Opinião

O que é (ou deve ser) o poder geral de cautela do Tribunal de Contas da União?

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16 de junho de 2021, 6h02

O julgamento do mandado de segurança 24.510, pelo Supremo Tribunal Federal, é considerado um marco para a atuação do Tribunal de Contas da União, uma vez que, com base na teoria dos poderes implícitos, reconheceu a existência de um poder geral de cautela ao órgão de controle externo.

Com base nessa decisão, e diversas outras que na mesma linha vieram em seguida, parte da doutrina tem sustentado a possibilidade de os Tribunais de Contas suspenderem cautelarmente contratos administrativos, seja diretamente, seja sem que haja a concessão dos prazos previstos na Constituição. Em outros casos encontram-se decisões dos tribunais, de cunho cautelar, que acabam afrontando limitações legais. Poderia esse pretenso poder geral de cautela do TCU fundamentar essas medidas?

Primeiro ponto a ser questionado é se o TCU de fato teria um poder geral de cautela. Entendemos que a resposta, de imediato, é afirmativa. A bem da verdade, não só o TCU se mostra detentor de um poder geral de cautela, mas toda a Administração Pública no exercício da função administrativa.

A existência de uma cautelaridade administrativa, exercida no bojo da função administrativa, sem prejuízo da necessidade de previsão legal, pode ser defendida juridicamente à luz da necessidade de eficiência da atuação administrativa, decorrente de um dever de prevenção/precaução próprio do princípio da boa administração pública, sendo o instrumento hábil, conferido pela ordem jurídica, ainda que de maneira implícita, para alcançar, no maior grau possível, o interesse público [1].

É dizer, a existência de uma cautelaridade administrativa se estriba não em um único princípio, ou em uma única teoria jurídica (vai além da duvidosa teoria dos poderes implícitos mencionada na indigitada decisão do STF), mas sim em um robusto conjunto teórico-normativo que, analisado conjuntamente, confere sustentáculo hábil a se invocar a presença do dever-poder de cautela da Administração Pública.

Além disso, no âmbito federal, há a previsão do artigo 45 da Lei 9.784/99, que serve como fundamento legal para a existência de um poder geral de cautela administrativa. Não obstante se tratar de um diploma federal, tendo em vista seu caráter principiológico e as lacunas normativas em âmbito estadual e municipal, tanto doutrina como o Poder Judiciário têm avalizado a sua aplicação, nas hipóteses de omissão normativa, nas esferas estaduais e municipais. Nesse sentido, vide a Súmula 633 do Superior Tribunal de Justiça [2].

Em resumo, a cautelaridade administrativa é própria do exercício da função administrativa, o que alberga, por conseguinte, a atuação dos Tribunais de Contas.

O segundo ponto a ser respondido é qual o significado de um poder geral de cautela administrativa. Como já tivemos a oportunidade de escrever, um poder geral de cautela significa autorizar a adoção de provimentos atípicos, sem a necessidade de um rol exaustivo previsto pelo legislador. Assim, cabe ao agente público adotar, diante do caso concreto, uma medida que tenha o condão de garantir a utilidade do provimento final de um processo administrativo ou evitar/minimizar um dano a um bem juridicamente tutelado [3].

Ademais, o poder geral de cautela também autoriza que o legislador infraconstitucional preveja medidas cautelares administrativas específicas, mesmo não havendo expressamente essa atribuição constitucional (lembrando-se, somente, que a previsão legislativa deve estar em sintonia com as finalidades da instituição/órgão e respeitando as normas constitucionais).

O ponto fulcral a respeito desse poder cautelar administrativo repousa em compreender que legitimar a adoção de provimentos acautelatórios atípicos não pode servir como uma autorização ampla e inconsequente para que seja concedido qualquer tipo de medidas provisionais. Requisitos como o dever de motivação e a proporcionalidade, só para mencionar alguns, são imprescindíveis para a invocação de qualquer provimento acautelatório [4].

Nesse ponto, deve-se destacar que toda medida cautelar administrativa, típica ou atípica, possui alguns requisitos, dentre os quais a necessidade do respeito aos limites constitucionais. Assim, um provimento cautelar administrativo não pode, por exemplo, não conferir o contraditório e a ampla defesa à pessoa afetada (ainda que postergado a um momento ulterior, em razão da urgência da medida a ser adotada), por se tratar de uma garantia constitucional.

Assim, a legislação e, com maior destaque, a Constituição, podem balizar os limites da atuação cautelar administrativa (tanto para medidas típicas como atípicas). A esse respeito, relembre-se que em relação aos contratos administrativos, não cabe ao TCU suspendê-los diretamente, conforme se extrai do artigo 71, §§ 1º e 2º do texto constitucional. Nessa toada, Celso Antônio Bandeira de Mello já havia apontado isso de maneira bastante lúcida em parecer a respeito do tema, tendo apresentado, em suas conclusões, que "Tribunais de Contas não têm competência para determinar sustação de contratos, independente do transcurso in albis, no Legislativo, do prazo a que alude o art. 71, §2º, da CF" [5].

Logo, reconhecer um poder geral de cautela administrativa ao TCU não implica permitir que se adotem medidas cautelares administrativas violando regras constitucionais. Não há causalidade lógica entre reconhecer um poder geral de cautela ao TCU (permissivo para a utilização de provimentos acautelatórios atípicos e para uma positivação de novas medidas cautelares típicas pelo legislador) e a adoção de suspensão de contratos administrativos diretamente pelo TCU, ou qualquer outra medida cautelar administrativa em desrespeito à legislação e à Constituição.

Em particular no que tange às suspensões diretas de contratos administrativos, argumentos metajurídicos como a necessidade de proteção ao Erário, que somente com a suspensão de contratos administrativos é que se evitará perda de dinheiro público, dentre outros, não podem servir de fundamento para que se descumpra a Constituição. Se foi uma boa escolha ou não do legislador constituinte é questão de política legislativa. Há solução? Sim. Emende-se a Constituição. Enquanto isso não ocorre, somente esperamos que ela não seja violada.

 


[1] CABRAL, Flávio Garcia. Medidas cautelares administrativas: regime jurídico da cautelaridade administrativa. Belo Horizonte: 2021, p.93.

[2] CABRAL, Flávio Garcia. Medidas cautelares administrativas: regime jurídico da cautelaridade administrativa. Belo Horizonte: 2021, p.149.

[3] CABRAL, Flávio Garcia. Medidas cautelares administrativas: regime jurídico da cautelaridade administrativa. Belo Horizonte: 2021, p.153.

[4] CABRAL, Flávio Garcia. Medidas cautelares administrativas: regime jurídico da cautelaridade administrativa. Belo Horizonte: 2021, p.153.

[5] BANDEIRA DE MELLO, Celso Antônio. Pareceres de direito administrativo. São Paulo: Malheiros, 2011, p. 436.

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