Opinião

Prerrogativa de requisição pela Defensoria é patentemente constitucional

Autor

  • Rodrigo Casimiro Reis

    é defensor público do estado do Maranhão assessor de ministra do Superior Tribunal de Justiça membro da Comissão Criminal do Condege e especialista em Direito Constitucional.

19 de junho de 2021, 9h06

O presente artigo aborda a ADI 6.852 [1], na qual a Procuradoria-Geral da República sustenta a inconstitucionalidade material dos artigos 8º, XVI [2]; 44, X [3]; 56, XVI [4]; 89, X [5]; e 128, X [6], da LC 80/1994, sob o argumento de que a prerrogativa de requisição conferida à Defensoria Pública ofende os princípios constitucionais da isonomia, do contraditório, do devido processo legal e da inafastabilidade do controle jurisdicional (artigo 5º, caput, XXXV, LIV e LV, da CF/88).

O Ministério Público Federal aduz, em síntese, que os artigos de lei atacados "além de subtraírem vários atos à via jurisdicional (…), desequilibram a relação processual, notadamente na produção de provas, ao conferirem poderes exacerbados a apenas uma das partes (…)".

Com o fim de corroborar os argumentos lançados na exordial, o MPF colaciona dois julgados do STF que decidiram questão em torno 1) da prerrogativa dos Procuradores Federais de serem intimados pessoalmente nos processos em curso nos Juizados Especiais Federais (ARE 648.629) [7] e 2) do poder de requisição conferido pelo artigo 178, IV, "a", da Constituição Estadual do Rio de Janeiro à Defensoria Pública fluminense (ADI 230) [8].

Com idêntica causa de pedir, a PGR ajuizou outras 22 ações diretas de inconstitucionalidade perante a Suprema Corte, impugnando dispositivos de leis estaduais que, na maior parte dos casos, previram, em simetria ao que foi estatuído na LC 80/94, a prerrogativa de requisição a membros das Defensorias Públicas Estaduais [9].

Fixadas essas premissas, tem-se que a tese defendida pela Procuradoria-Geral da República nos autos da ADI 6.852, no entender desse subscritor, encontra-se alicerçada em ponto de vista que enxerga a Defensoria Pública com lentes do passado  e o passado, como adverte o compositor Belchior, "é uma roupa que não nos serve mais" [10].

Em relação aos julgados paradigmas colacionados pelo MPF, verifica-se que tais precedentes não guardam similitude fático-jurídica com o caso retratado na ADI 6.852.

No que tange ao recurso extraordinário em que se discutiu a intimação dos procuradores federais (ARE 648.629), o Pretório Excelso analisou prerrogativa diversa da tratada na ação direta ora examinada e que foi outorgada pelo legislador à advocacia pública federal, carreira submetida a regime jurídico constitucional diferente do que rege a Defensoria Pública.

No tocante à ADI 230, observa-se que essa ação direta foi julgada pela Suprema Corte no ano de 2010, antes, portanto, da nova realidade constitucional vivenciada pela Defensoria Pública, razão pela qual, nas palavras de Franklyn Roger et al, "No caso da Emenda Constitucional nº 80/2014, o Congresso Nacional superou a interpretação fixada pela Supremo Tribunal Federal na ADI nº 230/RJ (…)" [11].

Refutada a similitude dos julgados indicados como paradigmas, verifica-se que o MPF estrutura a ADI 6.852 sob o enfoque da atuação estritamente individual (e judicializada) da Defensoria Pública (fazendo uma analogia — injustificada a nosso ver — com a nobre função desempenhada pelos advogados particulares), asseverando que a prerrogativa de requisição poderia promover um desequilíbrio na relação processual, dotando os defensores públicos de atribuição não conferida aos causídicos.

Ocorre que o autor da ação de controle concentrado descura que o Poder Constituinte derivado reformador, por meio da EC 80/2014, alocou a Defensoria Pública e a Advocacia em seções distintas no capítulo da Constituição que trata das funções essenciais à justiça, tudo a demonstrar (de forma cabal) a desvinculação da Defensoria Pública do regime jurídico que regula a advocacia.

Sobre o tema, tem-se que o ministro Gilmar Mendes, nos autos do RE 1.240.999 [12] (recurso pendente de conclusão de julgamento e que encontra-se submetido ao rito da repercussão geral — tema 1.074), proferiu voto no qual foi enfático ao reconhecer o quão diversos são as atribuições e os regramentos aplicáveis aos defensores públicos e aos advogados:

"A importância da Defensoria Pública para a consolidação da democracia e a realização da justiça social é inegável. (…)

Dessa forma, sempre balizados por premissas constitucionais básicas, como a dignidade da pessoa humana, a busca da cidadania, redução de desigualdades, o acesso universal à Justiça, entre tantos outros, sedimentaram-se objetivos institucionais que foram positivados, quase vinte anos depois, com a promulgação da ora questionada Lei Complementar 132, de 7.10.2009. (…)

Com o advento da Emenda Constitucional 80/2014, qualquer possibilidade de crise identitária foi sanada. A Defensoria Pública teve sua personalidade bem definida, com atribuições devidamente explicitadas, sem qualquer espaço para dúvidas ou ilações. (…)

Ocorre que a alteração constitucional de 2014, que modificou a disposição do Capítulo IV da Constituição Federal, eliminou residuais dúvidas em relação à natureza da atividade dos membros da Defensoria Pública. Tais membros definitivamente não se confundem com advogados privados ou públicos. (…)

A diferença entre a atuação de um advogado (particular) e a de um defensor público é clamorosa, perceptível inclusive antes do advento da EC 80/14. (…)."

É preciso deixar claro que a prerrogativa de requisição foi concedida pelo legislador complementar não com o escopo de beneficiar a instituição defensorial em eventual demanda individual, mas, sim, como meio (teoria dos poderes implícitos) para proporcionar a efetiva tutela (judicial e extrajudicial) dos direitos individuais e coletivos lato sensu da população assistida (hipossuficientes e hipervulneráveis [13]).

O "poder" de requisição (tal como denominado pelo autor da mencionada ação direta) é instrumento que viabiliza o alcance da missão outorgada pela Carta Magna à Defensoria Pública, que é a de promover a materialização do Estado Democrático de Direito, conferindo cidadania a um grande contingente de brasileiros e estrangeiros que aqui habitam e reduzindo, por conseguinte, as desigualdades sociais, objetivo comum à instituição defensorial [14] e à República Federativa do Brasil [15].

Ao fim e ao cabo, a requisição ora discutida é uma prerrogativa de titularidade da população vulnerável (que, via de regra, enfrenta dificuldades em obter, junto ao Poder Público, o acesso a dados do seu interesse e que possam subsidiar eventual demanda judicial), camada do estrato social historicamente negligenciada por políticas públicas e que tem na Defensoria Pública um fôlego de esperança em ver resguardado o direito constitucional de acesso à Justiça [16] e a observância dos direitos fundamentais mais comezinhos.

Não há, portanto, exagero em afirmar que a citada prerrogativa, primordialmente em um país como o Brasil — que é marcado pela corriqueira ineficiência do Estado em prestar serviços públicos essenciais de qualidade (relacionados à segurança, saúde, educação, saneamento básico) — revela-se imprescindível para que a Defensoria Pública, instituição do sistema de justiça que mantém permanente contato com a população necessitada, possa fiscalizar e cobrar a execução de políticas públicas de qualidade.

A referida prerrogativa v.g. constitui instrumento que propicia 1) a correta fiscalização da execução penal [17] (por meio do acesso a dados das unidades prisionais) e 2) a coleta de elementos que viabilizem a solução extrajudicial de litígios [18] (por meio da pactuação de Termos de Ajustamento de Conduta [19]) e que possam instruir eventual procedimento administrativo instaurado para ajuizamento de ação civil pública, funções institucionais que, de certo, restariam prejudicadas acaso reconhecida a pretendida inconstitucionalidade.

Neste ponto, vale rememorar a seguinte reflexão formulada pela ministra Carmen Lúcia nos autos da ADI 3.943 [20]:

"A quem interessaria limitar os instrumentos e as vias assecuratórias de direitos reconhecidos na própria Constituição em favor dos desassistidos que padecem tantas limitações? (…)

A ninguém comprometido com a construção e densificação das normas que compõem o sistema constitucional de Estado Democrático de Direito."

Agrega-se a todos esses argumentos favoráveis à constitucionalidade dos dispositivos questionados pelo MPF, o fato de que o Poder Constituinte, nos termos do artigo 134, caput, da CF/88, incumbiu a Defensoria Pública da atribuição de promover os direitos humanos a nível nacional (estando a instituição legitimada, inclusive, a acionar os sistemas internacionais de proteção [21]), constituindo a prerrogativa da requisição recurso indispensável ao fiel desempenho de tal mister, como sói acontecer em situações nas quais se revelou necessária a busca de informações acerca de medidas tomadas pelo Estado com o fim de preservar o direito à vida de povos indígenas [22] e o direito à saúde de cidadãos acometidos com a Covid-19 [23].

Ressalte-se, ainda, que o MPF, com o fim de respaldar a pretensa inconstitucionalidade deduzida na inicial, afirma que o "poder" de requisição foi conferido "somente a determinadas autoridades" e instituições, dentre elas ao Ministério Público.

Ocorre que Defensoria Pública e Ministério Público, ao menos na seara cível, são, no entender desse signatário, instituições "irmãs", co-legitimadas para a tutela de direitos coletivos da população e que devem pautar sua atuação com o firme propósito de exigir do Poder Público uma conduta consentânea com a ordem constitucional.

Nesse diapasão, colaciono trecho de voto em que a ministra Rosa Weber, nos autos da ADI 5.296 [24], retrata a simetria existente entre a Defensoria Pública e o Ministério Público, tudo a demonstrar a constitucionalidade da prerrogativa ora examinada:

"Não bastasse, a particular arquitetura institucional introduzida pela Emenda Constitucional nº 74/2013 encontra respaldo nas melhores práticas recomendadas pela comunidade jurídica internacional. (…)

Observo, ainda, que o artigo 127, § 2º, da Constituição Federal assegura ao Ministério Público autonomia funcional e administrativa, e no § 1º, aponta como princípios institucionais da instituição a unidade, a indivisibilidade e a independência funcional, que a Emenda Constitucional no 80, de 4/6/2014, ao incluir o § 4º no artigo 134, também veio a consagrar como princípios institucionais da Defensoria Pública — a unidade, a indivisibilidade e a independência funcional.

Densificado, assim, deontológica e axiologicamente, pelo Poder Constituinte Derivado o paralelismo entre as instituições essenciais à função jurisdicional do Estado que atuam na defesa da sociedade, sem desbordar do espírito do Constituinte de 1988".

Ante o exposto, resta demonstrada a chapada [25] constitucionalidade da prerrogativa de requisição atribuída pelo legislador complementar federal à Defensoria Pública, sendo descabido, nos termos do princípio constitucional da proibição do retrocesso [26], que se regrida na tutela jurídica da população vulnerável.

 

[1] Protocolada em 20/05/2021, rel. ministro Edson Fachin, pendente de julgamento.

[2] Artigo 8º São atribuições do Defensor Publico-Geral, dentre outras: (…)

XVI – requisitar de qualquer autoridade pública e de seus agentes, certidões, exames, perícias, vistorias, diligências, processos, documentos, informações, esclarecimentos e demais providências necessárias à atuação da Defensoria Pública;

[3] Artigo 44. São prerrogativas dos membros da Defensoria Pública da União: (…)

X – requisitar de autoridade pública e de seus agentes exames, certidões, perícias, vistorias, diligências, processos, documentos, informações, esclarecimentos e providências necessárias ao exercício de suas atribuições;

[4] Artigo 56. São atribuições do Defensor Publico-Geral: (…)

XVI – requisitar de qualquer autoridade pública e de seus agentes, certidões, exames, perícias, vistorias, diligências, processos, documentos, informações, esclarecimentos e demais providências necessárias à atuação da Defensoria Pública;

[5] Artigo 89. São prerrogativas dos membros da Defensoria Pública do Distrito Federal e dos Territórios: (…)

X – requisitar de autoridade pública ou de seus agentes exames, certidões, perícias, vistorias, diligências, processos, documentos, informações, esclarecimentos e providências necessárias ao exercício de suas atribuições;

[6] Artigo 128. São prerrogativas dos membros da Defensoria Pública do Estado, dentre outras que a lei local estabelecer: (…)

X – requisitar de autoridade pública ou de seus agentes exames, certidões, perícias, vistorias, diligências, processos, documentos, informações, esclarecimentos e providências necessárias ao exercício de suas atribuições;

[7] ARE 648629, Relator(a): LUIZ FUX, Tribunal Pleno, julgado em 24/04/2013, PROCESSO ELETRÔNICO REPERCUSSÃO GERAL – MÉRITO DJe-069 DIVULG 07-04-2014 PUBLIC 08-04-2014 RTJ VOL-00237-01 PP-00323

[8] ADI 230, Relator(a): CÁRMEN LÚCIA, Tribunal Pleno, julgado em 01/02/2010, DJe-213 DIVULG 29-10-2014 PUBLIC 30-10-2014 EMENT VOL-02754-01 PP-00079

[9] Disponível em: <http://www.mpf.mp.br/pgr/noticias-pgr/pgr-questiona-leis-estaduais-e-distrital-que-garantem-poder-de-requisicao-as-defensorias-publicas> Acesso em 15 junº 2021

[10] BELCHIOR, Antonio Carlos. Velha roupa colorida. In: Alucinação. Rio de Janeiro: Philips, 1976.

[11] ESTEVES, Diogo. SILVA, Franklyn Roger Alves. Princípios institucionais da Defensoria Pública. 2. Ed. Rio de Janeiro: Forense, 2017. P. 714.

[12] Disponível em: <http://portal.stf.jus.br/processos/detalhe.asp?incidente=5796390> Acesso em 15 junº 2021.

[13] EREsp 1192577/RS, rel. Ministra LAURITA VAZ, CORTE ESPECIAL, julgado em 21/10/2015, DJe 13/11/2015

[14] artigo 3º-A, I, da LC nº 80/94

[15] artigo 3º, III, da CF/88

[16] artigo 5º, XXXV, da CF/88

[17] artigo 61, VIII, da Lei nº 7.210/84

[18] artigo 4º, II, da LC nº 80/94

[19] artigo 5º, §6º, da Lei nº 7.347/85

[20] ADI 3943, Relator(a): CÁRMEN LÚCIA, Tribunal Pleno, julgado em 07/05/2015, ACÓRDÃO ELETRÔNICO DJe-154 DIVULG 05-08-2015 PUBLIC 06-08-2015 RTJ VOL-00236-01 PP-00009

[21] artigo 3º-A. São objetivos da Defensoria Pública: (Incluído pela Lei Complementar nº 132, de 2009). (…)

III — a prevalência e efetividade dos direitos humanos; e (Incluído pela Lei Complementar nº 132, de 2009).

artigo 4º São funções institucionais da Defensoria Pública, dentre outras: (…)

III — promover a difusão e a conscientização dos direitos humanos, da cidadania e do ordenamento jurídico; (Redação dada pela Lei Complementar nº 132, de 2009). (…)

VI — representar aos sistemas internacionais de proteção dos direitos humanos, postulando perante seus órgãos; (Redação dada pela Lei Complementar nº 132, de 2009).

[22] Disponível em: <https://www.conjur.com.br/dl/oficio-dpu-indigenas-isolados.pdf> Acesso em 15 junº 2021

[23] Disponível em: <http://www.defensoriapublica.go.gov.br/depego/index.php?option=com_content&view=article&id=2305:dpe-go-cobra-informacoes-sobre-vagas-de-uti-e-enfermaria-para-tratamento-da-covid-19-em-goias&catid=8&Itemid=180> Acesso em 15 junº 2021

[24] ADI 5296 MC, Relator(a): ROSA WEBER, Tribunal Pleno, julgado em 18/05/2016, PROCESSO ELETRÔNICO DJe-240 DIVULG 10-11-2016 PUBLIC 11-11-2016

[25] Termo utilizado pelo ministro Sepúlveda Pertence em voto no qual designou de chapada a inconstitucionalidade de dispositivo de lei federal, de tão clara era a ofensa ao texto constitucional (ADI 1802 MC, Relator(a): SEPÚLVEDA PERTENCE, Tribunal Pleno, julgado em 27/08/1998, DJ 13-02-2004). A contrario sensu, no caso da ADI nº 6.852, a constitucionalidade da prerrogativa de requisição pode ser designada de chapada, de tão flagrante que é sua conformidade com a Constituição da República.

[26] Na definição de André de Carvalho Ramos, "Os direitos humanos caracterizam-se pela existência da proibição do retrocesso (…), que consiste na vedação da eliminação da concretização já alcançada na proteção de algum direito, admitindo-se somente aprimoramentos e acréscimos." (Curso de Direitos Humanos. 7. Ed. São Paulo: Saraiva, 2020. P. 106).

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  • Brave

    é defensor público do Estado do Maranhão, ex-analista judiciário do STJ, ex-assessor da Corregedoria Nacional de Justiça e especialista em Direito Constitucional.

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