Opinião

Coisa julgada progressiva e a aplicação da Selic como correção e juros em casos trabalhistas

Autores

  • Vólia Bomfim

    é advogada trabalhista do escritório Solon Tepedino desembargadora aposentada do TRT da 1ª Reg doutora em Direito e Economia pela UGF mestre em direito público pela Unesa pós-graduada em Direito do Trabalho pela UGF pós-graduada em processo civil e processo do trabalho pela UGF professora autora e membro titular da cadeira 77 da ABDT.

  • Fabrício Lima Silva

    é juiz do trabalho do TRT da 3º Região MG mestrando em Constitucionalismo e Democracia pela Faculdade de Direito do Sul de Minas (FDSM) professor de Direito e Processo do Trabalho em Cursos de Especialização formado em Compliance Laboral pela Wolters Kluwer (Espanha) e coautor do Manual do Compliance Trabalhista.

  • Iuri Pinheiro

    é juiz do Trabalho do TRT3 formado em Compliance Laboral pela Wolters Kluwer (Espanha) mestrando em Processo Constitucional pela PUC-MG coordenador da Pós-Graduação de Compliance Trabalhista LGPD e Prática Trabalhista professor de diversas instituições dentre elas PUC-MG CERS e IEPREV professor de Escolas Judiciais dos TRTs e da Enamat junto ao TST escritor de obras jurídicas especialmente do Manual do Compliance Trabalhista e palestrante.

17 de junho de 2021, 6h03

O presente artigo tem o objetivo de analisar os efeitos da decisão do STF nos autos da ADC 58 aos processos em que houve coisa julgada progressiva e apontar as diferenças entre os juros e a correção monetária.

Para a correta aplicação da decisão do STF, deve-se inicialmente analisar o momento em que a coisa julgada se formou, se antes ou depois da decisão do STF, pois, se a coisa julgada foi anterior, fácil concluir que prevalecia à época o entendimento de que os juros e a correção monetária eram institutos diversos, principalmente na área trabalhista.

Aliás, na ADC 58, a discussão girava em torno da aplicação de critérios de correção monetária, isto é, se a taxa era com base na TR ou no IPCA-E. Era impensável pela comunidade trabalhista que os juros previstos na Lei 8.177/91 seriam incluídos na discussão e que tudo se transformaria na Selic. A decisão veio com efeito surpresa, inesperado e inédito.

Assim, somente a partir 18/12/20 deve ser aplicada a decisão proferida pelo STF nos autos da ADC 58. Isto se explica porque foi nesse momento que todos foram surpreendidos com a mudança de entendimento, já que a decisão adotou, pela primeira vez na área laboral, a estranha tese de que os juros (penalidade) e a correção monetária (reposição do poder aquisitivo) passariam a ser englobadas pela Selic, isto é, que são a mesma coisa ou que integram um mesmo instituto. 

Ora, se houve trânsito em julgado antes da referida decisão acerca da taxa de juros ou da correção monetária, deve prevalecer o título executivo, pois baseada no entendimento da época em que os juros e a correção monetária não faziam parte de um todo e, por isso, não eram prejudiciais entre si, nem dependentes, e sim parcelas autônomas e distintas. Logo, se do título executivo constar expressamente o valor da taxa de juros de 1% ou fizer referência à Lei 8.177/91, ou ainda, mencionar expressamente a aplicação do IPCA-e ou da TR, como índice de correção monetária, essa coisa julgada deve prevalecer e ser respeitada, de acordo com comando modulatório da decisão do STF.

Analisando a decisão do STF, percebemos que nos autos da ADC 58 foi decidido que:

"8. A fim de garantir segurança jurídica e isonomia na aplicação do novo entendimento, fixam-se os seguintes marcos para modulação dos efeitos da decisão: (i) são reputados válidos e não ensejarão qualquer rediscussão, em ação em curso ou em nova demanda, incluindo ação rescisória, todos os pagamentos realizados utilizando a TR (IPCA-E ou qualquer outro índice), no tempo e modo oportunos (de forma extrajudicial ou judicial, inclusive depósitos judiciais) e os juros de mora de 1% ao mês, assim como devem ser mantidas e executadas as sentenças transitadas em julgado que expressamente adotaram, na sua fundamentação ou no dispositivo, a TR (ou o IPCA-E) e os juros de mora de 1% ao mês; (ii) os processos em curso que estejam sobrestados na fase de conhecimento, independentemente de estarem com ou sem sentença, inclusive na fase recursal, devem ter aplicação, de forma retroativa, da taxa Selic (juros e correção monetária), sob pena de alegação futura de inexigibilidade de título judicial fundado em interpretação contrária ao posicionamento do STF (artigo 525, §§ 12 e 14, ou artigo 535, §§ 5º e 7º, do CPC.

9. Os parâmetros fixados neste julgamento aplicam-se aos processos, ainda que transitados em julgado, em que a sentença não tenha consignado manifestação expressa quanto aos índices de correção monetária e taxa de juros (omissão expressa ou simples consideração de seguir os critérios legais)" (grifos dos autores).

Verifica-se que a própria decisão do STF, no item 8.i, tratou a correção monetária e os juros de mora como institutos distintos, já que são, de fato, coisas diferentes, com finalidades e natureza diversas. Por tal motivo foi utilizada a partícula "e", que é uma conjunção que indica adição, soma de coisas diferentes, enquanto o "ou" é uma conjunção que significa que uma coisa pode ser substituída por outra.

Convém ressaltar que antes da decisão do STF era essa a tese que prevalecia na doutrina e na jurisprudência, isto é, de que os juros e a correção monetária eram coisas distintas:

"Multa diária. Descumprimento de obrigação de fazer. Juros de mora. Correção monetária. A incidência de juros de mora sobre a multa cominatória pelo descumprimento de obrigação de fazer configura bis in idem. Os juros moratórios cumprem função de sanção em relação ao atraso no adimplemento de uma obrigação e, por isso, não podem incidir sobre a multa, que já se destina a essa finalidade de penalizar o devedor pela mora. A correção monetária, por outro lado, não tem natureza de penalidade e não representa aumento do valor da multa, mas mera recomposição da perda do poder aquisitivo decorrente da inflação, razão pela qual no cálculo da multa devida, na fase de liquidação, deve-se aplicar a atualização monetária do valor, ainda que não determinada na condenação (Súmula nº 211 do TST)" (TRT-3 – AP: 00105148120205030105 MG 0010514-81.2020.5.03.0105, Relator: Cesar Machado, Data de Julgamento: 5/3/2021, Sexta Turma, Data de Publicação: 8/3/2021).

Aliás, esse entendimento foi implicitamente consagrado nas Súmulas 200 e 211 do TST quando se determina a aplicação dos juros sobre a importância devida já corrigida monetariamente e que ambos devem ser incluídos na execução, independentemente de pedido expresso:

"Súmula 200 juros de mora. Incidência
Os juros de mora incidem sobre a importância da condenação já corrigida monetariamente.

Súmula 211 juros de mora e correção monetária. Independência do pedido inicial e do título executivo judicial
Os juros de mora e a correção monetária incluem-se na liquidação, ainda que omisso o pedido inicial ou a condenação."

De todo o exposto, constata-se que havia o explícito entendimento tanto na doutrina como na jurisprudência de que juros e correção monetária eram institutos diferentes; portanto, estamos diante de um costume adotado pela comunidade jurídico-trabalhista, que é fonte formal [1] de direito e obriga a todos.

O costume é a adoção reiterada de uma determinada postura jurídica, em uma certa época, por um determinado grupo.  

As súmulas, orientações jurisprudenciais e a jurisprudência, quando consagradas e observadas espontaneamente como comportamento do grupo, representam um costume dos tribunais trabalhistas. A mudança de um costume pela imposição da decisão do STF de uma nova forma de se comportar equivale a mudança de lei, de norma. Logo, as situações pretéritas ocorridas sob a égide da norma vigente à época (como o costume) deve ser respeitada, em virtude do direito adquirido, do ato jurídico perfeito, do direito à irretroatividade das normas e da segurança jurídica das relações travadas neste momento.

Para elucidar a questão, mais uma vez, vejamos de forma mais minudente:

Correção monetária
Correção monetária tem a finalidade de repor a perda do poder aquisitivo perdido com a inflação, devolvendo ao crédito o frescor do valor da época que venceu a obrigação e na qual não foi paga. Não é espécie de penalidade. Por isso, sobre a correção monetária incide imposto de renda. Seus índices são fixados com base na inflação da época.

Também conhecida como atualização monetária, a correção monetária é basicamente a adequação da moeda diante da inflação dentro de um período determinado.

O intuito é compensar a perda econômica pela demora no adimplemento da dívida e tem a finalidade de se manter o status quo ante da moeda.

Como visto, incide imposto de renda sobre a correção monetária, o que não ocorre com os juros, em face de seu caráter indenizatório (penalidade).

Juros de mora
Os juros são calculados não só sobre o valor histórico da dívida, mas também sobre o valor corrigido, na forma da Súmula 200 do TST.

Outra diferença é  que os juros são calculados percentualmente, enquanto a correção monetária é uma variação entre indexadores (normas que tornam os índices jurídicos).

Contrapondo-se à correção monetária, que é tipicamente brasileira, os juros existem desde a antiguidade em quase todos os países.

Já a história da correção monetária começa depois de 1964, época que foi criado o primeiro indexador, denominado ORTN ou Obrigação Reajustável do Tesouro Nacional, que media o valor de alguns créditos específicos.

A única semelhança dos juros com a correção monetária é o percurso temporal que ambos desempenham numa economia. Salvo essa característica, não se assemelham em mais nada.

A Súmula 439 do TST, que trata do tema, comprova a prevalência do entendimento existente antes da decisão do STF, de que juros e correção monetária eram coisas distintas e começam a fluir de datas diferentes, com critérios diversos de aplicação, assim como a Súmula  200 do TST, já comentada acima.

A independência existente entre a correção monetária e juros de mora também está também clara na Súmula 211 do TST já transcrita em linhas pretéritas.

Há mais: a atualização monetária trabalhista encontra-se nos artigos 634, parágrafo 2º, e artigo 879, parágrafo 7º, ambos da CLT, e começa a fluir do dia seguinte do vencimento da obrigação inadimplida. Já os juros estão previstos tanto no artigo 833 da CLT e no artigo 39, parágrafo 1º da Lei 8.177/91, e começam a fluir a partir do ajuizamento da ação. Assim, além de regulados por dispositivos distintos, também começam a fluir de datas diversas, o que comprova que sempre foram tratados como institutos diferentes.

Logo, resta claro que não se pode confundir correção monetária e juros de mora, pois são coisas distintas.

Conclusão
Fizemos análise breve do conceito, natureza e finalidade da correção monetária e dos juros de mora, demonstrando com clareza suas diferenças.

A partir daí só cabe uma interpretação possível da decisão do STF, observando os itens 8.i e 9, que fixaram os parâmetros fixados na decisão da ADC 58.

Para os casos em que a decisão transitada em julgado tenha fixado os parâmetros apenas de um dos institutos (correção monetária ou juros), haverá coisa julgada progressiva da parte expressamente fixada no título executivo, que significa que há a formação da coisa julgada gradual dentro do mesmo processo em momentos diferentes, tese também adotada pelo inciso II da Súmula 100 do TST e indiretamente pelo artigo 1.057 do CPC [2].

A teoria da coisa julgada progressiva estabelece que a sentença é formada por vários capítulos, que corresponderão a uma "unidade decisória da sentença", com fundamentos e decisões individuais. Como, na época que a decisão transitou em julgado, os juros e a correção monetária eram institutos diferentes, independentes ou não vinculados, é fácil concluir que transitou em julgado a parte da decisão que fixou um dos critérios ou os dois critérios de acordo com a lei ou a tese vigente à época. Neste caso, deve ser afastada a decisão do STF proferida nos autos da ADC 58, pois a coisa julgada foi expressa, aplicando-se a modulação determinada na respectiva decisão.

Com isto, se o título executivo for omisso quanto a um ou quanto ao outro, na prática, se aplicará a decisão de modulação da seguinte forma:

1) Se a omissão for exclusivamente a respeito do índice de juros de mora: deverão ser os juros legais desde o ajuizamento da ação, conforme artigo 833 da CLT, e a atualização monetária será feita de acordo com o determinado no título executivo, seja a TR ou o IPCA-E (ou outro índice escolhido pelo magistrado, como o INPC).

2) Se a omissão for apenas quanto ao índice de correção monetária: deverá o julgador aplicar o IPCA-E durante todo o período, pré-judicial e judicial (ou, para a fase judicial adotar outro índice de atualização, como o INPC), pois a TR foi declarada inconstitucional pelo STF nas ADCs 58 e 59 e nas ADIs 5.857 e 6.021. Isso se explica porque, se o título executivo tiver sido explícito quanto à aplicação dos juros de 1% ao mês, a incidência da Selic geraria aplicação de juros sobre juros (anatocismo), o que não é possível. A Selic só será aplicada quando a decisão for silente quanto à taxa de juros.

Abaixo um exemplo de coisa julgada progressiva:

"Juros de 1% simples e correção monetária na conformidade da legislação em vigor a cada época, na forma da Súmula 381, do C. TST. Não incidem contribuição previdenciária e IR sobre os juros de mora, em face de sua natureza indenizatória. Correção monetária na forma da lei."

Do comando acima, constata-se que estamos diante da coisa julgada quanto à taxa de juros de mora, mas não em relação à correção monetária, o que era possível (coisa julgada progressiva), pois, como visto acima, à época era firme o entendimento de que eram institutos diferentes e com finalidade e natureza distintas.

Assim, aplicar a taxa Selic englobando tanto os juros de mora (cujo índice transitou em julgado) como a correção monetária é ferir de morte a coisa julgada (artigo 5º XXXVI CF), o ato jurídico perfeito (artigo 5º, XXXVI, CF), a isonomia (artigo 5º, caput CF), a segurança jurídica, a ampla defesa (artigo 5º, LV, CF) e o devido processo legal (artigo 5º I, CF).  Além disso, haveria aplicação retroativa de norma.

Além disso, em muitos casos, há decisões que têm conhecido da matéria sem que o recurso tenha questionado, por exemplo, a taxa de juros, mas tão somente o critério da correção monetária. Ora, julgar matéria não recorrida e não constante de qualquer recurso significa reformatio in pejus, proibida pelo ordenamento jurídico (artigos 141, 492, 1002 c/c 1013 do CPC) e, também, malferimento à modulação determinada pelo STF, além de mácula ao artigo 879, parágrafo 1º, da CLT:

"Na liquidação não se poderá modificar ou inovar a sentença liquidanda, nem discutir matéria pertinente à causa principal."

Assim, não poderia o julgador adotar cálculos que aplicam o índice de juros Selic, arranhando a coisa julgada, visto que a decisão, apontada no exemplo acima e em tantos outros casos em curso na Justiça do Trabalho, claramente determinam a aplicação de juros de mora de 1% ao mês, não tendo sido, portanto, em momento algum, omissa.

Quanto à correção monetária, se o título executivo não fixou de forma clara o fator de correção a ser utilizado, já que apontou que esta deve respeitar a legislação vigente à época da execução, a omissão seria apenas desta parte. Como a Selic engloba correção e juros de mora e como estes não estão omissos no exemplo acima (determinação de aplicação de juros de mora de 1% ao mês), impõe-se a aplicação de índice de correção monetária diverso para esses casos, como o IPCA-E (ou outro índice de escolha do magistrado, como o INPC, por exemplo), ante a inconstitucionalidade da Taxa Referencial (TR).

 


[1] As fontes formais são os comandos gerais, abstratos, impessoais e imperativos. Conferem à norma jurídica o caráter positivo, obrigando os agentes sociais. São impostas e se incorporam às relações jurídicas. Ordenam os fatos segundo valores, regulam as relações e as ligam a determinadas consequências.

[2] O regime diferenciado de contagem de prazo para rescisória, muito conhecido pela Justiça do trabalho, agora também é aplicável para as coisas julgadas do processo civil surgidas após a vigência do novo CPC, como deixa claro o artigo 1.057. O novo CPC não abordou explicitamente o prazo da rescisória no caso de coisa julgada parcial. Ora, no mesmo processo pode haver várias coisas julgadas formadas em momentos distintos. Todavia, o sistema do CPC permite a coisa julgada parcial inclusive penalizando o credor com a prescrição intercorrente. Convém lembrar que alguns tribunais superiores permitem tal coisa julgada parcial (Rext 669589 e S. 100, TST). Por isso deve-se interpretar o caput do artigo 975 do CPC, da seguinte forma: conta-se a rescisória da última decisão que resolveu o objeto da rescisória por último

Autores

  • é advogada trabalhista do escritório Solon Tepedino, desembargadora aposentada do TRT da 1ª Reg, doutora em Direito e Economia pela UGF, mestre em direito público pela Unesa, pós-graduada em Direito do Trabalho pela UGF, pós-graduada em processo civil e processo do trabalho pela UGF, professora, autora e membro titular da cadeira 77 da ABDT.

  • é juiz do trabalho do TRT da 3º Região MG, mestrando em Constitucionalismo e Democracia pela Faculdade de Direito do Sul de Minas (FDSM), professor de Direito e Processo do Trabalho em Cursos de Especialização, formado em Compliance Laboral pela Wolters Kluwer (Espanha) e coautor do Manual do Compliance Trabalhista.

  • é juiz do Trabalho do TRT3, formado em Compliance Laboral pela Wolters Kluwer (Espanha), mestrando em Processo Constitucional pela PUC-MG, coordenador da Pós-Graduação de Compliance Trabalhista, LGPD e Prática Trabalhista, professor de diversas instituições, dentre elas PUC-MG, CERS e IEPREV, professor de Escolas Judiciais dos TRTs e da Enamat junto ao TST, escritor de obras jurídicas, especialmente do Manual do Compliance Trabalhista e palestrante.

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