Diário de Classe

A problemática relação de Bolsonaro com os militares

Autor

  • Danilo Pereira Lima

    é professor do curso de Direito do Centro Universitário Claretiano de Batatais (Ceuclar) doutor — com bolsa financiada pela Capes/Proex — e mestre — com bolsa financiada pelo CNPq — em Direito Público pela Universidade do Vale do Rio dos Sinos (Unisinos) e membro do grupo de pesquisa Hermenêutica Jurídica vinculado ao CNPq e do grupo Dasein — Núcleo de Estudos Hermenêuticos.

19 de junho de 2021, 8h00

No ano de 1655, o rei Luís 14 teria proferido um discurso com a seguinte afirmação: "L’État c’est moi". Embora não existam registros oficiais desse discurso, a afirmação de Luís 14 se consolidou na história das ideias políticas como a postura de um monarca que resistia à racionalização do poder por meio da personalização do Estado. O tempo passou e os governantes franceses foram "convencidos" a se afastarem do personalismo do rei sol. Contudo, em terras brasileiras ainda é possível nos depararmos com declarações personalistas do mesmo tipo, como no caso das seguintes afirmações do presidente da República: "[…] o meu Exército jamais irá às ruas para mantê-los dentro de casa. O meu Exército, a minha Marinha e a minha Aeronáutica jogam dentro das quatro linhas da Constituição". É como se a posição de comandante em chefe das Forças Armadas garantisse ao presidente um controle personalista sobre as três Forças. Vejamos por que as afirmações de Jair Bolsonaro não estão respaldadas na engenharia constitucional do Estado Democrático de Direito.

Spacca
No início da Idade Moderna, quando ocorreu a formação das primeiras monarquias absolutistas, a centralização do poder favorecia a dominação patrimonialista. Não havia uma separação clara entre o patrimônio particular do monarca e as funções assumidas por ele no exercício do poder político. Nesse tempo, fazia todo o sentido o monarca falar em "meu exército", "meu reino" e "meus súditos". Além disso, como ainda não existia uma identidade nacional entre as pessoas, a figura do monarca tinha o efeito simbólico de servir à manutenção da unidade política. Foi o que aconteceu com o Brasil depois do processo de independência. Após o Brasil se separar de Portugal em 1822, políticos conservadores como José Bonifácio, Visconde do Uruguai e Bernardo Pereira de Vasconcelos utilizaram a monarquia para impedir a fragmentação do território brasileiro.

A consolidação da ideia de nação e a lenta racionalização do poder político — por meio do Direito — permitiram a superação da dominação patrimonialista. O governante foi forçado, pelo constitucionalismo, a deixar de se portar como dono das instituições; a centralização política — imposta pelo absolutismo — deu lugar à separação dos Poderes; a permanência vitalícia de um monarca no poder foi substituída pela alternância dos governantes; e os governantes passaram a depender da vontade das urnas. Se antes era muito comum a utilização do argumento teológico e da vontade do monarca como fundamentos de legitimidade do poder político, agora o fundamento de legitimidade está na legalidade constitucional. O que quer dizer que uma determinação inconstitucional do governante nuca deve ser acatada, pois, fora da Constituição, não há legitimidade para nenhum governante.

Após todas essas considerações, vejamos como deve ser a relação entre poder militar e poder civil em um Estado democrático de Direito. A substituição do despotismo pelo governo constitucionalmente limitado provocou transformações significativas nas funções institucionais das Forças Armadas. Se no tempo de Luís 14 era muito comum que os militares se portassem como guarda pretoriana do monarca, e em ditaduras também é comum ver as Forças Armadas na posição de instrumento de governo ou de partido; na democracia, as Forças Armadas foram colocadas na posição de instituição de Estado. Afinal, quem tem autorização para andar armado não pode se colocar à disposição de interesses personalistas e partidários de um governante.

Mas algumas pessoas devem estar se perguntando sobre qual é o real significado do presidente da República ser o comandante-em-chefe das Forças Armadas. Comandar não seria o mesmo que mandar? Claro que não! Ser comandante-em-chefe das Forças Armadas não é o mesmo que chefiar uma milícia ou algum grupo paramilitar. Na democracia, as Forças Armadas são instituição de Estado e as suas funções militares de defesa do território nacional estão delimitas constitucionalmente. Nesse sentido, se referir às Forças Armadas como um mero instrumento de governo ou de partido não é apenas um disparate, é também uma deturpação do poder militar por parte de quem deseja mandar como se fosse chefe de um clã e não governar dentro dos limites impostos pelo direito.

Além disso, quando a Constituição estabelece que o presidente da República é o comandante-em-chefe das Forças Armadas, o que temos é a garantia de que o poder militar está subordinado ao poder civil e que os militares não irão interferir na política por meio de quarteladas e de golpes de Estado. Algo que ajuda a desmontar mais uma lenda urbana espalhada por grupos de Whatsapp: o mito de que as Forças Armadas são o Poder Moderador no Brasil. Aqui é importante não confundir a Constituição de 1824 com a Constituição de 1988. No tempo do Império, o monarca exercia o Poder Moderador sobre os demais Poderes. Hodiernamente, não existe mais Poder Moderador e os militares devem permanecer afastados da política. A Constituição sequer fala em Poder Moderador.

No Brasil, a história da República está repleta de crises entre o poder militar e o poder civil. Golpes de Estado, ditaduras e casos de indisciplina sempre contaminaram os quartéis. No entanto, após a promulgação da Constituição de 1988, chegamos a acreditar que a página do militarismo já havia sido virada e que finalmente o Brasil havia conquistado a consolidação de um poder militar profissional e completamente desconectado da política. Infelizmente nos enganamos. A forte presença militar na política desde a proclamação da República e o legado de vinte e um anos de ditadura militar não desaparecem da noite para o dia. É o que podemos ver nas crises geradas atualmente pelo governo e por militares que aceitam participar dele como sua base de apoio. De um lado, temos um presidente da República que confunde Forças Armadas com milícia particular e por essa razão se refere às três Forças como "meu Exército", "minha Marinha" e "minha Aeronáutica". Do outro lado, vemos oficiais das Forças Armadas dispostos a aceitarem a quebra da disciplina militar — como no caso do general Pazuello — em nome de interesses nada republicanos. Anarquia, desordem, indisciplina e personalismo são as palavras de ordem do momento. E vontade não falta em Jair Bolsonaro para um dia acordar e dizer: "o Estado sou eu, tá ok?" Se esse dia acontecer, e o presidente receber apoio de militares indisciplinados, o Estado democrático de Direito estará completamente esfacelado.

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  • é professor do curso de Direito do Centro Universitário Claretiano de Batatais (Ceuclar). Doutor, com bolsa financiada pela Capes/Proex, e mestre, com bolsa financiada pelo CNPq, em Direito Público pela Universidade do Vale do Rio dos Sinos (Unisinos). É membro do grupo de pesquisa Hermenêutica Jurídica, vinculado ao CNPq, e do grupo Dasein (Núcleo de Estudos Hermenêuticos).

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