Tribunal do Júri

Analfabetos e pessoas com deficiência podem ser jurados?

Autores

  • Rodrigo Faucz Pereira e Silva

    é advogado criminalista habilitado no Tribunal Penal Internacional (em Haia) pós-doutor em Direito (UFPR) doutor pelo Programa Interdisciplinar em Neurociências (UFMG) mestre em Direito (UniBrasil) e coordenador da pós-graduação em Tribunal do Júri do Curso CEI.

  • Daniel Ribeiro Surdi de Avelar

    é juiz de Direito mestre e doutorando em Direitos Fundamentais e Democracia (UniBrasil) professor de Processo Penal (UTP EJUD-PR e Emap) e professor da pós-graduação em Tribunal do Júri do Curso CEI.

19 de junho de 2021, 8h02

O artigo 436 do Código de Processo Penal prevê, de forma simples e direta, quem pode exercer a função de jurado: cidadãos de "notória idoneidade" e maiores de 18 anos. Não há qualquer outro requisito previsto no código, realizando um recorte amplo da comunidade.

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Por mais que não seja o objeto da coluna de hoje, a "notória idoneidade" carrega um nível de interpretação aberto. Para evitar qualquer forma de direcionamento no alistamento de jurados, importante destacar que toda pessoa é dotada, a priori, de notória idoneidade. Não se pode admitir presunção em contrário. Compete ao juiz presidente "buscar certos padrões de aferição para eventual exclusão do prospectivo jurado e o critério comumente adotado é a existência de anotações criminais" [1] (requisito que, tampouco, é indene de críticas). O segundo requisito, ser maior de 18 anos, pode ser objeto de discussões, eis que a tomada de decisão dos jurados exigiria certa experiência de vida e maturidade emocional. Por outro lado, o perfil plural dos jurados é desejável, bem como a necessidade de que o Conselho de Sentença aponte uma representatividade efetiva da comunidade.

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Mas e os analfabetos? E as pessoas com deficiência visual e/ou auditiva? Elas possuem capacidade para julgar? Diversos doutrinadores da matéria [2] consideram que o analfabeto está inviabilizado de participar do tribunal do júri popular, sendo inclusive a orientação constante de trabalho desenvolvido pelo próprio Conselho Nacional de Justiça [3]. Para esses autores, para participar do julgamento, é necessário saber ler e escrever, inclusive porque os jurados recebem peças do processo "em mãos", e precisam decidir a partir de quesitos, além de assinar a ata e outros documentos ao final.

Em sentido diverso, entendemos que o analfabetismo não deve ser considerado como causa de impedimento. E isso por diversos motivos: 1) o artigo 436, §1º do CPP, determina que "nenhum cidadão poderá ser excluído dos trabalhos do júri ou deixar de ser alistado em razão de cor ou etnia, raça, credo, sexo, profissão, classe social ou econômica, origem ou grau de instrução"; 2) ao reconhecer o júri como exercício democrático de participação na administração da justiça, não se admite a proibição daqueles que não possuem instrução escolar, assim como o sufrágio universal não exclui os analfabetos (Constituição da República, artigo 14, §1º, "a"); 3) não ter condições de ler e escrever não necessariamente indica que a pessoa não tenha condição de entender o processo, suas circunstâncias, teses, ou mesmo que ela seja incapaz de decidir sobre o que seria justo ou não; 4) os dados do IBGE sobre a educação no Brasil em 2019, apontou que o país possui mais de 11 milhões de analfabetos (em sua esmagadora maioria pessoas socialmente marginalizadas). Proibir a participação dos analfabetos é tolher a participação de parte considerável de classes sociais mais baixas; 5) Não é raro o processo contar com acusados, testemunhas e familiares analfabetos, e estes tampouco têm a sua importância mitigada ou são afastadas de participarem.

Ademais, não se pode olvidar que o procedimento do tribunal do júri é oral por excelência. As provas testemunhais da primeira fase são gravadas de forma audiovisual, os laudos periciais são instruídos com "provas fotográficas, esquemas ou desenhos" (CPP, artigo 164), bem como não há óbice de que a própria pronúncia e a sentença condenatória seja proferida oralmente, realizando-se a sua leitura em plenário.

Em resumo, reconhecendo que a participação exija que os trabalhos sejam adaptados, deve-se isentar o analfabeto do serviço do tribunal do júri apenas se ele requerer desta forma (aplicando por analogia o artigo 437, X, do CPP), mas sem proibir a sua participação.

Já em relação às pessoas com deficiência, é fundamental uma análise individualizada para maximização da participação. Percebam que o próprio exercício de direitos da pessoa com deficiência como um todo deve ser garantido pelas instituições estatais e judiciais, "visando à sua inclusão e cidadania" (Lei 13.146/2015).

Dessa forma, a negativa genérica de participação do potencial jurado fundamentada na deficiência apresentada é ilegítima. O Judiciário precisa adaptar a apresentação dos autos e provas em plenário, de maneira a incluir aqueles que possuem condição intelectual de decidir o caso.

Em relação às pessoas que apresentam deficiência visual e auditiva, por exemplo, por mais que parte da doutrina também seja contrária à participação de jurados nestas condições, entendemos de maneira diversa.

Aqueles que possuem deficiência visual, já nos manifestamos no sentido de que não há qualquer indicativo que comprove que os jurados com esta condição não conseguiria tomar uma decisão a partir da utilização dos outros sentidos [4]. Aliás, a tecnologia atual está bem avançada, existindo programas que possibilitam a leitura de documentos diretamente em fones de ouvido, além da tradicional impressão de documentos em braile. Sobre os vídeos e análise das provas testemunhais, também é comprovado que as pessoas com deficiência visual utilizam os demais sentidos para interpretação e valoração probatória. Eventual foto que seja fundamental para o caso, também poderá ser descrito para o jurado.

Por outro lado, o acolhimento de um jurado com deficiência auditiva pode ser resolvido com um intérprete de libras, assim como acontece quando a testemunha ou o acusado fala em língua estrangeira e precisa ter seu depoimento traduzido.

Vejam que a deficiência não pode ser considerada como condição impeditiva para que o jurado participe ativamente na administração da justiça. Até mesmo por imposição legislativa reconhece-se que a pessoa com deficiência tem direito à igualdade de oportunidade e não poderá sofrer nenhuma espécie de discriminação (artigo 4º da Lei 13.146/2015).

Parece-nos que, assim como o analfabetos, pode-se isentar as pessoas com deficiência que enfrentem dificuldades para o julgamento do serviço do tribunal do júri apenas se elas requererem (por analogia ao artigo 437, X, do CPP). Porém, não se deve proibir a sua participação.

Aqueles que têm capacidade intelectual de tomada de decisão podem e devem participar do julgamento popular. A interpretação do juiz presidente deve ser a mais ampla possível, de maneira a prestigiar a inclusão social e a publicidade do julgamento. De qualquer sorte, na fundamental busca de um alistamento de jurados que reflita a devida representatividade social, a exclusão genérica do analfabeto ou da pessoa com deficiência, viola o cerne do julgamento popular e constitui discriminação injustificável.

 


[1] PEREIRA E SILVA, Rodrigo Faucz; AVELAR, Daniel Ribeiro Surdi de. Manual do Tribunal do Júri, São Paulo: Thomson Reuters Brasil, 2021, p. 338. De maneira exemplificativa, o Código de Normas da Corregedoria-Geral da Justiça do TJ/PR determina a consulta ao sistema eletrônico para identificação de antecedentes criminais.

[2] Como, NUCCI, Guilherme de Souza. Tribunal do júri, 6ª. ed. ver., atual. e ampl. Rio de Janeiro: Forense, 2015, pp. 171; CAMPOS, Walfredo Cunha. Tribunal do Júri: teoria e prática. 6a. ed. São Paulo: Atlas, 2018; MARQUES, José Frederico. A instituição do júri. São Paulo: Saraiva, 1963, p. 91; ESPÍNOLA FILHO, Eduardo. Código de processo penal brasileiro anotado, vol. IV. Atualizadores: José Geraldo da Silva e Wilson Lavoreti. Campinas: Bookseller, 2000, p. 434.

[3] LUNARDI, Fabrício Castagna. Gestão Processual no Tribunal do Júri: CNJ, Brasília, 2020, p. 51.

[4] PEREIRA E SILVA, Rodrigo Faucz; AVELAR, Daniel Ribeiro Surdi de. Plenário do Tribunal do Júri. São Paulo: Thomson Reuters Brasil, 2020, p. 56.

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    é advogado criminalista, pós-doutorando em Direito (UFPR), doutor pelo Programa Interdisciplinar em Neurociências (UFMG), mestre em Direito (UniBrasil), professor de Processo Penal (FAE) e de Tribunal do Júri em pós-graduações (AbdConst, Curso Jurídico, UniCuritiba, FAE) e coordenador do Núcleo de Pesquisa em Tribunal do Júri (Nupejuri).

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    é juiz de Direito, presidente do 2º Tribunal do Júri de Curitiba desde 2008, mestre em Direitos Fundamentais e Democracia (UniBrasil), professor de Processo Penal (FAE Centro Universitário, UTP e Emap) e coordenador do Núcleo de Pesquisa em Tribunal do Júri (Nupejuri).

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