Opinião

STF, Correios, despedida do empregado e decisões conflitantes

Autor

  • Edilton Meireles

    é pós-doutor pela Faculdade de Direito da Universidade de Lisboadoutor pela PUC/SP desembargador do Trabalho no Tribunal Regional do Trabalho da 5ª Região professor adjunto da Universidade Católica do Salvador (UCSal) e professor associado da Faculdade de Direito da Universidade Federal da Bahia (UFBa).

21 de junho de 2021, 17h18

Nestes últimos anos, o STF tem proferido diversas decisões nas quais a Empresa Brasileira de Correios e Telégrafos (EBCT) atua como parte interessada e que, ao menos aparentemente, revelam uma certa contradição ou falta de amadurecimento da jurisprudência. Três decisões revelam bem essa jurisprudência vacilante.

No RE nº 229.696, com julgamento encerrado em 16/11/2000, o STF se deparou diante da alegada inconstitucionalidade do artigo 12 do Decreto-Lei nº 509/69, que assegura aos Correios, entre outros, os mesmos privilégios concedidos à Fazenda Pública, "quer em relação a imunidade tributária, direta ou indireta, impenhorabilidade de seus bens, rendas e serviços, quer no concernente a foro, prazos e custas processuais".

Ao apreciar essa questão, o STF assentou o entendimento de que a EBCT é uma "pessoa jurídica equiparada à Fazenda Pública".

Posteriormente, em 20/3/2013, quando do julgamento do RE nº 589.998, que tratava da despedida do empregado público dos Correios, o STF concluiu que caberia a exigência de sua motivação. Já nos embargos de declaração, julgados cinco anos depois, em 10/10/2018, o STF concluiu que "a fim de conciliar a natureza privada dos vínculos trabalhistas com o regime essencialmente público reconhecido à ECT, não é possível impor-lhe nada além da exposição, por escrito, dos motivos ensejadores da dispensa sem justa causa". Assentou, ainda, o entendimento de que "não se pode exigir, em especial, instauração de processo administrativo ou a abertura de prévio contraditório".

Ou seja, apesar de equiparada a fazenda pública, o STF indicou, posteriormente, que o vínculo com os empregados dos Correios seria de "natureza privada".

Já agora no ano de 2021, o STF concluiu o julgamento do RE nº 655.283, firmando a tese de que "a natureza do ato de demissão de empregado público é constitucional-administrativa e não trabalhista, o que atrai a competência da Justiça comum para julgar a questão".

Observa-se, porém, que essas decisões se revelam, até certo ponto, contraditórias ou que representam a superação de seus precedentes, ao menos em parte, se não discriminatórias para com o trabalhador.

Vejam que o STF tem ampla e pacifica jurisprudência definindo que os Correios é uma pessoa jurídica de natureza pública, equiparada à Fazenda Pública, gozando o privilégio da impenhorabilidade de seus bens, rendas e serviços, ficando submetido ao regime do precatório, sendo, ainda, titular da imunidade tributária recíproca. No RE nº 229.696, inclusive, o STF decidiu que os Correios seriam equiparados à fazenda pública diante da "não-incidência da restrição contida no artigo 173, § 1º, da Constituição Federal, que submete a empresa pública, a sociedade de economia mista e outras entidades que explorem atividade econômica ao regime próprio das empresas privadas, inclusive quanto às obrigações trabalhistas e tributárias".

Nesse julgamento, como consta na ementa, concluiu-se que aos Correios não se aplicaria o regime próprio das empresas privadas, "inclusive quanto às obrigações trabalhistas e tributárias". E, nesse caminhar, o STF tem reiterada jurisprudência, inclusive a que assegura aos Correios a imunidade tributária (ACO nº 803).

Contudo, a par da equiparação a Fazenda Pública, o STF, no RE nº 589.988, conclui que bastava uma simples motivação, dispensando-se o prévio procedimento administrativo, para a despedida do empregado dos Correios. E, em contradição ou superando sua decisão anterior, conclui — como dito acima — que "a fim de conciliar a natureza privada dos vínculos trabalhistas com o regime essencialmente público reconhecido à ECT, não é possível impor-lhe nada além da exposição, por escrito, dos motivos ensejadores da dispensa sem justa causa".

Vejam, então, que, anteriormente, no RE 229.696, o STF havia decidido que os Correios seriam equiparados à fazenda pública diante da "não-incidência da restrição contida no artigo 173, § 1º, da Constituição Federal, que submete a empresa pública, a sociedade de economia mista e outras entidades que explorem atividade econômica ao regime próprio das empresas privadas, inclusive quanto às obrigações trabalhistas e tributárias". Já no RE 589.988 conclui que caberia conciliar a "natureza privada dos vínculos trabalhistas com o regime essencialmente público reconhecido à ECT".

Ou seja, as decisões seriam contraditórias (ou superação do precedente em parte?) no ponto no qual reafirma a natureza dos Correios como de entidade equiparada à Fazenda Pública, mas exclui dessa equiparação as relações jurídicas mantidas com seus empregados, que seriam de natureza privada. O STF, porém, não apontou uma forte razão para essa diferenciação. Qual seja, para tudo mais, os Correios se equiparariam à Fazenda Pública, mas para fins trabalhistas não?

E não se pode responder com a simples afirmação de que ela seria consequente do fato de os Correios manterem com seus empregados vínculo jurídico de "natureza privada". Isso porque os empregados públicos mantêm, em verdade, vínculo de natureza público-trabalhista com os entes públicos, assim como os servidores públicos mantêm vínculo de natureza público-administrativo. Aqui, data venia, o STF incorreu no erro de interpretar a Constituição "conforme a CLT" e não o inverso. Ou seja, partiu da regra privada da CLT para concluir que, constitucionalmente, os empregados públicos mantêm uma relação meramente privada com a Administração Pública.

Ora, é preciso deixar claro que a Constituição estabelece, expressamente, que a Administração Pública direta tanto pode manter uma relação jurídica de natureza constitucional-administrativa como de natureza constitucional-trabalhista, cabendo a cada ente de direito público interno fazer sua opção por um ou outro, instituindo o regime jurídico único. E mais, ela admite até a existência dos dois regimes em caráter permanente, ao prever a possibilidade, em seu artigo 198, §5º, de a lei federal definir sobre o regime jurídico dos agentes comunitários de saúde e dos agentes de combate às endemias. E essa lei (nº 11.350/2006) definiu que cabe a cada ente público fazer a sua opção quanto ao regime jurídico (artigo 8º).

Na realidade, o que aqui importa destacar é que o regime de emprego público é "essencialmente público". E, ao se aplicar às relações mantidas com os empregados públicos a mesma legislação incidente sobre as relações privadas de emprego, não se quer transformar aquelas em relações de natureza privada. Equiparam-se os direitos dos trabalhadores públicos e privados, mas não se transforma a natureza jurídica da relação. E tanto isso é verdade que a própria Constituição impõe uma série de regras que somente se aplicam à relação de emprego público, a exemplo da contratação após prévia aprovação em concurso público etc.

Pode-se, porém, afirmar que o STF estaria, na realidade, apenas superando seu precedente anterior (RE nº 229.696), estabelecendo uma distinção. Ou seja, como afirmado pelo ministro Teori Zavascki, quando do julgamento do RE 589.988, "nas circunstâncias, o mais apropriado e compatível com o sistema constitucional é o de atribuir limites estritos aos efeitos decorrentes dos privilégios e garantias reconhecidos à ECT, a fim de contê-los aos domínios tributário ou processual que lhe são próprios", já que não haveria "uma razão lógica ou jurídica que imponha um elo de vinculação necessária entre os privilégios especiais — de natureza processual e tributária — assegurados à ECT, no que diz respeito aos serviços que presta em caráter de monopólio constitucional, e o regime jurídico que deve disciplinar as suas demais relações de direito, notadamente as que dizem respeito aos seus servidores" (fls. 79 do acórdão).

O ministro, porém, apenas não justificou qual seria a ausência de uma razão lógica para assegurar aos Correios os privilégios da Fazenda Pública e, ao mesmo tempo, assegurar aos seus empregados os privilégios dos empregados da Fazenda Pública!

Contudo, não fossem as inconsistências e contradições acima mencionadas, o STF, ao julgar o RE nº 655.283, alcançou a conclusão de que o ato de despedida do empregado público é de natureza "constitucional-administrativo" e não "trabalhista".

Vejam: anteriormente, ao decidir sobre a exigência da motivação para despedida do empregado dos Correios, o STF afirmou que apenas se exigia a motivação, dispensando-se o prévio procedimento administrativo, já que a relação jurídica era de "natureza privada". Agora, no entanto, no RE nº 655.283, concluiu que o ato de despedida é de natureza "constitucional-administrativo" e não "trabalhista" (sem o qualificativo constitucional), daí porque a competência para apreciar a demanda derredor da legalidade ou não da despedida seria da Justiça federal (em relação aos empregados públicos federais) e da Justiça estadual em relação aos outros empregados públicos estaduais ou municipais.

Das duas (ou três) uma: ou o STF, mais uma vez, foi contraditório ou estabeleceu mais uma distinção, criando uma exceção na exceção (ou foi casuístico-discriminatório — agora contra a Justiça do Trabalho).

A contradição é patente. Ora, ou bem os Correios mantêm uma relação de natureza privada com seus empregados, ou uma relação de natureza "constitucional-administrativa". E se for de natureza "constitucional-administrativa", por certo que o ato da autoridade que despede o empregado público deve ser precedido do prévio processo administrativo. O STF, porém, anteriormente, afirmou que seria dispensável essa formalidade por ser a relação de "natureza privada"!

A favor do STF, porém, pode-se afirmar que ele, na realidade, estaria avançando, superando, mais uma vez seus precedentes, para estabelecer uma outra distinção. Ou seja, estaria afirmando que os Correios se equipara à Fazenda Pública em todas as suas relações jurídicas (públicas-administrativas), salvo as mantidas com seus empregados (que teriam natureza privada), exceto quanto ao ato de despedida, que seria de natureza pública-administrativa. Em suma, a relação mantida com os empregados dos Correios seria de "natureza privada", mas o ato de despedida teria natureza "constitucional-administrativo" (logo, público).

Se assim for, estar-se-á diante da superação do precedente posto no RE nº 589.998 quando este dispôs que era dispensado o prévio procedimento administrativo para despedida do empregado dos Correios, bastando uma simples motivação. Isso porque, se se trata de ato "constitucional-administrativo", logo se dele resulta "em imposição de deveres, ônus, sanções ou restrição ao exercício de direitos e atividades e os atos de outra natureza" (artigo 28 da Lei nº 9.784/99) é obrigatório ser precedido de prévio procedimento administrativo, assegurado o contraditório e o direito de defesa. Logo, o ato constitucional-administrativo de despedir o empregado público deve ser precedido do prévio processo administrativo, assegurado o direito de defesa e do contraditório, pois dele (ato de despedida) decorrem "ônus, sanções ou restrição ao exercício de direitos".

Terá sido essa a intenção do STF? Em sendo, ele estaria avançando, criando, ainda que equivocadamente e de forma discriminatória, uma exceção à exceção. Do contrário, o STF estaria sendo apenas casuístico-discriminatório em relação aos trabalhadores e à Justiça do Trabalho.

Ressalte-se, porém, que se afirmou que a decisão foi equivocada (podendo, porém, ser melhor esclarecida em eventuais embargos de declaração), pois ela, mais uma vez, procura interpretar a Constituição "conforme a CLT". Parte-se do pressuposto equivocado de que os trabalhadores são ou meramente infraconstitucionais-celetistas ou são constitucionais-administrativos.

Observem que o STF conclui que o ato de despedida do empregado público é de natureza "constitucional-administrativo". Contudo, o STF não aponta por qual razão ele não é de natureza constitucional-trabalhista? Lembrem-se que a Constituição, na realidade, prevê dois regimes de trabalho a ser mantidos com os trabalhadores da Administração direta: o regime de Direito Administrativo e o regime de Direito do Trabalho. Ambos têm assento na Constituição. Logo, ambos são constitucionais. Logo, um seria constitucional-administrativo, outro constitucional-trabalhista (público).

O regime administrativo é regulado pela própria Constituição e pela legislação infraconstitucional de cada ente público de natureza administrativa. Já o regime trabalhista é regulado pela própria Constituição e pela legislação infraconstitucional federal trabalhista, pois reservada à União a competência para legislar sobre Direito do Trabalho, sem distinção, entre a relação de trabalho de natureza privada e a relação de trabalho de natureza pública.

O que importa, porém, aqui, é destacar que, à luz da Constituição, o ato de demissão do trabalhador público da Administração direta tanto pode ser de natureza constitucional-administrativo (exoneração do servidor público), como de natureza constitucional-trabalhista-público (despedida do empregado público). Se empregado da Administração indireta, o ato seria constitucional-trabalhista-privado.

E o que define a sua natureza ser constitucional-administrativa ou constitucional-trabalhista? A resposta somente pode ser uma: define-se a partir da natureza da relação jurídica mantida entre o poder público e seu trabalhador. Logo, se a relação de trabalho está submetida à legislação administrativa, trata-se de ato constitucional-administrativo. Se a relação de trabalho é regida pela legislação trabalhista, trata-se de ato constitucional-trabalhista.

O STF, porém, partiu do pressuposto de que a Administração Pública, quando despede o empregado público, age na prática de ato de natureza restritamente administrativa como se outra não existisse. Parte-se do pressuposto de que o poder público somente pratica ato de natureza constitucional-administrativo. Ocorre, porém, que a Constituição estabelece claramente que o poder público tanto pode manter uma relação de trabalho constitucional-administrativo, como constitucional-trabalhista. Logo, nas duas hipóteses, estar-se diante de um ato de natureza pública. Ato do poder público. Ato da Administração, seja ele praticado numa relação constitucional-administrativo, seja numa relação constitucional-trabalhista (-público).

Pode-se, assim, concluir que o STF, na realidade, ainda não atingiu a maturidade devida para definir, de fato, em toda a sua extensão, qual os efeitos da equiparação dos Correios à Fazenda Pública, não tendo, ainda, a percepção de que a Constituição tanto regula o regime de trabalho público "administrativo", como o regime de trabalho público "trabalhista". Ambos constitucionais. Interpreta-se a Constituição conforme a CLT!

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