Observatório constitucional

É preciso modular a modulação de efeitos? Reflexões sobre um desvirtuamento

Autor

  • Jorge Octávio Lavocat Galvão

    é procurador do Distrito Federal professor adjunto da Faculdade de Direito da Universidade de Brasília (UnB) mestre em Direito pela New York University doutor em Direito Constitucional pela Universidade de São Paulo (USP) e visiting reseacher na Yale University.

19 de junho de 2021, 8h00

1) Um caso paradigmático de modulação
Em 13/5/2021, após duas tardes intensas de debates, o Supremo Tribunal Federal julgou os embargos de declaração da Fazenda Nacional que buscavam a modulação dos efeitos do acórdão proferido no Recurso Extraordinário nº 574.706, que excluiu o ICMS da base de cálculo para fins de incidência do PIS e da Cofins. Decidiu-se, por maioria, que somente aqueles que ingressaram com medida judicial ou administrativa até 15/3/2017 — data da sessão de julgamento do referido recurso — fariam jus à restituição do indébito tributário. Dito de outro modo, decidiu-se que, para todos, a partir de 2017, o PIS e o Cofins não podem incidir sobre o ICMS destacado da nota fiscal, mas somente os particulares que ingressaram em juízo até o julgamento do mérito do recurso é que podem ser ressarcidos pelo que foi pago indevidamente.

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O caso é emblemático. O recurso extraordinário teve sua repercussão geral reconhecida ainda em abril de 2008. Os primeiros votos foram proferidos em 9/3/2017, mas o julgamento só se encerrou na semana seguinte, em 15/3/2017, dando ganho de causa aos contribuintes. Ocorre que, nos últimos quatro anos, ainda pairavam dúvidas sobre os efeitos da decisão, ante o pedido de modulação formulado. O tributo somente não seria devido de 2017 para frente? Em caso de deferimento de restituição do indébito, quem faria jus ao recebimento? Todos os contribuintes? Somente os que ajuizaram até o início/término do julgamento? Ou todos aqueles que requereram a repetição até a publicação da ata de julgamento?

O objetivo do presente artigo, contudo, não é o de discutir este caso especificamente, mas chamar atenção para uma dinâmica cada vez mais frequente nos julgados da Suprema Corte. Uma vez decidido o mérito, passa-se à discussão sobre eventual modulação dos efeitos do julgado. Ocorre que nem sempre a modulação diz respeito aos efeitos da declaração de inconstitucionalidade. No caso mencionado, por exemplo, o que se fez foi excluir parcela dos contribuintes dos benefícios decorrentes da decisão. Ou seja, o Judiciário criou um critério ad hoc para distinguir os contribuintes favorecidos e os não favorecidos.  Refletir sobre a natureza desse provimento judicial sui generis é o escopo do presente trabalho.

2) Para que serve a modulação?
A modulação dos efeitos da decisão surge, inicialmente, no contexto de flexibilização do dogma da nulidade. Com efeito, desde Marbury v. Madison, célebre caso em que pela primeira vez se declarou a inconstitucionalidade de uma lei federal pela Suprema Corte norte-americana, restou estabelecido pelo Chief Justice John Marshall que uma lei inconstitucional seria nula ab initio ou ab ovo. Ou seja, o vício que atinge um ato normativo incompatível com o texto constitucional é de nulidade absoluta, e não relativa. Como consequência, 1) a decisão que reconhece a inconstitucionalidade tem natureza declaratória; 2) a questão pode ser conhecida de ofício; 3) não há prazo prescricional para a impugnação do ato (pode ser alegada a qualquer tempo; 4) o vício de inconstitucionalidade não pode ser convalidado.

Em razão do dogma da nulidade, a decisão judicial que declara a inconstitucionalidade de uma lei produz dois efeitos. Primeiro, os atos que foram praticados sob a égide de lei posteriormente declarada inconstitucional devem ser desfeitos, visto que se considera que norma nunca entrou em vigor (pois é nula ab initio). Trata-se do que a doutrina chama de efeito retroativo da decisão de inconstitucionalidade. Em segundo lugar, as normas que tenham sido revogadas por leis posteriormente declaradas inconstitucionais continuam em vigor, visto que a norma supostamente revogadora não pode produzir efeitos. Este é o chamado efeito repristinatório da decisão de inconstitucionalidade.

Em razão da forte influência norte-americana na construção do modelo de controle de constitucionalidade no Brasil, acabamos por recepcionar o dogma da nulidade. A prática, contudo, acabou por apontar a impropriedade (ou até mesmo impossibilidade) de sua aplicação em alguns casos. Atos irreversíveis praticados com esteio em leis declaradas inconstitucionais não tinham como ser desfeitos. Em outros casos, a declaração de inconstitucionalidade acabava por revigorar normas inapropriadas. Para evitar absurdos, tanto a Suprema Corte norte-americana como o Supremo Tribunal Federal passaram a mitigar, em casos excepcionais, os efeitos retroativos e repristinatórios da declaração de inconstitucionalidade.

Para legitimar essa prática, o Congresso Nacional editou o artigo 27 da Lei 9.868/99, que dispõe que "ao declarar a inconstitucionalidade de lei ou ato normativo, e tendo em vista razões de segurança jurídica ou de excepcional interesse social, poderá o Supremo Tribunal Federal, por maioria de dois terços de seus membros, restringir os efeitos daquela declaração ou decidir que ela só tenha eficácia a partir de seu trânsito em julgado ou de outro momento que venha a ser fixado". O escopo de tal dispositivo era o de dar ao Supremo Tribunal Federal uma válvula de escape a fim de adequar os efeitos da inconstitucionalidade às situações da vida, autorizando a superação do dogma da nulidade em casos extraordinários, desde que atingido o quórum super-rígido previsto na norma [1].

3) Consequências do uso indiscriminado da modulação
Ocorre que, com o passar dos anos, houve um desvirtuamento irrefletido do instituto. Com efeito, se o escopo inicial era o de limitar os efeitos retroativos e repristinatórios da decisão de inconstitucionalidade, com o tempo, a Corte passou a modular o próprio conteúdo da decisão. Ademais, o que era para ser excepcional, ingressou na rotina de deliberações do tribunal, que passou a enxergar a modulação como uma etapa natural de decisões relevantes. Tais elementos, contudo, minam a própria normatividade do Direito, pois até o resultado do julgamento passa a depender de juízos pragmáticos de ponderação de interesses. A banalização da modulação faz com que os direitos deixem de ser encarados como trunfos (argumentos de princípios) e passem a ser tratados como mais um valor a ser sopesado na equação em prol do bem-estar social (argumentos de política), como há muito denuncia Lenio Streck [2]. Alguns exemplos são elucidativos.

Nas ADIs 4.029 e 5.127, discutiu-se, respectivamente, se na tramitação legislativa das medidas provisórias seria impositiva a formação de comissão mista, nos moldes do § 9 do artigo 62 da CF/88, e se seria vedada a inclusão de emendas parlamentares sem ligação com o tema do texto. O STF respondeu positivamente aos dois questionamentos, inquinando de inconstitucionais os objetos das referidas ADIs. Entretanto, ao modular os efeitos de sua decisão, a Corte concluiu que, por imperativo de segurança jurídica, as orientações firmadas só seriam aplicáveis às medidas provisórias futuras, e não às atacadas nas ADIs. Ou seja, a modulação acabou servindo para alterar o próprio resultado do julgado: normas que padecem de inconstitucionalidade não foram declaradas nulas. Percebe-se, assim, que a modulação não teve como escopo mitigar os efeitos repristinatórios ou retroativos da declaração de inconstitucionalidade das normas impugnadas, mas impor alteração na prática legislativa do Congresso Nacional.

Já na ADI 5469, discutia-se a inconstitucionalidade do Convênio ICMS 93/2015, que unificou os critérios de cobrança do diferencial de alíquota de ICMS (Difal) entre os Estados de origem e de destino nas operações interestaduais para não contribuintes do tributo, na forma como estipulado na EC 87/2015. A Corte concluiu pela inconstitucionalidade do ato impugnado, sob o fundamento de ser a matéria reservada à lei complementar, mas modulou os efeitos da decisão para janeiro de 2022, ressalvando as ações em curso que discutam a (in)constitucionalidade da cobrança do Difal pelos Estados de destino. Ocorre que, como consequência da declaração de inconstitucionalidade, deveriam ser repristinadas as normas que anteriormente regulavam a matéria, cujo teor era o de destinar a integralidade do ICMS ao Estado de origem. A modulação, contudo, ao ressalvar as ações em curso, acabou por transferir a titularidade dos valores arrecadados a título Difal do Estado de origem para o contribuinte. Em outras palavras, sob o pretexto de modular os efeitos da decisão, o tribunal acabou por beneficiar terceiros, que não seriam contemplados nem com a manutenção do ato impugnado nem com a restauração do regime jurídico anterior.

Além da questão da repristinação, este caso chama a atenção para outro ponto, que tem se repetido nas causas tributárias: o STF, desde o julgamento do RE 556.664, tem modulado os efeitos da decisão de inconstitucionalidade de tributo para limitar os beneficiários àqueles que já tenham ingressado com ações individuais até o julgamento do leading case. O problema é que, como já mencionado acima, este tipo de modulação não trata nem da questão da repristinação nem da retroatividade da declaração de inconstitucionalidade, mas de adoção de critério para limitar os destinatários da decisão. Em se tratando de benefício fiscal, contudo, qualquer tipo de limitação implica em violação da isonomia, com impactos concorrenciais. Ou seja, a modulação acaba por criar distorções no mercado. Ademais, o critério que o STF tem adotado acaba produzindo incentivos contraditórios: beneficia-se os litigantes contumazes em prejuízo daqueles que cumprem as obrigações tributárias sem questioná-las. Estimula-se, portanto, a litigiosidade em contraposição à cooperação.

Por fim, é se destacar mais um ponto. A Lei 9.868/99, em razão da excepcionalidade da modulação, previu um quórum diferenciado de dois terços. Não obstante, há notícia de concessão monocrática da medida (RE 870.947). Mais recentemente, o STF concluiu que o quórum de dois terços só é exigido nos casos em que há declaração de inconstitucionalidade. Já nos casos de mudança jurisprudencial, basta a maioria absoluta (RE 638.115). Como os casos acima bem exemplificam, é cada vez mais raro que a modulação modifique os efeitos da declaração de inconstitucionalidade. Cada vez mais, o que se modifica é o resultado da própria decisão ou o seu escopo de abrangência. O receio é que, com a redução do quórum, estas medidas heterodoxas passem a ser cada vez mais frequentes.

4) Modular a Modulação?
Derrotados saem-se vencedores, vencedores são excluídos da vitória e terceiros acabam levando o prêmio. O instituto da modulação afastou-se de seu propósito inicial — regulamentar os efeitos retroativos e repristinatórios da decisão de inconstitucionalidade — e passou a impactar na própria normatividade do direito constitucional. Quando o mérito de uma decisão tida como correta é modulado com base em juízos teleológicos de oportunidade e conveniência desnatura-se a própria função jurisdicional. A banalização da modulação exige, pois, uma profunda reflexão por parte dos membros da comunidade jurídica.

No contexto, a Comissão de Juristas nomeada pelo presidente da Câmara dos Deputados para sistematizar as normas de processo constitucional tem oportunidade única para aprimorar o instituto [3].  Exigir que a Corte aponte especificamente qual efeito da declaração de inconstitucionalidade está limitando (se o efeito retroativo ou repristinatório) é o primeiro passo para se evitar abusos. Em segundo lugar, deve-se proibir modulações que não sejam universalizáveis. Restrições que firam a isonomia não encontram respaldo na Constituição de 1988. Ou se modula para todos ou para ninguém. Por fim, o caráter excepcional da modulação deve ser reforçado, impondo quórum de dois terços para todo e qualquer caso.

 


[1] Sobre o edição do referido dispositivo legal, comentam Gilmar Ferreira Mendes e Ives Gandra Martins: "Entendeu, portanto, o legislador que, ao lado da ortodoxa declaração de nulidade, há de se reconhecer a possibilidade de o Supremo Tribunal, em casos excepcionais, mediante maioria qualificada (dois terços dos votos), estabelecer limites aos efeitos da declaração de inconstitucionalidade, proferindo a inconstitucionalidade com eficácia ex nunc  e pro futuro, especialmente naqueles casos em que a declaração de nulidade se mostre inadequada (v.g.: lesão positiva ao princípio da isonomia) ou nas hipóteses em que a lacuna resultante da declaração de nulidade possa dar ensejo ao surgimento de uma situação ainda mais afastada da vontade constitucional". Controle de Concentrado de Constitucionalidade: Comentários às Lei nº 9.868, de 10-11-1999. Saraiva, 2001, p. 323-324.

[2] "A modulação de efeitos não pode representar uma abertura interpretativa dada ao Judiciário, para que este delimite de forma arbitrária (discricionária) os efeitos da decisão de inconstitucionalidade. (…) O consequencialismo não pode servir de balizamento para a modulação de efeitos da decisão de inconstitucionalidade, dado que, sob este prisma, o direito constitucional jamais conseguirá sustentar a proteção e promoção dos direitos fundamentais, exatamente pelo seu caráter de individuais, mas que beneficiam a coletividade". Jurisdição Constitucional e Decisão Jurídica. Revista dos Tribunais, 2014, p. 807-809.

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