Processo familiar

Reprodução assistida para as famílias octogenéticas reclama legislação

Autor

  • Jones Figueirêdo Alves

    é desembargador emérito do Tribunal de Justiça de Pernambuco (TJ-PE) mestre em Ciências Jurídicas pela Faculdade de Direito de Lisboa membro da Academia Brasileira de Direito Civil e do Instituto Brasileiro de Direito de Família (IBDFam) membro fundador do Instituto Brasileiro de Direito Contratual (IBDCont) advogado consultor e parecerista.

20 de junho de 2021, 8h02

Em que pese a inexistência de um regime jurídico legal disciplinando as técnicas de reprodução humana, medicamente assistida, vigindo, apenas, uma regulamentação de ordem deontológica por resoluções normativas do Conselho Federal de Medicina — que desde 1992, contribui com uma disciplina a respeito — certo é que os projetos parentais têm sido levados a bom termo, com uso de tais técnicas aperfeiçoadas no processo de procriação, servindo, assim, à sua plena efetividade.

O direito à procriação, assegurado pelos avanços tecnológicos, impacta antigos dogmas, como o da maternidade sempre certa (mater sempre certa est), quando mãe genética e geratriz só haveria uma; o da paternidade ficta, com a presunção de o pai ser certamente o marido da mãe (pater is est) e o das marcações temporais clássicas. Hoje, maternidades ou paternidades são protraídas no tempo pela criopreservação de material fecundante, assegurando direitos reprodutivos e a ciência médica, em laboratório, modula diferente a família a partir da filiação, desafiando a ciência jurídica perante as famílias octogenéticas.

Famílias octogenéticas, segundo as novas tecnologias da vida, são aquelas referidas por Maria Helena Diniz como as decorrentes das técnicas científicas de octogênese, a partir da fecundação na proveta ou da inseminação artificial, com o surgimento de diversas situações de seu emprego. Aqui, rendemos homenagem à consagrada jurista que edificou, no direito brasileiro, doutrina pioneira a respeito, em sua obra “O estado atual do biodireito” (Saraiva, 2001).

O Código Civil, no art. 1.597, incisos III a V, cogita das hipóteses básicas, mas não a estruturam para a regulamentação cabível. Tampouco, cuidou da possibilidade de utilização do material genético da pessoa falecida, não obstante a cláusula “mesmo que falecido o marido”, do inciso III do reportado artigo. Menos ainda: não cuida da criopreservação de óvulos ou ainda de seu uso “post mortem”, a consolidar um projeto parental desejado.

Ausente uma legislação especifica da reprodução assistida, é igualmente certo, porém, que a normatividade extraída das resoluções do C.F.M. se revela distinta da juridicidade adequada que se reclama para os fins da contratualização das técnicas de Reprodução Humana.

Anote-se que uma nova Resolução, a de nº 2.294, de 27.05.21, foi publicada no D.O.U., de 15.06.21 (terça feira passada), em busca continuada de harmonizar o uso dessas técnicas, com os princípios da ética médica; e, embora venha suprir algumas omissões, ainda se mostra deficitária ao suporte das relações jurídicas; suscitando questionamentos, a exemplo da mantida exigência de parentalidade em face da cedente temporária do útero na gestação por outrem.

É, exatamente, sob o viés da contratualidade que o tema ganha maior relevo, consabido que problemas advenientes das relações jurídicas subjetivas entre as pessoas envolvidas, com interesses e objetivos definidos, demandam uma indispensável normatividade da lei, sob a qual o planejamento familiar como princípio determinante e os procedimentos de procriação dele decorrentes estejam inferidos por uma regência legal ordenadora.

Essas relações jurídicas, de natureza existencial, consagram o manejo das técnicas, onde o contrato matriz de serviços médicos (o de edição genética de reprodução humana assistida), surge como o primeiro a viabilizá-las, através de profissionais especializados, com a imprescindível formação; orbitando em torno dele, diversos outros contratos, coligados ou acessórios.

Nesse contrato nuclear (principal), a relação médico-paciente impõe deveres éticos e jurídicos, cuja conduta médica exige, além do princípio da beneficência, o emprego adequado dos recursos da biotecnologia, conforme o consentimento informado do paciente. Há que se dizer, o chamado “consentimento líquido”, que se traduz livre e esclarecido, como resultado contributivo ao pleno conhecimento situacional, sem indução ou imposição, onde ajustes e aquiescências signifiquem consensos e concordâncias. No mais, cuida-se de contrato predominantemente oneroso, bilateral ou plurilateral, comutativo, exigindo perícia e diligência, de trato continuado em consonância com os subcontratos (os de terceiros serviços), v.g. do prestado pelos bancos de sêmen, e finalmente, de obrigação de meio e não de resultado,

Desse diálogo construtivo, em permanente evolução, a assistência médico-jurídica à fertilidade tem trabalhado um satisfatório planejamento reprodutivo. De sorte que ao uso das técnicas de reprodução assistida, o manejo de gametas, embriões e tecidos germinativos, inclusive para pacientes oncológicos, a possibilidade da gestação de substituição, a gestação compartilhada, a “fecundação in vitro”, a inseminação “post mortem”, entre outras questões, envolvem situações cotidianas que, por enquanto, somente a doutrina e a jurisprudência disciplinam, em exata medida da dignidade das pessoas.

No ponto, julgamento da 4ª Turma do STJ, realizado terça-feira passada (15.06.21), ao tempo uno da Resolução 2.294-CFM, decidiu, por maioria, que a implantação de embriões congelados em viúva exigiria autorização expressa do falecido, conforme voto condutor do min. Luiz Felipe Salomão. Ele situou seu entendimento no item VIII do Anexo da então Resolução n. 2.168/2017-CFM e no Provimento n. 63/2017 do Conselho Nacional de Justiça, segundo os quais, somente é permitida a reprodução assistida post-mortem “desde que haja autorização previa específica do(a) falecido(a)”.

Questão subjacente debatida naquele julgamento disse respeito a um pacto correlato sobre a determinação de custódia do embrião. Aliás, tem sido assente, em legislação estrangeira, que “o embrião resultante dos gametas do casal deverá ser colocado sob tutela jurídica e que, em caso de morte de um dos elementos do casal, tal tutela caberá ao elemento que sobreviver” (João Álvaro Dias, Coimbra, 1996).

No caso julgado, em contrato acessório celebrado com a clínica incumbida de criopreservar o embrião, o casal houvera acordado que, em caso da morte de um deles, os embriões congelados ficariam sob a custódia do outro, havendo, então, o Tribunal de Justiça de São Paulo sufragado que essa disponibilidade atribuída ao cônjuge sobrevivente, implicaria destinar-se à implantação em útero materno, porquanto outra não seria a finalidade primacial de sua preservação desde então. Demais disso, a viúva, ainda sem filhos, sustentou inexistir exigência legal “quanto à forma de manifestação desse consentimento”.

Entretanto, à falta de regulamentação legal suficiente, o STJ optou, por maioria, considerar que “a manifestação de vontade deveria se dar de maneira incontestável, por meio de testamento ou outro instrumento equivalente em termos de formalidade e garantia”, resultando no sentido de o contrato preexistente, com a autorização expressa de custódia singular do embrião, tudo significar ao guardião do material genético, menos para o implante embrionário; frustrando, daí, um projeto parental de filho havido por fecundação artificial homóloga, “mesmo que falecido o marido”, sob a égide do art. 1.597, III, CC.

Tal problematização indica, não apenas exemplo de divergências e de incompletudes, oriundas da omissão normativa, mas o reclamo por uma legislação que enfrente, de forma abrangente, todas as situações hipotizadas. Dentre elas, de enfoque expressivo, as que contendam com a (i) reprodução humana além da vida do casal e (ii) a maternidade de substituição, precisamente o acordo referente à utilização de útero alheio.

Trabalhar a contratualidade da reprodução assistida, colocando-a no plano dos negócios biojurídicos, como um contrato existencial em sua singularidade de objeto e de autodeterminação, sob o enfoque do art. 104 do Código Civil, quanto às partes, objeto e forma, é a pauta do dia. Mesmo que o direito não se apresente “ágil e dúctil” diante das transformações biotecnológicas, a expressão da atividade cientifica deve ser pautada pela autonomia privada da vontade, implementada e dinamizada através dos contratos. De efeito, uma nova formação familiar a partir da reprodução assistida, com pessoas vivas ou não, deve ser regulada por contratos, suprindo a ausência de textos legais específicos.

No atinente à primeira questão, ponto de relevo é realçado por Ana Cláudia Brandão de Barros Correia Ferraz ao referir que “se o marido consentiu na inseminação artificial com seu material genético, aceitou a paternidade do filho, independentemente da época da concepção e do nascimento”. Tal premissa de base serve de ponderação ao problema prático aqui posto, e não previsto em lei (apenas em regulamentos) o de ser exigível (ou não) a autorização prévia para o manejo do material genético ou à implantação do embrião “post mortem”.

Cuida-se, em bom rigor, de “vontade pretendida” exercida pelo cônjuge ou companheiro que adiante venha a falecer, cujo falecimento não desfaz o que exaltou, em vida como projeto existencial. Manifesta é a presunção de filiação quando o material genético se apresenta inequivocamente do casal como titulares jurídicos, o mesmo ocorrendo em face dos embriões excedentários.

No tocante à maternidade substitutiva por cessão temporária de útero, sublinhe-se que a recente Resolução n. 2.294/2021, de 27 de maio, traz consigo disposições questionáveis, como (i) o requisito da necessária parentalidade da cedente temporária do útero, até o quarto grau; (ii) e o da cedente ter ao menos um filho vivo, exigência não prevista na redação anterior da Resolução 2.168/2017. As exigências de parentesco entre os pais jurídicos e a gestante e que esta já tenha filho tornam o projeto parental apenas acessível a alguns, prejudicando aqueles que não tenham parentes do sexo feminino em condições de assumirem a gravidez por substituição, o que se mostra inconstitucional por quebra ao princípio da igualdade.

São restrições meramente deontológicas, cujos óbices devem ser afastados por lei ou pelo contrato, mais ainda quanto (iii) à idade máxima dos cinquenta anos, das habilitadas à gestação por técnicas de RA, e (iv) à gratuidade do contrato, quando se trata, todavia, de uma mera cessão temporária do útero e não de doação do órgão, cuja moldura da Lei 9.434/97 (a de Doação de Órgãos e Tecidos Humanos), impõe o modelo jurídico da doação como um contrato necessariamente gratuito e a cuja incidência da lei excluem-se, porém, o sangue, o esperma e o óvulo.

Nesse ser assim, nada obsta a onerosidade do contrato de gestação substituta, mesmo que limitada às despesas necessárias ao desenvolvimento saudável do nascituro, desprovido do caráter comercial ou lucrativo. Vem à colação o suporte dos alimentos gravídicos ofertados ou garantidos no próprio contrato gestacional ou as despesas médicas no acompanhamento da gestação.

Vale referir outra inovação trazida pela novel Resolução, com o permissivo de o uso das técnicas de RA, para doação de oócitos e na preservação de gametas, embriões e tecidos germinativos poder ser adotado por razões médicas e “não médicas”. Estas segundas razões sequenciam situações comuns, v.g. a da maternidade postergada por motivos profissionais, impeditivos a uma gestação imediata.

Iniludível que o contrato de gestação de substituição é o mais emblemático da reprodução assistida, exigindo um novo olhar jurídico aos paradigmas anteriores da tradição romanística do Código Civil.

A esse propósito refletem, com precisão, Taísa Maria Macena de Lima e Maria de Fátima Freire de Sá, sobre a interseção das técnicas, observando as rupturas do conceito da maternidade: enquanto na doação de óvulos, a mãe jurídica gesta seu filho “que terá as características genéticas da doadora”, “na gestação de substituição, a mãe jurídica disponibiliza o seu material genético para ser gerado por outra mulher, e seu filho terá o DNA mitocondrial da gestante.”.

Mas não é só:

(i) “poderá ocorrer uma interseção da doação do óvulo e a gestação de substituição, ou seja, o material genético do marido será fertilizado com o material genético de uma doadora e o embrião será transferido para uma terceira pessoa que gestará o filho do casal”. Em casos tais, a mãe jurídica não será genética ou biológica, apenas socioafetiva do filho havido legalmente como seu;

(ii) poderá ocorrer, outrossim, a maternidade dúplice, comum nas uniões homoafetivas femininas, onde pelo uso das técnicas de RA, cada mulher parceira faz a doação recíproca dos seus óvulos para a gestação pela outra, envolvendo somente um banco de sêmen ou um determinado dador masculino do material genético. Será um contrato atípico, de gestação compartilhada desfigurando a própria gestação por outrem, porquanto embora com o material fecundante diverso, em gestação substituta, as duas mulheres serão as mães jurídicas;

(iii) Outro fundamento diferenciado da maternidade incide, em contratos do tipo, quando a mãe geratriz ou hospedeira, em gravidez por substituição, doa o seu próprio óvulo, em favor do casal e no particular, da mulher estéril e titular do projeto parental, implicando renúncia à determinação de maternidade, tudo conforme reste estipulado pelas partes contratantes. Em outras palavras, diversamente do direito português onde relativamente à mãe, a filiação resulta do nascimento (art. 1.796º, n. 1, CC), o nosso Código Civil não define a maternidade, e esta, mediante o uso das técnicas de RA somente será certa, rompendo secular princípio, conforme seja determinada objetivamente pelo contrato.

Em amplo exercício de um direito reprodutivo constitucionalizado, retenha-se que o projeto parental no acesso aos filhos da ciência deve ser alcançado como corolário da liberdade do planejamento familiar, garantida pelo art. 226 § 7º da Constituição Federal.

Por esse viés de direito constitucional, os contratos deverão ser celebrados sem quaisquer das amarras cogitadas, como as vedatórias da concepção tardia, quando colocada impedida a mulher ao uso das técnicas, não obstante possa ela alcançar, pela adoção, a maternidade diferida.

Quando é certo que a inseminação artificial heteróloga em mulher solteira demanda somente um contrato bilateral entre médico e usuária; não envolvendo o dador do sêmen; que este tem sua relação contratual somente com o banco de sêmen receptor da doação; quando na mesma latitude operam-se os contratos de coparentalidade reunindo pais sem existência comum e afetiva entre eles, apenas aperfeiçoando um projeto de procriação de ambos, tenha-se como princípio fundante que há de prevalecer, em todos os casos de direito reprodutivo, a busca e a concretização, com liceidade, da autonomia da vontade procriacional.

A reprogénetica humana, inexistente um Estatuto de Reprodução Humana como microssistema jurídico, deve ser defendida por um sistema contratual apto a garantir a dignificação do projeto parental de todos que necessitem da reprodução assistida.

Eis um novo direito contratual que surge em sua dinâmica.

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    é desembargador decano do Tribunal de Justiça de Pernambuco, integra a Academia Brasileira de Direito Civil, membro do Instituto Brasileiro de Direito de Família (IBDFAM) e membro fundador do Instituto Brasileiro de Direito Contratual (IBDCont).

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