Trabalho contemporâneo

Yes, nós temos sindicalismo de toga

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15 de junho de 2021, 8h02

Li o artigo publicado aqui na ConJur sobre reportagem do site O Antagonista acerca da venda de créditos trabalhistas na Justiça do Trabalho, sobre a qual também tive a oportunidade de escrever semana passada. A questão central naquele artigo foi defender os magistrados do Trabalho contra a pecha imputada pelo veículo jornalístico que apelidou de "sindicalistas de toga" os juízes que atuam por um viés ideológico proferindo decisões que nitidamente possuem coloração enviesada em prol da classe trabalhadora e aversão ao sistema capitalista.

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O artigo, que corretamente ao final pede que a magistratura siga seu compromisso com a Constituição Federal e com o ordenamento jurídico, dizendo que "sentimento de ódio e de amor não cabem no Poder Judiciário", curiosamente inicia com uma retórica de desqualificação, um tanto o quanto agressiva, sustentando que o site "O Antagonista" publicou uma simples "opinião", pois "não se pode chamar de reportagem, porque esse veículo nunca ouve os envolvidos quando fala de Justiça do Trabalho".

Pode-se perceber a emoção no artigo quando segue sua fundamentação pela alegação de que "nem mesmo se sabe se o articulista alguma vez pisou num fórum trabalhista ou assistiu a audiências trabalhistas", "talvez" tendo formado sua opinião "por algum outro articulista, que insiste, como um disco riscado, em coletar uma decisão a cada 100 mil proferidas no mês para criticar juízes e a Justiça do Trabalho".

Fiquei com a sensação de que este articulista mencionado sou eu, mas pode ser muita pretensão minha estar sendo considerado como um influenciador de jornalistas país afora, até porque a minha coluna sobre a venda de créditos foi publicada após a "opinião" do site mencionado e o termo "sindicalista de toga" é usado, aliás de forma muito criativa e engraçada, há muito tempo (e tenho certeza de que não fui inspiração para esta alcunha).

Como eu já pisei em diversos fóruns trabalhistas (completo em breve 24 anos de magistratura), posso tranquilamente analisar, ao invés de combater com fervor, o divertido termo criado e afirmar: Yes, nós temos "sindicalismo de toga".

Fazer uma análise quantitativa das decisões judiciais, digamos, técnicas e imparciais, frente às que explicitamente mostram aversão ao capitalismo leva, sem dúvida, ao reconhecimento de que a regra na Justiça do Trabalho não é a produção de decisões enviesadas ideologicamente, até porque a maioria dos casos trabalhistas cuida de simples descumprimento da lei positivada, o que não pede maiores digressões sobre o ordenamento jurídico pelo juiz. Basicamente é verificar recibos, ouvir testemunhas e tentar descobrir quem está mentindo na relação processual (quando não são ambos…).

O grande problema, não identificado no artigo citado, é que os "sindicalistas de toga" estão, em boa parte, à frente das entidades associativas de magistrados, reverberando um discurso, indubitavelmente, ideológico, parcial e avesso, sim, ao capitalismo. Por todas estas entidades, basta uma rápida pesquisa no site da Anamatra para se verificar o claro posicionamento desta instituição contra a Reforma Trabalhista e, mais, da sua atuação em prol dos trabalhadores.

Do ajuizamento de ações diretas de inconstitucionalidades a intervenções como amigos da corte no Supremo, sempre defendendo os interesses ligados à classe trabalhadora, dos pronunciamentos públicos junto ao Congresso Nacional e, até, a denúncia do Brasil junto à Organização Internacional do Trabalho, a Anamatra produz, sim, esta sensação à sociedade de que a magistratura do Trabalho atua de forma proativa em defesa dos trabalhadores.

Nós, magistrados do Trabalho, podemos simplesmente escrever quantas linhas desejarmos para afirmar o oposto, ressaltar a independência necessária ao exercício da magistratura, defender a liberdade de expressão qualquer que seja o sentido, mas o fato não vai justificar, para o cidadão que não pertence à classe jurídica, que juízes tenham posicionamentos previamente estabelecidos, por exemplo, contra determinada lei, da forma que ocorreu com a Reforma Trabalhista.

O termo "sindicalismo de toga", para mim, é uma feliz expressão que resume claramente o mal a ser combatido para que o Poder Judiciário possa não apenas pressupor, mas mostrar à sociedade, que atua de forma isenta, sem compromissos com ninguém, muito menos a classe política, no momento de formar suas convicções acerca da interpretação do ordenamento jurídico.

Conforme já pacificado pelos Princípios de Bangalore de Conduta Judicial, "a imparcialidade é essencial para o apropriado cumprimento dos deveres do cargo de juiz. Aplica-se não somente à decisão, mas também ao processo de tomada de decisão".

E conforme os comentários aos princípios mencionados, em edição traduzida pelo Conselho da Justiça Federal.

"…A percepção de que o juiz não é imparcial pode surgir de diversos modos, por exemplo, da percepção de um conflito de interesses, do comportamento do juiz na corte, ou das associações e atividades do juiz fora dela" (grifos nossos).

Como visto, as associações de magistrados possuem o dever de, em sua atuação, reverberar os mesmos valores que compõem as garantias fundamentais de todos os cidadãos que precisam se submeter à autoridade do Poder Judiciário. Uma entidade que representa a coletividade de juízes deve, portanto, como a voz destes magistrados, agir de forma coerente com a imparcialidade, exigência ética de quem pretende expressar os interesses da magistratura.

Se a sociedade possui a percepção de que a Justiça do Trabalho é parcial, ainda que pela "opinião" de um jornalista, deveríamos nós, magistrados, nos preocuparmos mais em identificar os motivos pelos quais isso ocorre e, não, produzir uma defesa emotiva da nossa classe. Aliás, "as opiniões mantidas de forma passional são sempre aquelas para as quais não existem bons fundamentos; na verdade, a paixão é a medida da falta de convicção racional de seu defensor" (Bertrand Russel, Ensaios Céticos, L&PM Editores, 2013).

Neste ponto poderíamos lavar as mãos e atribuir a responsabilidade da imagem de parcialidade que marca a magistratura do Trabalho na condução do movimento associativo, uma minoria que se mantém nos cargos de direção mais pela falta de vontade da maioria em se manifestar do que pelos próprios méritos, visto que nas últimas décadas a classe de magistrados apenas registra perdas (de prerrogativas e de remuneração).

Infelizmente, não podemos esquecer que os dirigentes que possuem o viés "sindicalista de toga", para usar a expressão em análise, são na verdade eleitos pela maioria dos que compõem os quadros da magistratura, ativos e aposentados. Somos todos responsáveis, portanto, por esta forma de condução dos nossos interesses. Nós votamos e elegemos nossos representantes associativos. Nós criamos esta imagem para a sociedade. E a maioria a mantém, pois continua alimentando o sistema legitimando a atuação "sindicalista" de seus dirigentes.

Atacar um jornalista que, de forma feliz, criou uma expressão que resume todo um conceito de fato existente é redobrar a impressão que a sociedade já possui dos magistrados do Trabalho. Melhor seria combater, dentro da própria classe, qualquer atuação com viés de parcialidade e, não, produzir literatura contra profissionais da imprensa nem, de quebra, mais uma vez tentar desqualificar um dos poucos articulistas que, semanalmente, procura alertar a todos dos perigos de uma magistratura ideologizada.

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