Opinião

Quer o Supremo Tribunal Federal a "confederalização" dos estados?

Autor

  • Rogério Reis Devisate

    é advogado membro da Academia Brasileira de Letras Agrárias da Academia Internacional de Direito e Ética da Academia Fluminense de Letras do Instituto Federalista e da União Brasileira de Escritores presidente da Comissão Nacional de Assuntos Fundiários da União Brasileira dos Agraristas Universitários (Ubau) membro da Comissão de Direito Agrário da OAB/RJ e do Ibap autor de vários artigos e do livro Grilos e Gafanhotos Grilagem e coordenador da obra Regularização Fundiária: Experiências Regionais.

17 de junho de 2021, 20h14

A história dos povos e nações se constrói pelo encadeamento dos acontecimentos. Nada acontece por acaso. Tudo está interligado e em infinita evolução.

Nos últimos dias, o Supremo Tribunal Federal reconheceu a repercussão geral (tema 1.155) no recurso extraordinário com agravo (ARE 1.325.815/SP) e busca a seu respeito a manifestação do prestigioso Conselho Federal da OAB.

De fato, o Tema 1.155 é de alta relevância e assim se nos apresenta: "Inadmissibilidade de recurso extraordinário por ofensa reflexa à Constituição e/ou para reexame do quadro fático-probatório".

O assunto representa mais do que parece e se propõe a um salto histórico, quiçá modificando a estrutura reinante no Sistema Jurídico.

De fato, nós que há muito atuamos perante o Supremo Tribunal Federal sabemos o quão imensurável é o volume de processos nos quais a pretensão recursal é negada por debater ofensa reflexa ou mediata ao texto constitucional ou por exigir o garimpo dos profundos veios fático-probatório.

Todavia, embora julgasse contra o recorrente, a Suprema Corte não se colocava em posição jurídica de impedir o acesso do cidadão jurisdicionado.

Doravante tudo mudaria, pois o tema 1.155 da repercussão geral introduz um novo paradigma, que merece detida análise.

Confederação — federação — direitos individuais e conformação estatal
Nas suas raízes, a causa remota do federalismo americano era a Confederação, diferentemente do que ocorreu no Brasil — e isso é de extrema importância para a análise do tema proposto.

Em primeiro lugar, devemos buscar as bases da Declaração de Direitos da Constituição dos Estados Unidos da América, de 1.787, cujas raízes filosóficas focavam nos direitos individuais e no direito de revolução — registre-se, contra a Inglaterra.

Assim, estavam protegidas as liberdades fundamentais e individuais dos cidadãos nos EUA, definindo o sistema de governo federal, a jurisdição e os direitos básicos das pessoas.

Não seria errado dizer que nos EUA a Soberania é "dividida" e que cada indivíduo é, ao mesmo tempo, cidadão da federação e do seu estado federado. Tal ocorre porque, nas origens, a autonomia de cada um dos Estados que formaram a Confederação teve de "abrir mão" da sua soberania em prol de um órgão maior, central, daí formando a ideia de uma nação que representasse essa união de tantos em prol de um forte maestro central, surgindo daí o nome de Estados Unidos da América.

Ora, lá a Confederação se conformou em Federação a partir da consolidação desse vigor unitário entre os então Estados Soberanos independentes — as 13 ex-colônias originais — e o povo transferiu poderes para o governo federal, concluindo-se que o que não foi delegado remanesceu com cada ente estatal. Por isso víamos tantas diferenças no agir de cada Estado, como a previsão de pena de morte etc

Isso difere em tudo da nossa condição nacional.

A Suprema Corte do Brasil pode receber qualquer assunto. São milhares de casos, todos os anos…

Nos EUA, a Supreme Court não recebe tantas demandas e seleciona uns 100 casos para julgamento nos períodos em que se reúne, de outubro a junho.

 Observemos, assim, a falta de uma natural origem causal na federação fixada pela Constituição da República dos Estados Unidos do Brasil, promulgada em 1.891, optando logo por uma união indissolúvel e pelo afastamento da possibilidade de sesseção, comum às Confederações — uma solução republicana, até para que se proteger a República recém nascida de hipotéticas investidas dos monarquistas.

Portanto, no Brasil, não existiu a transição da Confederação para Federação, apenas a ressignificação das antigas províncias do Império para estados federados e, nesse contexto, poderíamos registrar que já eramos Estado Unitário, com poder centralizado e monístico, desde as origens.

Delegatas potestas delegari non potest repercussão geral — tema 1.155
O Tema 1.155 da Repercussão Geral reconhecida pela Suprema Corte brasileira traz consigo o propósito de impedir que cheguem ao seu protocolo os recursos que contenham temas de natureza fático-probatória ou de ofensa mediata ou indireta ao texto constitucional.

A priori, nenhum problema.

Contudo, sabemos que o juízo de admissibilidade ocorre tanto na ambiência da Suprema Corte quanto nos tribunais de origem, sejam estaduais ou federais.

E, se a questão do Tema 1.155 viger, ter-se-á uma situação curiosa, porquanto serão os tribunais inferiores que terão a única e última palavra nos recursos dirigidos ao Supremo Tribunal Federal!

Delegatas Potestas Delegari Non Potesti [1]. Essa máxima latina nos ensina que não pode haver delegação de poder delegado. Portanto, se a Constituição Federal de 1988 comete ao Supremo Tribunal Federal certa competência, não poderia este fazer a delegação ou subdelegação a tribunais estaduais ou federais, hierarquicamente inferiores.

A cada um conforme a sua virtude.

A propósito, nas lições de Patrick W. Duff e Horace E. Whiteside, no estudo intitulado Delegata potestas non potest delegari: a máxima da lei constitucional americana [2], no item 1 — História e Aplicação da Máxima —, lemos:

"Em seus comentários sobre a lei do arbítrio, ele dá a seguinte declaração dos princípios regentes

Um, que tem um poder ou autoridade de outro para fazer um agir, deve executá-lo ele mesmo, e não pode delegar sua autoridade para outro; por ser uma confiança ou segurança repousada nele pessoalmente, não pode ser atribuído a um estranho, cuja capacidade e integridade pode não ser conhecida pelo diretor, ou, se conhecida, pode não ser selecionado por ele para tal propósito.

A razão é clara; pois, em cada um desses casos, há um exclusivo confiança pessoal e confiança depositada na parte em particular. E, portanto, é derivada a máxima da lei comum; Delegata potestas non potest delegari" (tradução, grifos e destaques do autor).

Como consequência, será um tribunal não constitucional que negará o direito material e recursal à parte que busca tutela constitucional…

Outrossim, não se trata de controle difuso de constitucionalidade, mas de pretensão jurídico-processual em típicos recursos de vocação constitucional.

Ademais, a generalização não é útil e salutar, exatamente por permitir tipos abertos a interpretação de toda sorte. Seria razoável se a Corte Suprema apontasse que esta ou aquela situação teria repercussão geral para negar o recurso e não simplesmente reconhecer a genérica expressão "ofensa mediata" ou "conteúdo fático-probatório".

Aliás, sobre conteúdo fático-probatório, toda relação jurídico-processual a tem, em maior ou menor intensidade, afinal, o Direito trata das relações sociais qualificadas pela norma jurídica e, sendo assim, não nega conexão com os fatos. C`est la réalité des faits, como dizem os franceses.

Moniz Bandeira [3], aliás, registra:

"na história, como Oswald Spengler salientou, não há ideais, mas somente fatos, nem verdades, mas somente fatos, não há razão nem honestidade, nem equidade etc, mas somente fatos" […] "E palavras não mudam a realidade dos fatos".

Conclusão
A ideia de se transferir parcela da atribuição da Suprema Corte na aferição de competências constitucionais representaria a delegação de "superpoderes" aos tribunais locais, sejam federais ou estaduais.

Ademais, "delegar" poderes da Suprema Corte para tribunais a quo gerará um aumento das suas competências, conferindo ao judiciário dos estados potestades assemelhadas às dos estados confederados — com uma autonomia que nos remete às origens da História da Confederação Americana, antes citada.

A tese pode ser boa e revestida dos melhores propósitos e intenções, mas traz consigo a revelação de uma "porta" estreita demais, a ser gerenciada por quem não tem a atribuição de Corte Constitucional.

E se houver um excesso negativista? Quem e como se o corrigirá?

E, como seria uma "delegação" genérica por "repercussão geral" e não por norma constitucional, talvez o caminho pudesser vir a ser outro, por meio de Projeto de Emenda Constitucional, que poderia colocar o debate em outro patamar, discutindo-se com o Parlamento as vantagens ou não do sistema proposto.

Por fim, penso que a máxima latina Delegatas Potestas Delegari Non Potesti nos assombra com o seu vigor, lucidez e atualidade e não se dispensa um ensinamento histórico tão lógico e testado.

 


[1] DEVISATE, Rogério Reis. Delegatas Potestas Delegari Non Potest. Parecer. 1998. Revista CEJUR, nº 12.

[2] DUFF, Patrick W. Horace E. Whiteside. Article 4 Delegata Potestas Non Potest Delegari A Maxim of American Constitutional Law. Cornell Law Review, Volume 14. Issue 2 February 1929 – FONTE: Internet – https://core.ac.uk/download/pdf/216739352.pdf: "In his Commentaries on the Law of Agency he gives the following statement of the governing principles: "One, who has a bare power or authority from another to do an act, must execute it himself, and cannot delegate his authority to another; for this being a trust or confidence reposed in him personally, it cannot be assigned to a stranger, whose ability and integrity might not be known to the principal, or, if known, might not be selected by him for such a purpose 3 … The reason is plain; for, in each of these cases, there is an exclusive personal trust and confidence reposed& in the particular party. And hence is derived the maxim of the common law; Delegata potestas non potest delegari. And the like rule prevailed, to some extent, in the civil law; Procuratorem alium procuratorem facere non posse"…

[3] MONIZ BANDEIRA, Luiz Alberto. A desordem mundial: o espectro da total dominação: guerras por procuração, terror, caos e catástrofes humanitárias. Rio de Janeiro. Ed. Civilização Brasileira, 1ª edição, 2016, p. 513 — trecho destacado e grifado.

Autores

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    é advogado no Rio de Janeiro, membro da Academia Brasileira de Letras Agrárias e da Academia Fluminense de Letras, presidente da Comissão Nacional de Assuntos Fundiários da UBAU, membro da Comissão de Direito Agrário da OAB/RJ, defensor Público/RJ junto ao STF, STJ e TJ/RJ; associado ao IBAP e à UBE , autor de vários artigos e dos livros Grilos e Gafanhotos Grilagem e Poder, Diamantes no Sertão Garimpeiro e Grilagem das Terras e da Soberania.

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