi procurado pela União e alterou novamente o entendimento do Poder Judiciário, reincluindo o aeroporto no Bloco Norte. O mérito ainda não foi julgado.

[3] Muito também se discute sobre a fragilidade da fase preliminar dos estudos e de planejamento, responsável por inúmeras incertezas na iniciativa privada sobre a viabilidade do projeto ou o seu descasamento da real necessidade setorial. Tais falhas, que geram reflexos ao longo de toda a execução do empreendimento, muitas vezes levam a atrasos na disponibilização da infraestrutura e intermináveis renegociações contratuais. A exposição de motivos da Medida Provisória nº 752/2016, que deu origem à Lei 13.448/2017, instituidora da relicitação dos contratos de parceria, reconhece expressamente as dificuldades para o cumprimento de obrigações contratuais pelo parceiro privado e confere uma saída amigável, para que o poder concedente reavalie as condições originalmente pactuadas no contrato e promova a seleção de outro parceiro apto à execução do objeto.

[4] Especificamente sobre o cumprimento de contratos de concessão, vale relembrar o caso da encampação da Linha Amarela no Rio de Janeiro, da LAMSA. Para uma análise sobre o caso, ver: TOJAL, Sebastião; SPINARDI, Felipe. Investimentos privados e saneamento básico: as contribuições do novo marco legal e o papel das instituições públicas para a atratividade do setor. In: Cunha Filho, Alexandre Jorge Carneiro et. al. (coord.). Novo Marco Regulatório do Saneamento Básico no Brasil: Estudos sobre a nova Lei nº 14.026/20, vol. 2. São Paulo: Quartier Latin, 2021, pp. 15-40.

[5] Artigo 1º da Resolução CPPI nº 188, de 7/6/2021.

[6] O novo papel da Agência Nacional de Transportes Aquaviários nesse cenário de desestatização foi objeto de análise pela autora em: ARMELIN, Heloísa. O papel da Antaq ante o novo regime de exploração nos portos organizados. In: TOJAL, Sebastião Botto de Barros; SOUZA, Jorge Henrique de Oliveira (Coord.). Direito e infraestrutura: portos e transporte aquaviário — 20 anos da Lei nº 10.233/2001. No prelo 2021.

[7] Conforme item 2.2., alínea "c", do Anexo 7 da minuta do contrato de arrendamento submetido à audiência pública 19/2020- ANTAQ. Disponível em http://web.antaq.gov.br/Sistemas/WebServiceLeilao/DocumentoUpload/Audiencia%2070/7_Anexo_7___ConteA_do_MA_nimo.pdf Acesso em 14 jun. 2021.

[8] Item 2.2., alínea c.2.3. do Anexo 7 acima referido.

[9] As contribuições recebidas por escrito e as respostas da ANTAQ podem ser acessadas em http://web.antaq.gov.br/Sistemas/WebServiceLeilao/DocumentoUpload/Audiencia%2070/Planilha_de_Contribuicoes___Codesa___publico.pdf Acesso em 14 jun. 2021.

[10] Artigo 22, caput e §1º, respectivamente.

Autores

  • Brave

    é advogada no escritório Tojal Renault Advogados, especialista em Direito Constitucional pela PUC-SP e pós-graduanda em Direito Administrativo pela FGV.

Tags:

Encontrou um erro? Avise nossa equipe!