Opinião

Julgamento por Tribunais de Contas de contratações relacionadas à epidemia

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19 de junho de 2021, 7h03

Diante da gravíssima situação emergencial na história recente da humanidade, trazida pela pandemia da Covid-19, os estados nacionais se viram diante de um inimigo resiliente, vertiginoso, intangível, versátil e insidioso. Lidar com esse novo adversário exigiu também, desde o início, uma maior flexibilidade e agilidade por parte poder público. A pandemia da Covid-19 mobilizou o mundo em busca de soluções rápidas. Nesse incessante esforço, muitas medidas foram sendo adotadas, adaptadas e corrigidas, à medida que o conhecimento sobre a doença avançava.

Aliado a esse contexto de uma nova ordem, na qual se exige maior agilidade da Administração Pública, foi editada a Lei 13.979/20, de abrangência nacional, que trouxe nova hipótese de dispensa de licitação.

Antes de tudo, importa salientar que a citada lei perdeu sua vigência em 31/12/20, nos termos do Decreto Legislativo 6, de 2020. Nada obstante, a decisão cautelar proferida pelo ministro Ricardo Lewandowski, posteriormente referendada pelo Plenário do Supremo, na ADI 6.625, deu interpretação conforme à Constituição Federal para os artigos 3º, 3º-A, 3º-B, 3º-C, 3º-D, 3º-E, 3º-F, 3º-G, 3º-H e 3º-J, mantendo sua vigência, nos termos da petição inicial:

"Estender a vigência dos dispositivos contidos nos artigos 3º ao 3º-J da Lei nº 13.979/2020 (aqueles que cuidam efetivamente de disposições de trato médico e sanitário de modo mais direto) até que os Poderes Legislativo e Executivo decidam sobre o tema, sendo a extensão aqui pleiteada limitada ao dia 31/12/2021 ou até o término da emergência internacional de saúde decorrente do coronavírus, em decisão da Organização Mundial de Saúde, o que ocorrer por último."

Assim, as demais prescrições da Lei 13.979/20, inclusive as que disciplinam a dispensa de licitação, deixaram de produzir efeitos. No entanto, o Projeto de Lei 1315/2021, de iniciativa do senador Rodrigo Pacheco (DEM/MG),  visando a repristinação da citada lei, vale dizer, o restabelecimento de sua vigência, pode revigorar os demais artigos desamparados pela decisão do STF.

Feitos os esclarecimentos iniciais, importa lembrar, por evidente, que em todos os casos definidos para a dispensa de licitação, e a partir das condições definidas pela Lei 13.979/2020, não foi diferente: estaremos diante da viabilidade de competição. Porém, em face da pandemia, como bem salienta o comando do artigo 37, inciso XXI da Constituição, a lei estabeleceu ressalvas a essa regra geral.

No momento emergencial da Covid-19, é importante salientar de início que em princípio não cabe ao gestor a liberdade de escolha em fazer ou não o certame licitatório. De sorte que, apesar de viáveis os processos licitatórios nas hipóteses ventiladas pela Lei 13.979/20, uma licitação provavelmente acarretaria um alto custo para a sociedade, sendo muito pouco provável que a economia a ser obtida cobriria os prejuízos com o alastramento da pandemia, o aumento de internações graves ou o aumento da letalidade. Nunca é demais lembrar que a Administração Pública se destina à efetivação das necessidades da coletividade, especialmente voltadas à garantia dos direitos fundamentais — no vertente caso, o direito à saúde e à vida.

De outra banda, as lições acima não afastaram o gestor do seu imperativo categórico de selecionar a melhor proposta por meio do manejo de instrumentos capazes de garantir a publicidade, o controle social, a isonomia, a economicidade e a impessoalidade de suas contratações. Não foi por outro motivo que a Lei 13.979/20 exigiu que todas as aquisições ou contratações feitas com base nela sejam disponibilizadas, no prazo máximo de cinco dias úteis, contado da realização do ato, em site oficial específico na internet (artigo 4º, § 2º).

Em vista do até aqui exposto, já é possível compreender que o legislador estabeleceu como métrica a abordagem pela perspectiva do resultado. A flexibilização normativa citada veio pautada pelo alcance da eficiência, da duração razoável do processo de aquisição, da eficácia e da efetividade no combate à pandemia. De sorte que o exame de responsabilização dos gestores deve seguir esse farol. Nada muito diferente do que já havíamos defendendo há longa data para situações gerais [1].

Tamanha é a relevância dada ao resultado que, diante de uma situação excepcional de, comprovadamente, haver uma única fornecedora do bem ou prestadora do serviço, é possível a sua contratação, independentemente da existência de sanção de impedimento ou de suspensão de contratar com o poder público (§ 3º, artigo 4º).

Veja que, embora satisfazendo o princípio da legalidade, o legislador traz uma abordagem desarraigada da legalidade estrita para mirar a eficácia e a efetividade na ação administrativa.

No mesmo sentido de quebra de rigidez, a lei desobrigou na sua vigência a elaboração de estudos preliminares, quando se tratar de bens e de serviços comuns, para a aquisição ou contratação de bens, serviços e insumos (caput do artigo 4º-C).

As situações de emergência vivenciadas nesse ambiente de combate à Covid-19 fizeram com que o legislador exonerasse — em casos excepcionais, sem desprezo da justificativa da autoridade competente — até mesmo a estimativa de preços para o termo de referência para aquisições de bens e serviços (§ 2º, artigo 4º-E)

A Lei 13.979/2020 é inovadora e avançou ainda mais ao possibilitar a contratação por valores superiores à estimativa de preço, decorrentes de oscilações ocasionadas pela variação de preços, desde que observadas as seguintes condições (§ 3º, artigo 4º):

"I — negociação prévia com os demais fornecedores, segundo a ordem de classificação, para obtenção de condições mais vantajosas;

II — efetiva fundamentação, nos autos da contratação correspondente, da variação de preços praticados no mercado por motivo superveniente."

Sem desprezo a essa métrica, o Tribunal de Contas da União fixou no recentíssimo Acórdão 1.335/2020-Plenário, de 20/5/2020, o seguinte entendimento:

"Os processos de contratação relacionados ao enfrentamento da crise do novo coronavírus (covid-19) devem ser instruídos com a devida motivação dos atos, por meio, no mínimo, de justificativas específicas acerca da necessidade da contratação e da quantidade dos bens ou serviços a serem contratados, com as respectivas memórias de cálculo e com a destinação a ser dada ao objeto contratado (artigo 4º-E, § 1º, da Lei 13.979/2020)."

Percebam que o TCU não tentou reinventar a roda: a exigência suscitada por aquele Tribunal visa antes prevenir o arbítrio estatal na seara da Administração Pública Federal ao impor que a autoridade apresente os fundamentos de sua decisão. Tal ensinamento, apesar da referência expressa ao artigo 4º-E, § 1º, da Lei 13.979/2020, pode ser estendido a todas as contratações feitas sob esse novo regime.

A lei igualmente incorporou vigorosamente o princípio da boa-fé objetiva e honrou o princípio da presunção de legitimidade e legalidade dos atos administrativos, ao presumir como comprovadas as condições de (artigo 4º-B):

"I — ocorrência de situação de emergência;

II — necessidade de pronto atendimento da situação de emergência;

III — existência de risco à segurança de pessoas, de obras, de prestação de serviços, de equipamentos e de outros bens, públicos ou particulares;

IV — limitação da contratação à parcela necessária ao atendimento da situação de emergência."

De sorte que a presença de tais condições só pode ser ilidida diante de provas robustas em sentido contrário, uma vez que, nos termos da Lei, a presunção da existência das circunstâncias citadas milita em favor do agente público.

O princípio da duração razoável do processo também não ficou de fora e foi consideravelmente homenageado nesta norma. No momento em que se busca enfrentar um oponente da dimensão da Covid-19, nada mais coerente do que atender a esse direito fundamental garantido pelo inciso LXXVIII, do artigo 5º da Constituição. Diante desse enorme desafio, os prazos dos procedimentos licitatórios foram reduzidos pela metade (artigo 4º-G); os recursos dos procedimentos licitatórios passaram a ter somente efeito devolutivo, ou seja, as decisões não perderam a força enquanto os recursos estavam pendentes de julgamento (§ 2º, artigo 4º-G), diversamente do efeito suspensivo preconizado no artigo 168 da Lei 14.133/2021 (Lei de Licitações e Contratos Administrativos).

Cabe um alerta aos órgãos julgadores, sejam os tribunais de contas ou julgadores do Judiciário. Certamente, muitas questões serão analisadas por esses órgãos daqui a alguns anos, quando, assim desejamos, a pandemia tiver sido superada e, nesses casos, é preciso não perder de vista a situação de emergência, de sofrimento da população em que as decisões de compra de insumos, equipamentos, dentre outros foram tomadas. Não se pode julgar fatos passados com os olhos do presente.

Finalmente, cumpre frisar que a Lei elegeu os Tribunais de Contas como responsáveis por aumentar a segurança jurídica na sua aplicação e destacando a atuação preventiva por meio de respostas a consultas. (Parágrafo único, artigo 4º-K.)

Em análise final, observa-se que o legislador almejou que o gestor levasse realmente a sério os resultados no combate à pandemia, tanto na execução das políticas públicas, quanto, pela análise dos processos levados aos órgãos de controle, a fim de que fosse superado o excesso de formalismo. Não é o momento de o administrador público se ancorar na famigerada "paralisia da caneta"; o momento é de ação pautada no interesse da coletividade.

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