Contas à Vista

Prorrogação de auxílio à revelia da EC 109 desnuda CF tratada como LDO

Autor

15 de junho de 2021, 8h01

O redesenho das regras do jogo orçamentário feito diretamente no texto da Constituição de 1988 tem escalado níveis temerários precisamente porque envolve alterações majoritariamente erráticas, contingentes e voluntariosas.

Spacca

Desde a EC 86/2015, que tratou das emendas parlamentares individuais impositivas, foram adicionadas outras 11 emendas referidas especificamente ao ciclo orçamentário brasileiro. Trata-se de um número ainda conservador, porque não considera no seu cômputo as mudanças de cunho exclusivamente tributário, administrativo e previdenciário, a despeito das consideráveis repercussões orçamentário-financeiras trazidas por essas três searas.

Referimo-nos às Emendas Constitucionais 89/2015 (percentuais mínimos de recursos federais destinados às regiões CE e NE para irrigação); 93/2016 (8ª emenda sobre a desvinculação de receitas da União — DRU, prorrogando-a sucessivamente desde 1994 até 2023); 94/2016 e 99/2017 (regime dos precatórios); 100, 102 e 105/2019 (emendas parlamentares impositivas de bancada e demais regras sobre orçamento impositivo); 95/2016 (novo Regime Fiscal que fixou teto vintenário de despesas primárias para a União até 2036); 106/2020 ("Orçamento de Guerra" para o enfrentamento da pandemia); 108/2020 (Fundeb permanente) e 109/2021 (Emenda Emergencial).

Na prática, tivemos nos últimos seis anos uma emenda constitucional a cada semestre para supostamente promover ajustes fiscais e aprimoramentos orçamentário-financeiros. Cabe repetir para que a sociedade tenha clareza do tamanho do problema: foram 12 emendas em seis anos!

A falta de ordenação legítima de prioridades no ciclo orçamentário brasileiro fica literalmente desnudada a partir desse frenético fluxo de redesenhos normativos no texto constitucional.

O esgarçamento do nosso conflito distributivo ficou ineditamente exposto em praça pública a partir das manifestações de junho de 2013. O ano seguinte foi tomado pelas eleições nacionais e estaduais, de modo que, apenas a partir de 2015, o Congresso começou a empreender alguma reação retardatária à pressão social pelo efetivo enfrentamento da desigualdade. Aliás, quem não se lembra dos pleitos por "padrão Fifa" de qualidade para escolas e hospitais públicos, às vésperas da Copa Mundial de Futebol sediada pelo Brasil em 2014?

A resposta governamental àquelas volumosas manifestações populares, contudo, não foi o equacionamento da regressiva matriz tributária brasileira, tampouco houve a fixação dos limites de dívida mobiliária e consolidada, demandados desde a redação originária da Constituição de 1988 (artigos 48, XIV e 52, VI).

Assim, não enfrentamos os fatores nucleares de reprodução da desigualdade brasileira por dentro do ciclo orçamentário, haja vista a acentuada concentração de riqueza mediante sua insuficiente tributação, cuja liquidez daí decorrente é opaca e, por vezes, desarrazoadamente bem remunerada, a risco zero, na dívida pública.

De forma iníqua, escolhemos limitar as despesas primárias na Emenda 95/2016, sem jamais termos cumprido — de fato — as inúmeras previsões legais e constitucionais relativas, por exemplo, ao dever de revisão das renúncias fiscais (arrolei dez oportunidades normativas em que protelamos tal agenda inadiável de equidade fiscal no seguinte artigo).

Talvez para ocultar tudo isso, desde 2015, doze emendas se sucederam sem que tenhamos enfrentado, de fato, o mal-estar fiscal da nossa sociedade tão desigual e tão suscetível a capturas patrimonialistas que visam ao curto prazo eleitoral e à maximização de utilidades individuais às custas do erário.

Transformamos nossa Constituição Cidadã em uma espécie de lei de diretrizes orçamentárias que passou a ser redesenhada a toda hora, sem qualquer pudor. Gerson Sicca brilhantemente suscita o fenômeno da "constitucionalização excessiva" do Direito Financeiro.

Nesse sentido, o advento da calamidade sanitária em 2020 apenas agravou um quadro que já vinha se revelando doentio há alguns anos em nossa realidade. Muito embora tenham sido adotadas medidas emergenciais de fôlego no exercício financeiro anterior, era previsível que a pandemia não se findaria milagrosa e automaticamente com os fogos de artifício da virada do ano de 2020 para 2021, como quiseram nos fazer crer o Decreto Legislativo 6/2020 e a Emenda 106/2020.

Desde o envio do PLDO-2021, em abril do ano passado, propus que devíamos ter adotado um plano bienal de enfrentamento da pandemia, revendo o teto definido na Emenda 95/2016 e ampliando a vigência da Emenda do Orçamento de Guerra, como se pode ler aqui.

Tanto era previsível que certamente lhes cansei, caros leitores, de tanto reiterar, por diversas vezes nesta coluna Contas à Vista e outras instâncias [1], o alerta sobre a necessidade de planejar — nas leis de diretrizes orçamentárias e de orçamento anual — a necessária continuidade do enfrentamento à pandemia no exercício financeiro de 2021.

O problema é que a escolha estritamente política de retomar o teto de despesas primárias como âncora fiscal deste ano foi conduzida como se fosse um tabu inquestionável como se pudéssemos reduzir ainda mais o Estado brasileiro, quando a realidade social exigia, em sentido inverso, que se resguardasse tamanho suficiente para a consecução dos serviços públicos.

Para concomitantemente bloquear a agenda de progressividade tributária, foi interditado o debate acerca da revisão do teto e da prorrogação do Orçamento de Guerra, o que — direta ou indiretamente — deu causa a prejuízos consideráveis ao erário e à sociedade, sobretudo em termos de mortes evitáveis (quase meio milhão de vidas perdidas desde o início da pandemia) e de redução do potencial de desenvolvimento econômico (a exemplo da compra tardia e insuficiente de vacinas).

O preço cobrado pela falta de planejamento orçamentário adequado em face da previsível necessidade de continuar a custear as ações sanitárias, assistenciais e econômicas de enfrentamento à pandemia foi o acatamento cínico (e inconstitucional) de créditos extraordinários em pleno 2º ano de crise da Covid-19. Ora, trata-se de franca afronta ao artigo 167, §3º da CF e ao legado hermenêutico da ADI 4048 (como alertei aqui).

Desse modo, foram atropelados os princípios da separação de poderes, finalidade e legalidade, bem como foram aviltados o teto e o devido processo legislativo orçamentário tanto em relação ao PLDO-2021 (que sequer foi apreciado pela Comissão Mista de Orçamento), quanto ao PLOA-2021 (onde foram subestimadas despesas obrigatórias para abrir fictícia margem fiscal para emendas parlamentares). A tais abusos se soma o retrocesso apontado no escândalo da liberação subjetiva, opaca e potencialmente danosa ao erário das emendas de relator, marcadas sob indicador de resultado primário 9, escândalo esse mais conhecido como "tratoraço" ou "orçamento secreto" (como noticiado pelo Estadão).

Eis o pano de fundo histórico que explica o quão disparatada é a recente pretensão do Executivo federal de prorrogar novamente o auxílio emergencial por mais alguns meses, com potencial repercussão adicional de R$ 11 bilhões acima do limite máximo de R$ 44 bilhões fixado na Emenda 109/2021.

Segundo noticiado pela Folha:

"Em dezembro, o programa foi encerrado sem que houvesse uma proposta de renovação por parte do governo. A avaliação naquele momento era que a pandemia estava cedendo e não seria mais necessário pagar a assistência.

Depois de reconhecer o agravamento da crise sanitária, o governo passou a negociar a aprovação de uma PEC (Proposta de Emenda à Constituição) que, além de destravar o auxílio, criava uma série de medidas de ajuste fiscal.

A proposta foi promulgada apenas em março, com liberação dos benefícios em abril. Desse modo, o país ficou o primeiro trimestre sem a assistência emergencial.

Agora, membros do Ministério da Economia afirmem que não será necessário aprovar uma nova PEC ou decretar calamidade pública para renovar o auxílio. Segundo fontes da pasta, a avaliação é que a medida provisória será suficiente para implementar o plano.

[…] Custo das duas parcelas deve ficar em R$ 18 bilhões (R$ 11 bilhões em créditos extraordinários novos e R$ 7 bilhões de sobras da rodada atual)" (grifo da autora).

Ora, essa proposta é francamente contrária ao §1º do artigo 3º da Emenda Constitucional 109/2021 que fixara limite máximo de R$ 44 bilhões para o cômputo fora do teto e da meta de resultado primário em relação aos créditos extraordinários abertos para assegurar a continuidade do pagamento do auxílio emergencial:

"Artigo 3º Durante o exercício financeiro de 2021, a proposição legislativa com o propósito exclusivo de conceder auxílio emergencial residual para enfrentar as consequências sociais e econômicas da pandemia da Covid-19 fica dispensada da observância das limitações legais quanto à criação, à expansão ou ao aperfeiçoamento de ação governamental que acarrete aumento de despesa.

§ 1º As despesas decorrentes da concessão do auxílio referido no caput deste artigo realizadas no exercício financeiro de 2021 não são consideradas, até o limite de R$ 44 bilhões), para fins de:

I – apuração da meta de resultado primário estabelecida no caput do artigo 2º da Lei nº 14.116, de 31 de dezembro de 2020;

II – limite para despesas primárias estabelecido no inciso I do caput do artigo 107 do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias.

§ 2º As operações de crédito realizadas para custear a concessão do auxílio referido no caput deste artigo ficam ressalvadas do limite estabelecido no inciso III do caput do artigo 167 da Constituição Federal.

§ 3º A despesa de que trata este artigo deve ser atendida por meio de crédito extraordinário.

§ 4º A abertura do crédito extraordinário referido no § 3º deste artigo dar-se-á independentemente da observância dos requisitos exigidos no § 3º do artigo 167 da Constituição Federal.

§ 5º O disposto neste artigo aplica-se apenas à União, vedada sua adoção pelos Estados, pelo Distrito Federal e pelos Municípios."

Caso se confirme a prorrogação do auxílio emergencial à revelia do limite dado pelo artigo 3º da Emenda 109/2021, restará faticamente comprovada, a bem da verdade, a própria desnecessidade da Emenda Emergencial, bem como ficará evidente seu caráter constitucionalmente abusivo (como havíamos suscitado aqui).

Em tal contexto, cabe indagar se aludida Emenda não teria veiculado a prorrogação do auxílio emergencial apenas para exercer chantagem argumentativa em prol da aprovação do reforço das regras de ajuste fiscal já constantes do teto. Em uma analogia grosseira, a tramitação da PEC 186/2019 (da qual decorreu a EC 109/2021) teria sequestrado fiscalmente o urgente pagamento do auxílio emergencial, na medida em que o postergou nos três primeiros meses deste ano, para, de certa forma, extorquir mais uma rodada agressiva de ajustes reducionistas do tamanho do Estado brasileiro.

Em suma, a finalidade da própria Emenda Emergencial está em xeque e é preciso denunciarmos, com ênfase, a lesão ao princípio da boa-fé objetiva na desconsideração cínica e contraditória (venire contra factum proprium) tanto da vedação ao manejo de créditos extraordinários para atender a despesas previsíveis, quanto do limite fixado constitucionalmente de R$ 44 bilhões para a continuidade do auxílio emergencial em 2021.

Aliás, esse subteto de R$ 44 bilhões para o auxílio emergencial em 2021, por si só, é uma contradição em seus próprios termos, porque, se a despesa efetivamente é imprevisível e urgente a ponto de demandar crédito extraordinário, sequer precisaria apresentar fonte de custeio, já que seria impossível antever seu custo total.

Ideal seria que os poderes políticos da União tivessem planejado uma ampliação aprimorada do Bolsa-Família, de modo a corrigir a ilícita fila de espera causada pelos controversos limites de pagamento a que o programa tem sido submetido, algo que, por sinal, tem sido demandado até mesmo pelo presidente da Câmara dos Deputados, deputado Arthur Lira:

"O melhor a se fazer é aprovar um programa que fique no lugar do atual benefício, a nova versão do Bolsa Família. A expectativa dele é que antes do fim do prazo para o fim do acesso ao benefício, previsto para julho, seja aprovado um novo programa de renda para os brasileiros mais vulneráveis."

Entre o ideal e o real, a sociedade brasileira assiste ao mais puro e simples desvendamento acerca da cínica condução de muitas das alterações constitucionais brasileiras em matéria orçamentária.

Não é pouco tomarmos consciência de que nossa Constituição Cidadã tem sido tratada voluntariosamente como uma espécie de LDO de quórum qualificado, a qual tem sido semestralmente redesenhada e, por vezes, solenemente descumprida para manter intocada nossa histórica e brutal desigualdade, bem como para atender ao curto prazo eleitoral dos governantes de ocasião.

Embora não seja de pequena monta o fato de passarmos a ter tal consciência, haveremos de concordar também que esse é um diagnóstico profundamente triste do quanto nos falta avançar.

 


[1] A exemplo das entrevistas ao portal Nexo https://www.nexojornal.com.br/entrevista/2020/10/08/%E2%80%98Temos-que-pensar-o-ano-de-2021-com-a-cautela-de-um-p%C3%B3s-guerra%E2%80%99 e aos jornais Estadão https://economia.estadao.com.br/noticias/geral,debate-atropelado-sobre-teto-pode-levar-pais-a-feudalismo-fiscal-diz-procuradora,70003400269 e Valor https://valor.globo.com/brasil/noticia/2021/02/19/procuradora-critica-pressa-em-retirar-medidas-e-defende-mudanca-no-teto.ghtml

Autores

  • é procuradora do Ministério Público de Contas do Estado de São Paulo, pós-doutora em Administração pela Escola Brasileira de Administração Pública e de Empresas da Fundação Getulio Vargas (FGV/RJ) e doutora em Direito Administrativo pela Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG).

Tags:

Encontrou um erro? Avise nossa equipe!