Garantias do consumo

Neutralidade da rede e proteção do consumidor no contexto pandêmico

Autor

  • Cíntia Rosa Pereira de Lima

    é professora de Direito Civil da Faculdade de Direito da USP Ribeirão Preto–FDRP doutora em Direito Civil pela Faculdade de Direito da USP com estágio na Ottawa University (Canadá) com bolsa CAPES-PDEE - doutorado Sanduíche e livre-docente em Direito Civil Existencial e Patrimonial pela Faculdade de Direito de Ribeirão Preto (USP) pós-doutora em Direito Civil na Università degli Studi di Camerino (Itália) com fomento FAPESP e CAPES líder e Coordenadora dos Grupos de Pesquisa “Observatório da LGPD” e “Observatório do Marco Civil da Internet” (CNPq) e do Grupo de Estudo "TechLaw" (IEA/USP) presidente do Instituto Avançado de Proteção de Dados–IAPD associada titular do IBERC - Instituto Brasileiro de Responsabilidade Civil.

16 de junho de 2021, 8h01

Introdução
O tema "neutralidade da rede" tem chamado a atenção de toda a comunidade jurídica, haja vista os desafios que apresenta à legislação e sua eficácia tendo em vista o caráter global da internet. O primeiro desafio está na própria definição de neutralidade da rede, cujo núcleo é a garantia de que os Provedores de Serviços de Internet (ISPs) tratem todo conteúdo e todas as aplicações igualmente, sem nenhum privilégio, desvantagem na prestação dos serviços ou priorização com base na fonte do conteúdo, no seu proprietário ou destinatário.

Essa expressão foi utilizada pela vez primeira por Tim Wu (2011), professor da Colombia Law School, a quem é creditada a criação do termo [1]. O autor destaca que a neutralidade da rede é um princípio desenhado (design principle) que requer que a rede mundial de computadores seja pública, isto é, que "trate todo conteúdo, sites e plataformas igualmente" [2]. Para tanto, estabeleceu-se uma regra fundamental de atuação dos provedores de acesso à internet, qual seja, a de tratar sem discriminação e/ou preferência o tráfego de dados.

No entanto, há muitos interesses em choque, e. g., interesses econômicos, políticos, tecnológicos, além da necessária proteção do consumidor e dos direitos e garantias fundamentais, notadamente a privacidade e proteção dos dados pessoais [3]. Nesse sentido, a possibilidade de os provedores de acesso à internet (Internet Service Providers) bloquear ou prejudicar o acesso a determinado conteúdo ou a determinadas aplicações viola direitos e garantias fundamentais, tais como privacidade (artigo 5o, inciso X da Constituição Federal de 1988  CF/88) e liberdade de expressão (artigo 5o, inciso IX da CF/88). Esses riscos se agravam na medida em que falta transparência no denominado "traffic shaping", ou seja, os provedores de acesso à Internet não informam adequadamente a redução de velocidade para a transmissão de determinado conteúdo em detrimento de outros.

Assim, fragilizar a neutralidade da rede pode diretamente prejudicar os direitos dos consumidores, contrariando o princípio da transparência, que deve nortear as relações de consumo nos termos do caput do artigo 4o do Código de Defesa do Consumidor (CDC), além da qualidade na prestação dos serviços, que é um direito básico dos consumidores (artigo 6o, inciso III do CDC).

2) Neutralidade da rede: conceito e sua regulação
O conceito de neutralidade da rede pode ser estabelecido a partir de quatro premissas, quais sejam:

a) arquitetura da rede, ou seja, a internet foi idealizada ab initio como uma ferramenta de comunicação plural e pública, devendo ser mantida assim;
b) interesses econômicos, no sentido que esse princípio impõe a igualdade no tratamento dos pacotes de dados favorecendo as regras da justa concorrência;
c) proteção dos direitos e garantias fundamentais dos usuários, em especial, o direito à privacidade (para que seus dados não sejam acessados) e direito à informação (para que os usuários saibam que tipo de controle está sendo feito pelos provedores); e
d) finalidade pública ou social, isto é, algumas hipóteses de discriminação de pacotes de dados são admissíveis quando assim o exigir o interesse público e relevância social.

O Comitê Gesto da Internet do Brasil (CGI), por meio da Resolução CGI.br/RES/003 [4], definiu neutralidade de rede como a diretriz segundo a qual "filtragem ou privilégios de tráfego devem respeitar apenas critérios técnicos e éticos, não sendo admissíveis motivos políticos, comerciais, religiosos, culturais, ou qualquer outra forma de discriminação ou favorecimento".

Nesse sentido, a expressão "neutralidade da rede" (net neutrality) foi construída por Tim Wu [5], que partiu do argumento end-to-end, segundo o qual não se deve favorecer ou restringir nenhum serviço, característica ou conteúdo que circula na rede, porque cada usuário sabe o que procura na internet e o que quer disponibilizar, da mesma forma as aplicações e os serviços são disponibilizados conforme as suas respectivas características. O autor conclui que a internet pode ser entendida como uma plataforma na qual há uma competição constante entre os provedores de conteúdo e de aplicação pela atenção dos usuários. Portanto, e-mail, aplicações do tipo streaming e outras "are in a battle for the attention and interest of end-users. It is therefore important that the platform be neutral to ensure the competition remains meritocratic".

No Brasil, a neutralidade da rede está garantida em lei, o Marco Civil da Internet estabeleceu como um princípio da rede no artigo 3º, inciso IV, que determina a "preservação e garantia da neutralidade de rede". Além disso, o artigo 9o assegura o tratamento isonômico de quaisquer pacotes de dados. Este artigo foi regulamentado pelo Decreto n° 8.771, de 11 de maio de 2016.

Importante destacar as três formas de discriminação de conteúdo na Internet quais sejam: o bloqueio, a redução de velocidade ou a cobrança diferenciada pelo acesso ao conteúdo. Esta última forma de discriminação implica na identificação do conteúdo ou a aplicação acessada pelo usuário para verificar a cobrança ou não pelo acesso, descontando do pacote de dados contratado [6].

De fato, a discriminação ou degradação do tráfego pode ser feita de maneira excepcional, quando, por requisitos técnicos, tal conduta seja necessária para a adequada prestação dos serviços e das aplicações. Esse padrão tecnológico não será definido pelos provedores, ao contrário, o Comitê Gestor da Internet e a Agência Nacional de Telecomunicações que definirão tais requisitos nos termos do artigo 6o do Decreto n° 8.771/2016.

Por fim, o Decreto Regulamentador afirma, no artigo 10, que a internet é única e de natureza aberta, plural e diversa, para que promova o "desenvolvimento humano, econômico, social e cultural, contribuindo para a construção de uma sociedade inclusiva e não discriminatória".

3) Os perigos das práticas "zero-rating" no uso do aplicativo "Coronavírus-SUS"
A prática denominada "zero-rating" consiste na oferta de acesso a determinadas aplicações e conteúdo sem que haja cobrança mediante o consumo do pacote de dados contratado pelo usuário. Para que se possa implementar essa oferta, os provedores de acesso à internet precisam ter acesso aos aplicativos e conteúdos acessados pelos usuários, o que colide com a neutralidade da rede, que impõe o tráfego de pacotes de dados sem discriminações, salvo pelos motivos determinados em lei.

O trágico contexto pandêmico decorrente da pandemia da Covid-19 poderia se enquadrar como um destes motivos previstos no artigo 8º do Decreto n° 8.711/2016?

Segundo este dispositivo, a degradação ou a discriminação decorrente da priorização de serviços de emergência está autorizado para:

"I  comunicações destinadas aos prestadores dos serviços de emergência, ou comunicação entre eles, conforme previsto na regulamentação da Agência Nacional de Telecomunicações  Anatel; ou
II
 comunicações necessárias para informar a população em situações de risco de desastre, de emergência ou de estado de calamidade pública.

Parágrafo único. A transmissão de dados nos casos elencados neste artigo será gratuita".

No Brasil, a Lei n° 13.979, de 06 de fevereiro de 2020, que dispõe sobre medidas para o enfrentamento da emergência de saúde pública decorrente do coronavírus, determinou diversas medidas para a diminuição do contágio da Covid-19, reconhecendo a situação de calamidade pública. O que foi confirmado pela Lei n° 14.010, de 10 de junho de 2020, que dispõe sobre o Regime Jurídico Emergencial e Transitório das relações jurídicas, conhecida como "RJET", além de tantas outras leis e medidas provisórias.

Neste contexto, diversas operadoras de telefonia móvel, como Claro, Oi, Tim e Vivo, passaram a ofertar a prática de "zero-rating" para as aplicações "Coronavírus-SUS" e Auxílio Emergencial [7]. O app "Coronavírus-SUS" é uma aplicação disponibilizada pelo Ministério da Saúde que visa conscientizar a população sobre a Covid-19, trazendo informativos relacionados aos sintomas, formas de prevenção, orientações caso exista uma suspeita de infecção, bem como o mapa indicando as unidades de saúde, dentre outras [8]. A quantidade de downloads de aplicativos do governo federal está na ordem de 20 milhões em lojas virtuais, com destaque para o aplicativo "Coronavírus-SUS" [9].

No entanto, o Instituto Brasileiro de Defesa do Consumidor (IDEC) realizou um excelente estudo sobre o tema, concluindo que [10]:

"De forma geral, foi possível concluir que mesmo tratando de necessidades dos consumidores, os compromissos apresentados pelas operadoras ainda são bastante frágeis e insuficientes frente às necessidades atuais, especialmente das pessoas mais vulneráveis, usuários de planos básicos e que o uso é majoritariamente por meio de celulares".

Importante recordar a Medida Provisória n° 954, de 17 de abril de 2020, que autorizava o compartilhamento de informações pessoais entre as empresas de telefonia móvel e fixa com a Fundação Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) para fins estatísticos cujo objetivo era o de monitorar as taxas de isolamento social, teve sua eficácia suspensa pelo STF ao julgar as Ações Diretas de Inconstitucionalidade 6387, 6388, 6389, 6390 e 6393 [11]. Ficou evidenciado no julgamento a proteção de dados pessoais como um direito fundamental. Além disso, não se justificou o compartilhamento de dados pessoais tendo em vista os riscos aos quais os titulares de dados estariam expostos e os benefícios que poderia trazer.

Semelhantemente, o raciocínio para mitigar a neutralidade da rede no contexto da pandemia a fim de justificar a prática "zero-rating" deve girar sobre os reais benefícios para contornar a situação de calamidade pública.

Conclusão
A calamidade pública decorrente da pandemia do novo coronavírus é real e catastrófica, no entanto, não pode ser uma justificativa para gerar novas ameaças e de difícil reversão. Portanto, este pode ser um fator determinante para eventuais discriminações no tráfego de pacote de dados, desde que tais medidas sejam necessárias e proporcionais aos riscos criados e adotada com a máxima transparência.

Portanto, estes provedores de acesso à internet devem manter as informações auditáveis para se verificar o que dispõe o artigo 13 do Decreto n° 8.711/2016:
a) controle estrito sobre o acesso aos dados mediante a definição de responsabilidades das pessoas que terão possibilidade de acesso e de privilégios de acesso exclusivo para determinados usuários;
b) previsão de mecanismos de autenticação de acesso aos registros, usando, por exemplo, sistemas de autenticação dupla para assegurar a individualização do responsável pelo tratamento dos registros;
c) criação de inventário detalhado dos acessos aos registros de conexão e de acesso a aplicações, contendo o momento, a duração, a identidade do funcionário ou do responsável pelo acesso designado pela empresa e o arquivo acessado; e
d) uso de soluções de gestão dos registros por meio de técnicas que garantam a inviolabilidade dos dados, como encriptação ou medidas de proteção equivalentes.

Em se tratando de dados pessoais e neutralidade da rede, caberá ao CGI.br (nos termos do §1º do artigo 13 do Decreto n° 8.711/2016) e à ANPD (artigo 55-J, inciso VII, X, XI, XIII, XVI e XXIII da LGPD) promover estudos e recomendar procedimentos, normas e padrões técnicos e operacionais para a proteção de dados pessoais e efetiva proteção do consumidor.


[1] Nessa matéria publicada na Revista Forbes Tim Wu foi apontado como o criador da expressão "neutralidade da rede" – FORBES. Net Neutrality Star Tim Wu Joins Federal Trade Commission as Senior Policy Advisor. In: Forbes (2 de outubro de 2011). Disponível em: http://www.forbes.com/. Acesso em: 09 jun. 2021.

[2] WU, Tim. Network Neutrality FAQ. Disponível em: http://timwu.org. Acesso em: 09 jun. 2021.

[3] Cf. e.g., REED, David P.; SALTZER, Jerome H.; CLARK, David D. Active Networking and End-To-End Arguments. In: IEEE Network, vol. 12 (3), p. 69-71, maio – junho de 1998. LEMLEY, Mark A.; LESSIG, Lawrence Lessig. The End of End-to-End: Preserving the Architecture of the Internet in the Broadband Era. In: UCLA Law Review, Vol. 48, p. 925 – 988, 2001. CLARK, David Clark; BLUMENTHAL, Marjory. Rethinking the Design of the Internet: The End to End Arguments vs. the Brave New World. In: The Center for Internet and Society. Disponível em: http://cyberlaw.stanford.edu/. Acesso em: 09 jun. 2021.

[4] BRASIL, Ministério das Comunicações e Ministério da Ciência e Tecnologia, Comitê Gestor da Internet no Brasil, CGI. Resolução CGI.br/RES/2009/003/P de 15 de junho de 2009. In: Resoluções, 2009. Disponível em: https://www.cgi.br/resolucoes/documento/2009/003. Acesso m: 09 jun. 2021.

[5] Network Neutrality, Broadband Discrimination". In: Journal on telecom and high tech law, vol. 02, pp. 141 -179, 05 de junho de 2003.

[6] RAMOS, Pedro Henrique Soares. O Marco Civil e a importância da neutralidade da rede: evidências empíricas no Brasil. In: DE LUCCA, Newton; SIMÃO FILHO, Adalberto; LIMA, Cíntia Rosa Pereira de. Direito & Internet. Vol. III: Marco Civil da Internet, Lei n° 12.965/2014. São Paulo: Quartier Latin, 2015. pp. 137 – 154. pp. 138-139.

[7] INTERNET e pandemia: ações de operadoras são insuficientes. IDEC (Instituto Brasileiro de Defesa do Consumidor), 05 maio 2020, atualizado em 24 jul. 2020. Disponível em: https://idec.org.br/noticia/acesso-internet-acoes-de-operadoras-sao-insuficientes-em-tempos-de-pandemia, Acesso em: 09 jun. 2021.

[8] BRASIL. MINISTÉRIO DA SAÚDE. Coronavírus-SUS. Disponível em: https://www.gov.br/pt-br/apps/coronavirus-sus, Acesso em 09 jun. 2021.

[9] BRASIL. MINISTÉRIO DA ECONOMIA. GOVERNO DIGITAL. Aplicativos do governo federal superam 20 milhões de downloads em lojas virtuais. Publicado em 13/03/2020 19h56. Atualizado em 25/02/2021 16h38. Disponível em: https://www.gov.br/economia/pt-br/assuntos/noticias/2020/marco/aplicativos-do-governo-federal-superam-20-milhoes-de-downloads-em-lojas-virtuais. Acesso em 09 jun. 2021.

[10] Internet e pandemia: ações de operadoras são insuficientes. Disponível em: https://idec.org.br/noticia/acesso-internet-acoes-de-operadoras-sao-insuficientes-em-tempos-de-pandemia. Acesso em 09 jun. 2021.

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    é professora de Direito Civil da Faculdade de Direito da USP Ribeirão Preto–FDRP, doutora em Direito Civil pela Faculdade de Direito da USP com estágio na Ottawa University (Canadá) com bolsa CAPES-PDEE - doutorado Sanduíche e livre-docente em Direito Civil Existencial e Patrimonial pela Faculdade de Direito de Ribeirão Preto (USP), pós-doutora em Direito Civil na Università degli Studi di Camerino (Itália) com fomento FAPESP e CAPES, líder e Coordenadora dos Grupos de Pesquisa “Observatório da LGPD” e “Observatório do Marco Civil da Internet” (CNPq) e do Grupo de Estudo "TechLaw" (IEA/USP), presidente do Instituto Avançado de Proteção de Dados–IAPD, associada titular do IBERC - Instituto Brasileiro de Responsabilidade Civil.

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