Embargos culturais

"O Seminarista", de Bernardo Guimarães

Autor

  • Arnaldo Sampaio de Moraes Godoy

    é livre-docente pela USP doutor e mestre pela PUC- SP advogado consultor e parecerista em Brasília. Foi consultor-geral da União e procurador-geral adjunto da Procuradoria-Geral da Fazenda Nacional.

20 de junho de 2021, 8h00

Brito Broca (1903-1961) ensaísta e iluminado crítico literário, discorreu sobre o padre no romance brasileiro. Opôs as formas como romantismo e naturalismo tratavam dos clérigos. São visões completamente opostas. Retomo uma delas. Em "O Seminarista", de Bernardo Guimarães (1825-1884) tem-se enredo marcado pela oposição entre o amor carnal e o amor à igreja. Eugênio, o protagonista central, equaciona o conflito psicológico e sensual que vivia com a loucura, que é menos simbólica do que efetivamente real. É o trato romântico de uma antítese irresolvível, que predicava na tradição barroca, marcada por antíteses. Nós brasileiros, parece-me, somos eternamente barrocos.

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Em "O Missionário", de Inglês de Sousa (1853-1918), o desate foi outro. Nós brasileiros queremos nos livrar do barroco. O padre Morais, herói desse romance, reúne-se a uma bela mameluca. Nesse caso, prosa naturalista, a natureza reivindicou seus direitos. No primeiro caso, que foi aqui tratar, a narrativa romântica não se atreveu a resolver um dilema posto, do ponto de vista do chamados naturais. Instintos, diria a antropologia social. Pulsões, diriam os psicanalistas. Em "O Seminarista" o escritor sublima o conflito com uma morte e com ato cheio de desatinos. Em parte, retomou a tradição do amor impossível, que William Shakespeare (1564-1616) problematizou em "Romeu e Julieta", e que Abelardo e Heloisa viveram na vida real, no século XII. E que parece nós recorrentemente vivemos.

 Em "O Seminarista" temos uma relação fortíssima de amizade que vinha da infância, e que unia Eugênio, filho do fazendeiro Francisco Antunes, a Margarida, filha da viúva Umbelina. Filha e mãe eram agregadas na fazenda de Antunes. Bernardo Guimarães discorre sobre essa relação que havia no campo, por intermédio da qual construíam-se relações de proteção. O agregado atendia ao proprietário rural, e dele recebia permissão para viver em suas terras. O agregado plantava uma roça de subsistência e oferecia vários serviços, que inclusive vendia para fora dos limites da fazenda.

Em "O Seminarista" tem-se a descrição de um "mutirão", que consistia em momento de auxílio mútuo, entre os vários agregados, que ocorria na transição entre os tempos bem marcados da vida rural: roçar, plantar, capinar e colher. Nesse sentido, a obra literária socorre o registro histórico, como fonte primária, discorrendo sobre costumes e características do tempo no qual a narrativa se desdobra. "O Seminarista", nesse ponto de vista, é também um livro de história.

Eugênio e Margarida se dão bem como amigos, desde a infância. Na linguagem exagerada do narrador, "eram como duas flores silvestres em botão, nascidas da mesma haste, nutrindo-se da mesma seiva, acariciadas pela mesma aragem, que ao abrirem-se cheias de viço e louçania encontravam-se sorrindo-se e namorando-se em face uma da outra, e balanceando-se às auras da solidão procuravam beijar-se trocando entre si eflúvios de amor". Não se largavam.

O leitor lembra os folguedos de Capitu e Bentinho, ainda que Bernardo Guimarães não tivesse em mente o desate enigmático com o qual Machado de Assis conduziu "Dom Casmurro". Há em "O Seminarista" uma cena marcante que alimenta as desconfianças da mãe de Eugênio e do próprio Eugênio, à medida em que a narrativa avança. Margarida fora enrolada por uma imensa cobra (uma jararaca). Depois de muito sofrimento de quem tudo presenciou, foi salva. A mãe de Eugênio entendeu no fato um péssimo presságio, equiparando Margarida com Eva, e com a cena bíblica da expulsão do paraíso.

Eugênio segue para o seminário. Os superiores flagraram alguns escritos seus, dando conta da paixão que o rapaz efetivamente vivia. Advertido, viveu um martírio, na tentativa de expiar a imensa culpa que a situação lhe causava. Os pais descobriram o afeto que o filho sentia pela agregada. Umbelina e Margarida foram expulsas da fazenda. Envenenaram o juízo do filho, a quem fizeram supor que Margarida havia se casado. Desesperado, Eugênio voltou-se contra seus sentimentos, sentindo-se traído, confirmando intimamente a passagem da cobra. Chegou a acreditar que o demônio o tentava na pessoa de Margarida.

Afastou-se. Ordenou-se padre. Retornando à fazenda do pai (todo o enredo se passa em Minas Gerais, Eugênio estudou em Congonhas) o padre então ordenado expõe-se a um desate trágico. O final não é nada feliz. O desfecho é funesto, o que segue a estética do romantismo. O padre, ao presenciar a amada morta na igreja, jogou com fúria os paramentos sacerdotais aos pés do altar e, "com os olhos desvairados, os cabelos hirtos, os passos cambaleantes", atravessou a multidão pasmada e saiu correndo pela porta principal. Ainda que de um modo distinto do que ocorria nas narrativas naturalistas, em "O Seminarista" os personagens também pagam seus tributos para a natureza.

Um certo determinismo parece rondar a experiência humana. Somos prisioneiros de nossa condição, o que sugere implicações com o dogma do livre-arbítrio. Ainda não sabemos bem ao certo se somos protagonistas de rotas já traçadas ou se somos donos de nossos caminhos. Esse dilema tem também uma dimensão de responsabilidade penal. É fácil atribuir o mal ao destino, o desatino à fatalidade e o delírio ao acaso. Essa tensão acompanha a criminologia desde Alfonso Tostado (século 15) quando se confundia o crime com a demonologia.

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