Opinião

Reflexão tributária sobre a "Fantasyland": o que viagens para a Flórida não contam

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19 de junho de 2021, 16h13

Anestesiados pelos parques da Disney e outlets da Flórida, a tradicional família brasileira retorna ofuscada com delírios e rompantes liberais, desconhecendo que por detrás de toda a pujança econômica há vários mecanismos para compensar os tributos mais baixos sobre o consumo. Se, por um lado, pagam-se menos tributos sobre o consumo, por outro, a renda e o patrimônio sofrem incidência sob pressupostos minimamente equitativos — ou seja, possuem um peso maior na arrecadação e oneram proporcionalmente mais aqueles com maior capacidade de concorrer para os gastos do Estado. There is no free lunch!

Na esfera federal, a tributação sobre a renda de pessoa física nos EUA abriga sete faixas, variando as alíquotas entre 10% e 37%. Tributam-se inclusive os rendimentos oriundos de dividendos, com alíquotas específicas. Com a peculiaridade da competência concorrente nessa espécie, os estados também tributam a renda, incidindo com alíquotas de até 13% (United States, 2021 [1]). Dependendo da legislação estadual, algumas esferas locais igualmente exercem a competência.

Antes da Tax Cuts and Jobs Act of 2017 (TCJA), as corporations chegavam a ter a renda/lucro tributados em até 35% (Gassen e Valadão, 2020, p.130  [2]). 

No Brasil, porém, o imposto sobre a renda da pessoa física, sujeita ao ajuste anual, sofre a incidência de quatro faixas, com alíquotas entre 7,5 e 27,5%,

Além disso, pode-se dizer que, em geral, as empresas dos viajantes brasileiros não são tributadas pelo lucro real (apenas 1,38% recolhem 15+10%=25%), e sim pelo regime do lucro presumido (7,2% recolhem a alíquota que incide apenas sobre o valor resultante da aplicação de percentuais sobre a receita bruta, variando entre 1,6% e 32%, ou seja, exclui-se do cálculo o percentual de despesas presumidas que varia entre 98,4% e 68%) ou pelo Simples Nacional (75,52%), conforme estatísticas de quantidade de Cadastro Nacional da Pessoa Jurídica (CNPJs) [3].

Do ponto de vista da arrecadação, desonerações tributárias para os optantes do lucro presumido e simples, equivalentes a renúncia fiscal, corresponderam, respectivamente, R$ 1.445 milhões e R$ 15.363 milhões, segundo os dados da Receita Federal do Brasil (RFB) [4].

Não se pode olvidar que esses números não levam em consideração a isenção sobre os dividendos percebidos pelos sócios, e nem todas as outras formas de distribuição disfarçada, o que acaba por tornar o tratamento ainda mais benéfico.

Se comparado com a carga tributária sobre a renda e lucro do Brasil (7%), o que se observa é uma diferença muito grande tanto em relação aos EUA (12,4%) quanto à média do bloco do Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE) (11,4%)[5].

Portanto, descabe o argumento de que a alíquota de 34% (Imposto sobre a renda das pessoas jurídicas ou IRPJ/Contribuição Social sobre o Lucro Líquido ou CSLL) seria injusta (por si só) se comparado com outros países e/ou que seria impeditivo determinante para o crescimento do país.

Não é novidadeira a insistência no discurso sobre o fenômeno da repercussão tributária, popularizado no mantra de que a redução de impostos sobre as empresas, em especial sobre o lucro, tenderia a beneficiar, no médio-longo prazo, tanto os sócios e investidores em geral quanto trabalhadores e consumidores.

Recentemente, o assunto reacendeu por ocasião dos debates envolvendo o TCJA. Na oportunidade, seus defensores apresentaram uma série de estimativas, alardeando números animadores, segundo os modelos preditivos utilizados. Pregando cautelas, Burman e Slemrod (2020, p. 71-72 [6]) alertavam que uma resposta conclusiva acerca dos seus reais efeitos  além, óbvio, de favorecer diretamente os donos dos negócios  seria praticamente impossível, especialmente porque deveria ser levado em consideração o impacto que geraria nas contas públicas (por exemplo, queda de arrecadação e gastos com financiamento da dívida).

Ao fim do mandato do ex-presidente Donald Trump, o que se confirmou foi que a melhora de alguns indicadores nos primeiros anos (Produto Interno Bruto ou PIB e taxa de desemprego) nem de longe satisfez as promessas de redução do déficit público e do déficit comercial com a China. Por outro lado, a anêmica atuação no campo das políticas sociais tornou a economia mais vulnerável à crise gerada pela pandemia, experimentando um acelerado retrocesso naqueles índices. Com o aprofundamento do abismo social e da precarização do emprego, o governo foi forçado relaxar as premissas mais liberais, chegando a injetar trilhões de dólares na economia que se esfacelava (Thorbecke, 2021 [7]).

Doutra banda, a propriedade, enquanto fato econômico, também é, regra geral, tributada por todas as esferas de governo no tio Sam. Por exemplo, o imposto sobre a transferência causa mortis (estate tax), instituído pela União, é predominantemente cobrado em face da parcela mais rica da população, com alíquotas progressivas que variam entre 18 e 40%. Enquanto no Brasil, o imposto equivalente (Imposto de transmissão causa mortis e doação ou ITCMD) é cobrado apenas pelos estados, com uma alíquota média máxima de 4%.

No somatório de todos os tributos incidentes sobre o uso, a propriedade ou a transferência de patrimônio, percebe-se a enorme diferença do peso sobre o PIB em cada um dos países, 1,5% no Brasil e 4,2% nos EUA, conforme indica comparativo elaborado pela Receita Federal do Brasil (RFB) [8].

Esses levantamentos corroboram o que venho afirmando a respeito do forte componente ético e moral envolvendo a tributação (por exemplo, Rocha, 2021 [9]). Os indivíduos, muitas vezes, estão assentados em um senso comum dentro do qual enxergam apenas aquilo que querem (ou lhes é permitido) ver. É a esse tipo de esquizofrenia moral que Dworkin (2011 [10]) alude quando faz menção a pessoas comprometidas com princípios conflitantes entre si. No calor do momento, bradam contra os altos (ou alta dos) impostos, mas, quando instadas sobre os serviços públicos, clamam por uma prestação de mais qualidade (vide pesquisa nos EUA que aponta exatamente esse sentimento contraditório [11]).

Aqueles que vão a passeio impressionam-se com o tom verde reluzente da grama dos pa(í)s da Liberdade. Atrás do backstage, porém, a terra do showbusiness se destacou dentre os países que tiveram o maior crescimento da participação da renda daqueles que representam os 1% mais ricos (OCDE, 2016 [12]). Aliás, as supostas medidas liberalizantes da TCJA colaboraram para encolher ainda mais a classe média e a trabalhadora, provavelmente onde se inseririam a maior parte dos viajantes brasileiros. Embora o american dream cultue a imagem de mundo melhor sem impostos, marcado pelo filme de sua independência da Inglaterra, a promessa não passa de ficção. Basta ver que a primeira colocação no ranking do PIB não lhe dá um fastpass na fila do IDH (17º) e, pior, o aproxima dos países mais pobres no que diz respeito ao medidor de desigualdade  Gini (54º).

Em desfecho, questiono se aqueles que externam um paradigma em que se rivaliza a tributação com o direito de propriedade estão, de fato, interessados na construção de uma sociedade mais justa e igualitária, ou simplesmente desejam manter seus privilégios. Em tom retórico, interrogo, por exemplo, se estão dispostos a pagar proporcionalmente mais tributo sobre a renda e o patrimônio, tal qual nos EUA e demais países da OCDE. Se estão prontos para firmar um pacto social em torno do cumprimento das obrigações tributárias, mitigando, inclusive, o direito ao sigilo contra o fisco e, ainda por cima, sujeitando-se à pena de prisão, tal como fora até Al Capone. Se suas convicções não resistirem nem a essas indagações iniciais, melhor mesmo é continuarem como free riders, aproveitando o que tem de melhor cada um dos países.

Plot twist: um fato que daria uma baita história ocorreu no período entre os anos 50 e 60, quando a alíquota de imposto sobre a renda dos mais ricos chegou a 90% [13], mas não ocorreu nenhum desastre na economia norte-americana, pelo contrário, experimentou um crescimento do PIB e da atividade (Burman e Slemrod, 2020, p.158). Imagine um roteiro com o milionário Tony Stark (Iron Man) transformando-se no vilão da história! Pensando bem, o filme não teria tanto apelo para Hollyowood; talvez, quem sabe, para um drama francês…


[2] Tributação nos Estados Unidos e no Brasil: estudo comparativo da matriz tributária. São Paulo: Almedina, 2020.

[6] Taxes in America: What Everyone needs to know. New York: Oxford University Press, 2020

[8] Op. cit. 2018.

[9]O caso Mcculloch v. Maryland e o caso do ICMS na base de cálculo da PIS/COFINS (RE 574.706/PR): O QUE O CHIEF JUSTICE MARSHALL DIRIA?.   https://emporiododireito.com.br/leitura/o-caso-mcculloch-v-maryland-e-o-caso-do-icms-na-base-de-calculo-da-pis-cofins-re-574-706-pr-o-que-o-chief-justice-marshall-diria.

[10] A raposa e porco-espinho: Justiça e Valor. Tradução por Marcelo Brandão Cipolla. São Paulo: Editora WMF Martins Fontes, 2014, p.158.

[11] Leonard E. Burman e Joel Slemord.Taxes in America: What Everyone needs to know. New York: Oxford University Press, 2020, p.21.  Em complementação, indico outro artigo em que trato de algumas das causas e sintomas dessa doença: https://emporiododireito.com.br/leitura/entre-a-legalidade-e-igualdade-tributaria-kitsch-e-kelsen.

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