Opinião

Federalismo cooperativo no STF em testes com animais para cosméticos

Autor

  • Lucia Frota Pestana de Aguiar

    é pós-doutoranda doutora e mestre em Direito pela Unesa vice-presidente do Fórum de Pós-Humanismo e Defesa dos Animais-Cláudio Cavalcanti da Escola da Magistratura do Estado do Rio de Janeiro–EMERJ membro da "Law and Society Association" professora de Processo Civil da Unesa.

22 de junho de 2021, 19h18

A pesquisa jurídica em geral chega tardiamente ao fato social, mas no caso dos testes com animais para cosméticos houve uma feliz coincidência. Na próxima sexta-feira (25/6), na Emerj, será defendido trabalho científico cujo teor foi confirmado pelo STF em 27/5, na 16ª Sessão do Plenário do STF. Com dez votos a um, o STF decidiu pela constitucionalidade e invalidou trechos da lei [1].

Ao julgar a ADI 5995/RJ, proposta pela Associação Brasileira da Indústria de Higiene Pessoal, Perfumaria e Cosméticos (Abihpec), ao argumento de que a Lei Estadual 7.814/2017 contraria a Lei Arouca (Lei 11.794/2008 — norma federal regulamentadora de pesquisas com animais), o STF reforçou o federalismo cooperativo como instrumento de descentralização jurídica.

A associação buscou comprovar a competência normativa da União para legislar em normas gerais sobre a fauna e a proibição de venda de produtos interferindo indevidamente no comércio interestadual.

A ADI impugnou a integralidade da lei 7814/17 do RJ que "proíbe a utilização de animais para desenvolvimentos, experimentos e testes em produtos cosméticos, higiene pessoal, perfumes limpeza e seus componentes no âmbito do estado", reconhecendo a constitucionalidade de legislação estadual que veda testes com animais pela indústria de cosméticos, pois a matéria está inserida na competência concorrente de União, estados e DF, pelo artigo 24, VI, da Constituição Federal. Assim, o Rio de Janeiro legislou autorizadamente pela competência que lhe é garantida pelo §3º do artigo 24 da C.R.F.B.

O julgamento [2] expôs a competência verticalizada sobre o meio ambiente (artigo 225, § 1º, VII, da Lei Maior), cabendo aos estados legislar de forma plena, se ausente lei federal sobre as normas gerais de matéria de competência concorrente. Assim, a lei fluminense não contraria a lei federal e está dentro do dever constitucional de proteger os animais contra experimentos aflitivos e cruéis.

A dor causada pelo teste draize [3], ao pingar substâncias químicas nos olhos de coelhos sensíveis, amarrados esperneando até fraturarem suas colunas vertebrais, não resiste ao exame da proporcionalidade e merecem ser banidos, por não serem juridicamente justificáveis. O julgamento não foi compassivo, mas constitucional.

Já a questão que exigia as informações obrigatórias nos rótulos dos produtos extrapolou a competência estadual e foi vetada, cabendo só à Agência Reguladora Federal (Anvisa) normatizar nesse teor. O procurador-geral da República, Augusto Aras, defendeu a inconstitucionalidade formal do parágrafo único do artigo 1º da lei estadual (que proibia o comércio dos produtos cosméticos testados em animais) e do artigo 4º da lei (que exigia a rotulação dos produtos, com as informações desses testes). Conforme os artigos 22, VIII, e 24, V, da C.R.F.B. não cabe à lei inovar nessa temática, dispondo sobre produção, consumo e composição dos rótulos de produtos, já que novas exigências impactariam na circulação interestadual de produtos, matéria privativa da União legislar.

A Lei 11.794/08 estabelece procedimentos para uso científico de animais em normas gerais, mas não sobre o uso específico em cosméticos. As éticas animal e constitucional se encontraram, na autorização aos estados para atuarem subsidiariamente na ausência da normatividade nacional.

Expostos os conceitos de biotério, eutanásia, repetições desnecessárias e traumáticas e os critérios bem-estaristas criados por lei em 2008. Habermas foi equivocadamente invocado na doutrina bem-estarista por sua teoria dialógica, sem sequer o autor ter tratado do tema da Lei 11.794/08, que cria o Conselho Nacional de Controle de Experimentação Animal (Concea) e obriga a criação das Comissões de Ética no Uso de Animais (Ceuas). Assim, artigos científicos reportam-se equivocadamente ao filósofo por sua atuação ética e dialógica, abuso este que fortemente crítico [4].

No julgamento a Humane Society International [5] atuou como amicus curiae e a Lei federal 11.794/08 foi tardiamente at least exposta. Tal lei merece ainda ser alvo do processo de validade, em diálogo na arena pública, para ser questionada em sua coerência com o ordenamento jurídico brasileiro, incluindo a Lei 9605/98 (tipifica o crime de maus tratos), e sobretudo à luz da Constituição Federal, que veda condutas que viabilizem a crueldade a animais. Para Fábio Oliveira, sobre os animais usados em experimentação animal: "As pessoas deveriam estudar Ética Animal e se informar o que acontece dentro das paredes dos laboratórios, onde os gritos são ensurdecidos e a miséria escondida" [6].

O abandono da ótica mecanicista cartesiana sobre a dor do animal é urgente. E ensina Lenio Streck que o mundo faz provocações ônticas amplificadoras da capacidade compreensiva do intérprete, alterando o seu lugar de significação. Esta é a função da doutrina [7]. O STF tem atuado paradoxalmente em relação à questão animal, mas é preciso aplaudir aqui a interpretação constitucionalmente adequada! Urge a necessidade de respeito ao legislador ordinário, que Sarlet ensina como mínimo existencial ecológico [8] em recente palestra em Congresso de Direito Ambiental [9].

"(…) Uma vez que a proteção do ambiente é alçada ao status constitucional de direito fundamental (além de tarefa e dever do Estado e da sociedade) e o desfrute da qualidade ambiental passa a ser identificado como elemento indispensável ao pleno desenvolvimento da pessoa humana, qualquer "óbice" que interfira na concretização do direito em questão deve ser afastado pelo Estado, seja tal conduta (ou omissão) obra de particulares, seja ela oriunda do próprio Poder Público" [10].

Assim explicita Streck no "Dicionário de Hermenêutica sobre o Direito Legislado":

"Cada vez mais o protagonismo do Judiciário se acentua. Há (ainda) Direito legislado ou o que temos é o que a jurisprudência diz que o Direito legislado é? Será que o que temos não é aquilo que o professor alemão Mathias Jestaedt chama de positivismo jurisprudencialista? O Direito legislado vale enquanto Direito, ou vale — apenas e tão somente — aquilo-que-o-Judiciário-diz-ser-o-Direito-legislado? (….)" [11].

O esforço de preservação não é só dos animais, mas "do estatuto epistemológico do Direito ordinário, evitando que o mesmo seja apropriado por um pamprincipiologismo ou até um pam(in)constitucionalismo" [12]. Analisando a atuação do STF no controle de constitucionalidade, exige-se a sobrevivência da jurisdição constitucional, sem testes impiedosos e abusivos, com o devido respeito ao que Streck alerta: a parametricidade. É salutar a todo operador do direito, antes de desenvolver seu próprio raciocínio crítico, conhecer a melhor teoria reflexiva nacional, baseada em princípios constitucionais. A CHD (crítica hermenêutica do Direito) de Lenio Streck:

"(…) Por ela, devemos revolver o chão linguístico em que está assentada a tradição e reconstruir a história institucional de cada instituto (lei, princípio etc.), descascando o fenômeno, para permitir que ele se mostre em sua inteireza hermenêutica. Sem a admissão de qualquer relativismo. Os conceitos jurídicos (…) vão sendo tomados por uma poluição semântica. Devem sempre sofrer uma desleitura. Ao lado disso, existe o perigo da anemia significativa (Warat). Essa é a tarefa da doutrina. Doutrina tem a tarefa de doutrinar. E realizar 'constrangimentos epistemológicos'" [13].

Concluo com o link/convite virtual a todos para a apresentação oral pública na Emerj, na sexta-feira (25/6), às 12h30, de trabalho de Carina Fidelis Leal, o qual tive a honra de orientar, em real aplicação técnica da CHD à "Questão Animal e seu Acesso à Justiça: Um Paradoxo no Direito". Vale assistir ao efeito questionador doutrinário dando voz aos animais torturados em experimentação animal, através da CHD, honrando a C.R.F.B. na proibição de retrocesso à tutela conferida aos animais e afirmando a legitimidade das leis estaduais que vedam o uso de animais para testes de cosméticos. Por inexistir lei federal sobre o tema. Foi viabilizado um patamar de proteção à fauna superior ao da União, pela competência constitucional suplementar dos estados da federação.

 


[1] http://portal.stf.jus.br/processos/detalhe.asp?incidente=5531738 O Tribunal, nos termos do voto do relator Ministro Gilmar Mendes, conheceu da ação e julgou parcialmente procedente o pedido, só declarando a inconstitucionalidade do parágrafo único do artigo 1º e do artigo 4º da Lei nº 7.914/2017 do RJ. E votaram nesse sentido os Min. Alexandre de Moraes, Roberto Barroso, Dias Toffoli e Ricardo Lewandowski. Votou pela procedência integral do pedido o Min. Nunes Marques. Votaram pela improcedência do pedido os Min. Edson Fachin, Rosa Weber, Cármen Lúcia, Marco Aurélio e Luiz Fux (Presidente). Plenário, 27.05.2021 (Sessão por videoconferência – Resolução 672/2020/STF).

[2] Plenário Virtual: https://youtu.be/W7MOs5BqnOA. O relator Min. Gilmar Mendes, rechaçou o argumento do conflito legislativo. Explicou que a norma estadual tem objeto diverso da federal e lembrou que, na ADI 5996, o STF reconheceu a constitucionalidade de lei do Amazonas que também proíbe testes em animais para o desenvolvimento dos mesmos produtos.

[4] AGUIAR, Lúcia Frota Pestana. , Habermas e o Futuro da Natureza Humana diante da Ética Animal http://conpedi.danilolr.info/publicacoes/66fsl345/nmt6dg26/1wgT7cp5q2DKKJmO.pdf.

[6]OLIVEIRA, Fábio Corrêa de Souza Oliveira. Carta aberta contra a instrumentalização de animais. https://www.imed.edu.br/Comunicacao/Noticias/carta-aberta-contra-a-instrumentalizacao-de-animais.

[7] STRECK, Lenio. Jurisdição constitucional e hermenêutica: uma nova crítica do direito. 2 ed. Rio de Janeiro: Forense, 2004. p. 246.

[8] SARLET, Ingo . "(…) a Constituição Federal, já na sua versão originária, assumiu a condição de uma Constituição de um Estado Democrático, Social e Ecológico de Direito(…) https://www.conjur.com.br/2020-dez-14/direto-fundamental-clima-estavel-pec-2332019.

[9]Mediado pela Professora Giselle Maria Custódio Cardoso, A Rede de Estudos de Direito Ambiental da UERJ, em excelente Palestra dos Professores Ingo Sarlet e Tiago Fensterseifer, https://www.youtube.com/channel/UC1zJbdt0AIUZli4tMtCs3sg.

[10] SARLET, Ingo. Colóquio sobre o princípio da proibição de retrocesso ambiental p. 123 Disponível em:https://www.mpma.mp.br/arquivos/CAUMA/Proibicao%20de%20Retrocesso.pdf.

[11] Streck, Lenio. Dicionário de Hermenêutica – 50 verbetes fundamentais. 2ª. Ed. BH, Casa do Direito, 2020. Tema também abordado em: https://www.conjur.com.br/2021-abr-17/observatorio-constitucional-defender-jurisdicao-constitucional-realismo-predatorio.

[12] STRECK, Lenio. Dicionário de Hermenêutica. BH. Casa do Direito, 2ª. Ed, 2020. Verbete – Valores.

[13] STRECK, op. cit.

Autores

  • Brave

    é pós-doutoranda, doutora e mestre em Direito pela UNESA, vice-presidente do Fórum de Pós-Humanismo e Defesa dos Animais-Cláudio Cavalcanti, da Escola da Magistratura do Estado do Rio de Janeiro–EMERJ, membro da “Law and Society Association”, professora de Processo Civil da UNESA.

Tags:

Encontrou um erro? Avise nossa equipe!