Superlotação e violência

Sociedade civil debate situação das prisões no Brasil no primeiro dia de audiência no STF

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15 de junho de 2021, 11h47

Nessa segunda-feira (14/6) aconteceu o primeiro dia da audiência pública convocada pelo ministro do Supremo Tribunal Federal, Gilmar Mendes. Foram discutidos os desafios presentes no sistema prisional brasileiro, considerado há cinco anos como "estado de coisas inconstitucional" (ADPF 347), e o cumprimento do Habeas Corpus coletivo 165.704 por membros da sociedade civil, do Judiciário e do Executivo.

Wilson Dias/Agência Brasil
Primeiro dia de audiência no STF sobre o sistema carcerário conta com a participação de diversos setores da sociedade
Wilson Dias/Agência Brasil

Representantes da Defensoria Pública pontuaram que a realidade do sistema prisional não é capaz de ressocializar a população privada de liberdade e a "lógica disciplinar punitivista interfere no agravamento das penas". Nesse sentido, a presidente da Associação Nacional dos Defensores Públicos (Anadep), Rivana Barreto Ricarte, ressaltou que a situação degradante das prisões, para ela, equivale a uma dupla punição.

De acordo com o Conselho Nacional de Justiça, o sistema prisional brasileiro precisa de soluções interinstitucionais em diferentes esferas, como maior gestão de dados e a união entre as instituições para trabalhar na progressão de regime de mães encarceradas.

A desembargadora federal Taís Schilling Ferraz, por sua vez, acredita que a adoção de medidas paliativas, como Habeas Corpus coletivos e a realização de mutirões carcerários, são insuficientes. Ela defendeu o investimento em políticas públicas de medidas restaurativas.

A superlotação carcerária foi apontada por diversos membros da sociedade civil como maior responsável pela violação dos direitos dos presos e a representante da Conectas Direitos Humanos, Elaine Bispo da Paixão afirmou que o HC 165.704 tem potencial para ajudar a diminuir o excesso de prisões no país.

Porém, representantes da advocacia pontuaram que estão tendo dificuldades na aplicação do HC coletivo, pois é difícil provar se o apenado é imprescindível aos cuidados da criança. Para o vice-presidente da Comissão Nacional de Direitos Humanos da OAB, Everaldo Patriota, mesmo cumprida a decisão do STF no Habeas Corpus coletivo, ainda há um longo caminho a ser trilhado, e cita casos graves de violações aos direitos dos presos à saúde e às visitas.

Herivelto de Almeida, da Associação Nacional dos Membros do Ministério Público (Conamp), destacou a necessidade de fiscalizar as alternativas penais surgidas para mitigar a superlotação e as más condições nas prisões. Ele apresentou propostas para aumentar o monitoramento eletrônico dos presos domiciliares e universalizar o acesso ao trabalho e à educação entre a população carcerária.

De acordo com o presidente do Conselho Nacional de Política Criminal e Penitenciária (CNPCP), Márcio Schiefler Fontes, o STF contribui para a redução dos índices de criminalidade, mas ressaltou a necessidade da produção de dados mais exatos, confiáveis e abrangentes sobre o sistema prisional.

O secretário-geral da Associação dos Magistrados Brasileiros (AMB), Fernando Chemin Cury, defendeu que cada magistrado possa analisar as condicionantes estabelecidas na decisão da Segunda Turma do STF no HC 165.704, dentro de cada caso concreto. Já a juíza de execução penal do Rio de Janeiro Débora Valle de Brito, da Associação de Juízes Federais (Ajufe), disse que a Justiça Federal implementou todas as medidas determinadas pelo STF.

Porém, Eloísa Machado de Almeida, integrante do Coletivo de Advocacia em Direitos Humanos (CADHu), observou que o Tribunal de Justiça de São Paulo, cumpre pouco a decisão da Segunda Turma do STF. Para os integrantes do CADHu a imprescindibilidade da mãe para cuidar dos filhos deveria ser presumida, e o ônus de provar o contrário deve ser da acusação.

Hugo Leonardo, do Instituto de Defesa do Direito de Defesa (IDDD), também aponta que súmulas vinculantes e decisões do STF têm sido descumpridas. Segundo ele, o HC coletivo deveria ser modulado, com a definição de balizas objetivas para interpretar e conceder os direitos assegurados pela decisão.

"Gotas de sofrimento diário"
Organizações não governamentais e minorias expuseram os maiores problemas do sistema carcerário brasileiro. Monique Cruz, da ONG Justiça Global, destacou a seletividade do sistema carcerário, com grande maioria da população composta de pessoas negras e de baixa condição socioeconômica. Segundo ela, as condições degradantes equivalem à institucionalização da tortura e ressaltou a falta de protocolos de uso da força nas prisões. Isso mostra como práticas coloniais racistas de imposição da dor como forma de controle ainda estão enraizadas nas prisões do país.

No mesmo sentido, o representante do movimento Educafro, Irapuã Santana, afirma que o debate sobre o sistema prisional brasileiro exige um recorte racial. Ele apresentou dados do Levantamento Nacional de Informações Penitenciárias (Infopen) apontando que 64% da população carcerária no país são de pessoas negras. "Nos últimos 20 anos, a prisão de pessoas brancas caiu 19%, enquanto a de pessoas negras subiu 15%", observou. Para Irapoã, o sistema penal procura criminalizar a população afrodescendente.

Para Ademar Borges, do Instituto de Garantias Penais (IGP), a violência institucional e a superlotação assumem caráter de pena autônoma e devem ser computados para a detração do período de pena.

Foi levantada também a questão do encarceramento indígena. A representante do Conselho Indigenista Missionário (Cimi), Michael Mary Nolan, afirma que o número de índios presos cresce ano a ano e, entre novembro de 2020 e janeiro de 2021, foram mais de 1.200 presos.

Dandara Tinoco, do Instituto Igarapé, destacou que o alcance das ações de reinserção do egressos é limitado e, na maioria das vezes, as pessoas saem sem preparação até mesmo para o restabelecimento de vínculos com os familiares. Para ela ainda não existe uma política eficiente voltada para as pessoas egressas do sistema penitenciário.

No último período da tarde, foram ouvidos especialistas em saúde no sistema prisional. A médica e pesquisadora da Escola Nacional de Saúde Pública da Fiocruz, Alexandra Sánchez, apontou a tuberculose e o HIV como os principais motivos de mortes por causas naturais em presídios. Ela lamentou que 70% dos casos de doenças infecciosas são diagnosticados somente após o óbito, levando a crer que, em sua maioria, poderiam ser evitados.

HC 165.704

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