Mudar pra não mudar

Nova Lei de Recuperação Judicial trouxe avanço tímido, afirma especialista em RJ

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19 de junho de 2021, 7h31

Não é exagero dizer que a Nova Lei de Recuperação Judicial e Falências (Lei nº 14.112), promulgada em dezembro do ano passado, causou frustração nos especialistas no assunto. Após um longo período de tramitação no Congresso, o texto produzido com a intenção de modernizar a Lei nº 11.101, de 2005, deixou no ar a sensação de que poderia ter apresentado um avanço muito maior.

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É assim que pensa a advogada carioca Juliana Bumachar, especialista em recuperação judicial que atua há quase 20 anos no escritório Bumachar Advogados Associados, no Rio de Janeiro. Embora considere que a nova lei tem pontos positivos, ela sustenta que alguns aspectos problemáticos da área poderiam ter sido melhor resolvidos.

Como exemplo, ela cita o artigo 1º da Lei nº 11.101, que diz que a recuperação judicial se destina ao "empresário" e à "sociedade empresária". A advogada defendia a inclusão no texto da expressão "agente econômico", o que o deixaria mais claro e abrangente. Como isso não ocorreu, muitas dúvidas permanecem no ar, como a possibilidade de associações sem fins lucrativos poderem se beneficiar da RJ — a letra fria da lei diz que não podem, mas a jurisprudência recente aponta para o caminho oposto.

"A gente já via decisões abrindo a possibilidade de associações pedirem recuperação, cooperativas pedirem recuperação. Mas essa modificação não foi aceita pelo Congresso, então o artigo 1º foi mantido da forma como estava. E a gente tem uma jurisprudência hoje caminhando para essa modificação, por isso eu acho que acaba ocorrendo um pouco de insegurança jurídica", lamentou Juliana.

Em entrevista à ConJur, a advogada falou sobre esse e vários outros temas muito caros à sua área de atuação. Ela deu detalhes sobre os efeitos devastadores causados pela pandemia da Covid-19 nas empresas brasileiras, especialmente porque ninguém esperava que a crise durasse mais de um ano. Além disso, comentou os benefícios da mediação e contou o que o grupo de trabalho do Conselho Nacional de Justiça (CNJ) para recuperação judicial e falências, do qual ela faz parte, tem feito para facilitar a vida dos operadores do Direito.

Leia a seguir a entrevista:

ConJur — Quais foram os efeitos mais visíveis da pandemia da Covid-19 na área de recuperação judicial e falências?
Juliana Bumachar — A gente sabe que a economia sempre foi muito cíclica, então ora você tem aumento de processos de RJ, ora você tem mais processos de falência, então a economia melhora e aí acontece uma queda… E a Covid-19 veio mudando tudo isso. Eu esperava por uma onda de processos no ano passado e essa onda não chegou. E por que não chegou? Porque os devedores renegociaram as suas dívidas. A verdade é que bancos, fornecedores, os credores em geral, estavam aptos a fazer essa negociação com os devedores. Então tivemos a atuação dos Cejuscs, que são centros de mediação e conciliação empresariais focados nesse tipo de negociação. Só que todo mundo estava esperando que a Covid-19 fosse baixar e que a gente decolasse com a chegada da vacina, mas isso não aconteceu.

E o que vai acontecer agora? Vamos voltar a renegociar? Como, se já renegociaram no ano passado? Então a gente vai entrar com um processo de recuperação, seja judicial ou extrajudicial. E o maior efeito disso é a instabilidade econômica dentro da empresa. A Covid-19 é um fator externo que tem um reflexo dentro de determinados segmentos empresariais, resultando na queda de receita e de faturamento de uma companhia, o que eventualmente a torna incapaz de cumprir certos acordos que firmou no passado. Então essa insegurança causada pelo cenário econômico é muito grande, e isso se transforma em insegurança do devedor na hora de oferecer soluções e do credor para acreditar nessas soluções.

ConJur — E qual é a melhor maneira de lidar com essa desconfiança dos credores?
Juliana Bumachar — O credor quer garantia, e garantia eu já dei para todo mundo no ano passado. Então estamos em um cenário complicado. Eu me lembro de ter conversado com um grande amigo do setor de insolvência e ele me falou o seguinte: "A gente não só vai ter trabalho novo como a gente vai ter de fazer um trabalho novo a partir daqueles planos, daquelas negociações que já foram homologadas, inclusive judicialmente". Então, em muitos dos meus processos de recuperação, que pareciam estar resolvidos, estou tendo de fazer novos planos porque não estou sendo capaz financeiramente de honrar o pagamento.

ConJur — O que tem sido feito neste momento para socorrer os empresários em dificuldade?
Juliana Bumachar — É feita uma análise de cada caso. Nessa área de insolvência, não existe um processo igual ao outro. Hoje o advogado trabalha em conjunto com as consultorias, então nós fazemos um trabalho para sabermos qual é o melhor remédio para oferecer ao devedor. Aí, se o devedor já negociou, será que há espaço para negociar de novo? Se o devedor quer vender um ativo, será que a recuperação extrajudicial vai dar a garantia que ele quer para essa venda? Será que o cenário de recuperação judicial não é mais seguro?

É uma dificuldade porque a recuperação pressupõe recuperar algo que está funcionando. O restaurante que não se adequou ao delivery, que não abre as portas há um ano, vai se recuperar? Por isso é preciso fazer a análise de cada caso, uma análise jurídica combinada com uma econômico-financeira. Às vezes as próprias empresas têm isso internamente, essa análise financeira, para um oferecimento dos remédios que a lei traz hoje. E eu sou uma defensora da recuperação extrajudicial, acho que vai ser um caminho bem positivo.

ConJur — Já é possível ver algum efeito prático da nova lei ou ainda é muito cedo para isso?
Juliana Bumachar — Eu acho que a gente já começa a ver algumas discussões relevantes sobre a lei. Eu gosto sempre de trazer a questão do artigo 1º: fui uma defensora da modificação desse artigo para incluir (na recuperação judicial) os agentes econômicos. A lei fala de empresário e sociedade empresária. A gente já tinha decisões como a da Universidade Cândido Mendes, a gente já via decisões abrindo a possibilidade de associações pedirem recuperação, cooperativas pedirem recuperação. Mas essa modificação não foi aceita pelo Congresso, então o artigo 1º foi mantido da forma como estava. E a gente tem uma jurisprudência hoje caminhando para essa modificação, por isso eu acho que acaba ocorrendo um pouco de insegurança jurídica.

A gente teve uma alteração do artigo 6º com relação às cooperativas de saúde, mas por que uma cooperativa de saúde pode pedir recuperação judicial e outra cooperativa, sem ser de saúde, não pode? Por outro lado, discussões que já existiam antes da nova lei, e que não foram incluídas na alteração, continuam existindo e vão se consolidando cada vez mais, como essa do agente econômico. Mas é claro que a jurisprudência a respeito das modificações da lei ainda está tímida porque não deu tempo efetivamente de a gente ter essa discussão.

ConJur — Um estudo do Observatório de Insolvência da PUC-SP apontou que em 2019 apenas 18% dos pedidos de recuperação acabaram sem a decretação da falência. A novidade legislativa pode alterar esse quadro?
Juliana Bumachar — Antes da falência, a gente tinha a recuperação judicial, caso a extrajudicial não se mostrasse eficaz. A nova lei trouxe a possibilidade da mediação antecedente, que consiste em você mediar com suspensão das ações. Então a lei hoje oferece mais um remédio antes de a empresa quebrar. Isso para a empresa viável, porque para a que já é inviável, aquelas chamadas de zombie companies, que estão no mercado, mas já não deveriam estar, a lei trouxe uma vantagem que é a melhora no procedimento falimentar. A gente tem um processo de falência hoje com regras mais céleres de avaliação de venda de ativo, do possível fresh start, que é algo sobre o que a gente ainda tem dúvida da eficácia, mas é uma possibilidade de você ter menor prazo para sair do processo de recuperação. Então os prazos estão mais céleres e mais eficazes, o que pode evitar, por exemplo, uma falência como a da Mesbla, que vem de 1999. Então eu acredito que o cenário melhorou tanto para as empresas viáveis quanto para aquelas inviáveis.

ConJur — Você ficou satisfeita com o texto final da nova lei?
Juliana Bumachar — Acho que ele foi tímido, como disse, com essa questão do artigo 1º. Foi tímido em questões que poderiam ter sido enfrentadas, mas não posso dizer que deu errado porque existem questões políticas que a gente desconhece. Então eu acho que, dentro do cenário jurídico que a gente tinha, ela trouxe benefícios, mas havia muito a ser melhorado, sempre há. Mas, ouvindo os especialistas que estavam à frente dos trabalhos, a gente percebe que a questão política muitas vezes impede que cheguemos ao mundo ideal.

Mas também tem o seguinte: a gente não tem tempo para criticar. Acabou. O que está aí, está aí e pronto. Vamos unir esforços para que a gente tenha uma jurisprudência, para tirar as dúvidas com relação a essa lei, e utilizá-la de uma forma correta naquilo que realmente melhorou. Independentemente do posicionamento de dizer se a lei é boa ou se a lei é ruim, eu quero ficar no centro, sabe? Vamos aproveitar o que há de melhor e utilizá-la da melhor maneira, e no que não ficou tão bom vamos tentar jurisprudencialmente trazer uma interpretação para que sirva efetivamente para a melhoria das empresas e dos interesses dos credores, porque é uma balança. Eu mesma, como advogada de devedor, ouço que a lei antes era muito pró-devedor, agora é muito pró-credor. E acho que ela pode ser interpretada das duas formas. A gente tem essa balança, ela não pode estar muito pesada para um lado, ela vai ter de ter um mínimo de equilíbrio porque senão você não tem empresa.

ConJur — A lei tem mais pontos positivos ou negativos?
Juliana Bumachar — Acho que ela tem mais positivos do que negativos, mas há alguns pontos em que poderiam ter sido feitos melhores ajustes. Existe uma crítica grande sobre o plano de credores, se vai ser eficaz ou não. Na mediação pré-processual, os 60 dias são suficientes para negociar? Nossa lei foi baseada na lei americana, mas não dá para a gente ter o código lá de fora como exemplo para cá. Eu falo assim: a recuperação judicial lá fora é um formulário, a nossa é uma inicial. Eu estou com uma aqui que é uma inicial, cheia de documentos, cheia de história. Lá fora é um formulário. Então acho que há pontos que poderiam, sim, ter melhorado.

A questão dos trabalhistas poderia ter melhorado. Um a dois anos para pagamento do trabalhista… O cara aceita. Eu estou com uma recuperação que eu aprovei e os caras estão aceitando receber em cinco anos. E aí? Vai negar? Não paga em um ano. O credor falou assim: "Olha só, para receber 80% de desconto em um ano, isso eu não quero. Eu prefiro receber 10% de desconto e receber em cima". É vontade do credor, mas a lei limita a possibilidade de prosseguir. Outra coisa: exclusão de crédito, isso é uma coisa fracassada. A gente vê isso, como a gente não sai do lugar com crédito fora, tinha de estar todo mundo dentro. Então, acho que há aspectos ali que se prenderam muito a uma, vamos dizer, antiguidade. Mas, fazendo um balanço, eu acho que há mais aspectos positivos do que negativos.

ConJur — A mediação é um caminho para todo mundo? Ela é o futuro da recuperação judicial ou isso é um exagero?
Juliana Bumachar — A mediação pré-processo, do jeito que a lei está prevendo, não sei se vai ser tão utilizada. E a mediação pré-processo é essa sem o Judiciário, é o Cejusc atuando para fazer um acordo etc. Se eu precisar do Judiciário, não vou para essa mediação da seção 2-A da lei, vou direto para uma recuperação extrajudicial. E acho que a mediação tem sido, sim, muito utilizada, também nos processos judiciais. Por quê? Grupos de credores extraconcursais. Então, se a gente tem um plano que não está dando certo, se eu tenho um credor extraconcursal que eu não posso incluir no plano, faço um grupinho e vou tratar daquilo paralelamente ao processo de recuperação judicial. Uma mediação focada em acordos sobre como o plano vai ser apresentado.

Eu tive uma assembleia aprovada recentemente com 90% de credores trabalhistas. 90%! Os credores trabalhistas, na primeira reunião de mediação, falaram assim: "Se a empresa quiser me dar 200% do meu crédito eu não aceito porque odeio o dono da empresa. Eu não confio nele". Então, o problema não era receber o crédito. Aí a mediação foi importante para me ajudar a mostrar que eu não sou advogada do dono da empresa, sou advogada da empresa. E por que o mediador faz diferença? Porque o credor não quer ouvir o devedor, não acredita que o devedor vai dizer verdade, e o mediador está em uma posição imparcial, ouvindo ambas as partes. Então isso tem funcionado com instituições financeiras, com credores trabalhistas, com fornecedores estratégicos. Eu tenho visto resultados efetivos disso em processos de recuperação.

ConJur — Mas é o suficiente para você acreditar que existe aí uma mudança de cultura em curso?
Juliana Bumachar — Eu acho que a mediação já estava vindo, há as recomendações do CNJ… Mas é claro que o fato de existir a possibilidade de mediação dentro da lei traz a possibilidade de isso se tornar efetivamente um paradigma para todas as outras empresas.

Eu não sou aquela pessoa que acha que a mediação não serve para nada, mas também não acho que é a solução de todos os problemas. Então, se eu tinha um plano de recuperação em que não estava conseguindo dialogar com os credores porque eles não confiavam nesse diálogo comigo, por eu ser advogada de um devedor que ele odeia, eu não aprovaria esse plano se eu não tivesse o apoio da mediação. Eu precisei de um intermediador nessa relação. Então acredito que a mediação, quando ela está focada aonde eu quero chegar, ela funciona. A mediação, por si só, não vai resolver o problema da insolvência, mas eu acho que ela pode ser um instrumento para alcançar o objetivo de um dos remédios previstos na lei.

ConJur — Você faz parte de um grupo de trabalho do CNJ que está buscando aperfeiçoamentos na área da recuperação e de falências. O que esse grupo pode fazer para aperfeiçoar a nova lei, se é que pode fazer algo?
Juliana Bumachar — Esse é um grupo muito eclético, tem desembargadores, juízes, advogados, juristas… Eu acho que o objetivo do CNJ é trazer padrões para facilitar o trabalho dos advogados e dos administradores, dos personagens do processo da insolvência. Então nós temos a recomendação, por exemplo, do relatório dos administradores judiciais. Quando a gente fala de administrador judicial de Rio e São Paulo é muito fácil, a gente tem grandes administradores no Rio e em São Paulo, empresa grandes, empresas de consultoria extremamente conhecedoras da matéria. Mas, quando você trata do administrador lá do interior do Rio, será que ele tem condições de fazer um relatório mensal de atividades daquela empresa para o juiz? No momento em que você padroniza, você dá essa ferramenta para ele. Além disso, você ajuda o próprio Judiciário, porque aquilo vem redondo para o juiz também.

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