Opinião

Novo CPP: a advocacia precisa ser ouvida (por último)

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17 de junho de 2021, 12h05

Não dormirão tranquilos os cidadãos que souberem como são feitas as leis e as salsichas, disse o poeta John Godfrey Saxe [1]. Atribuída equivocadamente ao príncipe alemão Otto von Bismarck-Schönhausen, a frase é deveras pertinente à realidade brasileira: cada lei que aqui se sanciona é fabricada em linhas de produção pouco invejáveis se comparadas às dos alimentos preparados com as tripas que sobram nos frigoríficos.

A circunstância é especialmente verdadeira nas leis mais extensas. No processo legislativo de longos textos normativos unificados, como são códigos e estatutos, costuma-se interpretar a versão final da redação sancionada como a "versão possível", ou seja, a mediatriz entre interesses, pressões, ideologias e vaidades que envolvem o trâmite rotineiro da atividade legiferante.

Tal como o novo Código de Processo Penal (Projeto de Lei 8.045/2010), atualmente em tramitação na comissão especial instituída na Câmara dos Deputados. Depois de ser aprovado no Senado Federal, o projeto foi apreciado pelo relator da proposição, o deputado federal João Campos (Republicanos-GO), que acatou e rejeitou diversas emendas de colegas parlamentares e apresentou um texto substitutivo final, pendente de deliberação e aprovação naquela casa legislativa.

O substitutivo, por sua vez, chamou a atenção de diversas corporações profissionais pouco afeitas à constitucionalização do processo penal brasileiro. Segundo informa o jornal Gazeta do Povo [2], magistrados e delegados de polícia acionaram a palavra-gatinho e rotularam o substitutivo apresentado pelo relator (que também é delegado, diga-se) como um texto em favor da "impunidade"  sempre ela.

Advogados não foram ouvidos pelo veículo de imprensa, mas, se a prudência jornalística os tivesse contemplado, certamente fariam menção sobre as normas processuais penais não serem meras formalidades utilizadas para legitimar a penalização dos réus. Uma olhadela nos tratados internacionais firmados pelo Brasil também seria suficiente para tanto.

O direito processual penal não é só forma, isto é, não prevê somente formato com que atores processuais deverão se comportar e produzir o processo. Não! O direito processual penal, por meio dos seus contornos previamente rascunhados em lei, instaura mecanismos que garantem os direitos fundamentais do indivíduo perante a pretensão punitiva do Estado.

Em outras palavras, as formas esculpidas pelas normas processuais penais não são meros itinerários que podem ser percorridos de forma alternativa para se alcançar o destino vislumbrado. O delineamento legal garante por antecipação que o réu, terrivelmente culpado ou divinamente inocente, não será imolado pelo poder estatal, mas devidamente inserido na ordem jurídica que o acusa de tê-la violado.

O âmago do direito processual penal não é atingir a penalidade ditada pelo direito penal, mas garantir que a reprimenda só seja efetivada após o réu ter tido seus direitos fundamentais protegidos no procedimento persecutório. Protegendo-o, protege-se a sociedade livre dos desmandos oficiais.

A tutela da liberdade como moto contínuo do processo penal não é novidade. Entre os antigos, José Antônio Pimenta Bueno referendava a liberdade como o "primeiro dos direitos, e salvaguarda de todos os outros". Em obra data de 1857, o Marquês de São Vicente considerou que o "processo, sua forma e garantias devem também anteceder e não suceder aos fatos, por isso que importam muito à sorte dos indiciados". Segundo o afamado jurista do Império, "estas garantias são ao mesmo tempo bases fundamentais do poder judicial, e tão valiosas que bem demonstram a importância e proteção que a ordem judiciária ministra aos cidadãos quando ela é bem organizada e independente" [3]. Para ele, só isso não basta: "é demais necessário que as propriedades e mais direitos individuais não fiquem sujeitos a disposições duvidosas e dissonantes, a interpretações variadas, a decisões que não guardem unidade, que estabeleçam uma jurisprudência desigual ou incerta" [4].

Igualmente José Frederico Marques. A ele, o "sistema acusatório transformou a fisionomia da persecução penal, visto que situou o réu e acusado, nessa atividade estatal, como sujeito de direitos, e não apenas como objeto de investigações" [5]. Assim, "o órgão da acusação, o acusado e o juiz criminal passaram a viver sob uma atmosfera de mútuos e recíprocos direitos e obrigações que se exerciam ou podem ser exercidos, enquanto o processo se desenvolve por meio do procedimento" [6].

À sua moda, os mais modernos Aury Lopes Júnior e Gustavo Henrique Badaró endossam os antigos: o acusado "é um sujeito de direito, a quem se assegura a ampla defesa, com o direito de produzir provas aptas a demonstrar a versão defensiva de um lado, e sendo-lhe assegurado, de outro, o direito ao silêncio, eliminando qualquer dever de colaborar com a descoberta da verdade" [7]. Consequentemente, "a prova da imputação cabe à acusação e integralmente à acusação" [8].

Assumindo-se que o direito processual penal não é simples instrumento para a consecução do direito penal, mas ele próprio um arcabouço de direitos individuais que, se violados, inviabilizam a pretensão estatal punitiva, é possível dizer que o novo Código de Processo Penal precisa se equilibrar em três pilares: contraditório, imparcialidade e proporcionalidade.

O contraditório é elemento ínsito ao sistema acusatório já previsto no atual artigo 3º-A do Código de Processo Penal (CPP) e replicado no artigo 4º do substitutivo apresentado. Dele é possível inferir diversos enunciados há muito batalhados pelo criminalismo militante: tomar ciência do conteúdo dos procedimentos contrários ao investigado/denunciado; receber intimação após requerimentos persecutórios e antes da prolação de decisões interlocutórias ou terminativas; manifestar-se em todas as fases e sempre após o órgão acusador etc.

A imparcialidade não se reduz à ausência de suspeição por parte do magistrado responsável pelo feito. Vai além: deve o julgador abster-se de colaborar com as partes ou produzir qualquer prova que por ventura beneficie uma delas, bem como ser impedido de cooperar com o órgão acusador que não se auto corrige tempestivamente. Ao magistrado cabe arbitrar a disputa dos polos contrários, como mero espectador, sem interferir no resultado final do processo. Havendo omissão, inércia ou imperícia do órgão acusador, cabe ao juízo declarar a improcedência da pretensão sob análise.

Nesse tema, substitutivo teve o mérito de dar azo àquilo já previsto no artigo 212 do atual CPP: o juízo só poderá inquirir as testemunhas de maneira complementar, isto é, após as partes terem feito suas perguntas (regramento esse mantido e melhormente detalhado no artigo 212 do substitutivo). Ainda, passou a inviabilizar a condenação independentemente de requerimento do órgão acusador, ou seja, se o Ministério Público ou o assistente de acusação pugnarem pela absolvição, não será permitido ao magistrado contrariá-los.

De outra banda, o relatório apresentado peca sobremaneira: mantém a capacidade probatória complementar do juízo (artigo 156, II, CPP), permitindo ao magistrado sanar suas dúvidas acusatórias (artigo 194, § único, do substitutivo) ao invés de terminantemente fazer a acusação sucumbir por precariedade instrutória.

No pilar da proporcionalidade, vale dizer quer as medidas cautelares aqui têm especial consideração. O rito das prisões, por exemplo, sempre precisou ser revisto, a começar pelo descabimento de prologados encarceramentos de pessoas investigadas ou processadas por delitos sem violência. A essas, urge ao legislador fixar a hipótese de prisão temporária, ou impossibilitar a renovação das prisões preventivas.

O novo CPP enfrentou a necessária discussão sobre as prisões cautelares e passou a limitar a custódia preventiva em 180 dias, que, embora renováveis, não poderão suplantar 24 meses. É tempo exagerado para um réu que talvez não cumpra regime fechado ou que termine absolvido no processo penal. Por outro lado, talvez seja um limite desnecessário àquele que reiteradamente apresente extrema periculosidade (possivelmente fundamentada em laudo pericial, por exemplo).

Em que pese a iniciativa do substitutivo em detalhar as medidas cautelares em pessoais e reais, disciplinando-as com alguma prudência, o debate sobre a proporcionalidade dos decretos constritivos precisa avançar no sentido de priorizar as liberdades antes de sublinhar a tutela dos procedimentos persecutórios.

Quaisquer que sejam as considerações que pesarão sobre o projeto substitutivo do deputado João Campos, até o momento prudente e receptivo às críticas, é crucial manter vigilância sobre a mentalidade xerifesca que, com seus chavões, eufemismos e incitações grosseiras que ignoram a realidade social da população e o colapso completo do sistema carcerário nacional, assombram a persecução penal no Brasil.

Por sua natureza contestadora e libertadora, é tarefa inerente à advocacia independente e livre de amarras corporativas estudar, debater e manifestar-se por último sobre o futuro dos direitos de liberdade que estão em deliberação no parlamento federal, sob pena de novamente restar impotente perante a nociva fabricação de salsichas impróprias para consumo  decepcionando o poeta americano, o monarca germânico e todo o povo brasileiro.


[3] PIMENTA BUENO, José Antônio. Direito público brasileiro e análise da constituição do império. Rio de Janeiro: J. Villeneuve, 1857. p. 416

[4] Idem, p. 417.

[5] MARQUES, José Frederico. Elementos de direito processual penal, volume I. Campinas: Bookseller, 1997. p. 352.

[6] Idem, p. 352-353.

[7] LOPES JÚNIOR, Aury; BADARÓ, Gustavo Henrique. Presunção de inocência:

Do conceito de trânsito em julgado da sentença penal condenatória, Parecer, 20 maio 2016. Disponível em: < https://www.conjur.com.brhttps://www.conjur.com.br/wp-content/uploads/2023/09/parecer-antecipacao-pena-1.pdf>. Acesso em: 14 jun. 2021.

[8] Idem.

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