Justiça Tributária

O ICMS entre estabelecimentos e a ADC 49: anulação dos créditos e federalismo

Autor

  • Fernando Facury Scaff

    é professor titular de Direito Financeiro da Universidade de São Paulo (USP) advogado e sócio do escritório Silveira Athias Soriano de Mello Bentes Lobato & Scaff Advogados.

14 de junho de 2021, 8h06

Dias atrás escrevi nesta coluna Justiça Tributária sobre a ADC 49 e o ICMS entre estabelecimentos do mesmo titular, centrando atenção nas operações interestaduais. Vimos que o Supremo Tribunal Federal, corretamente, determinou na ADC 49, sob relatoria do ministro Fachin, que nas transferências de mercadorias não há um ato de comércio passível de tributação pelo ICMS – aplausos.

Spacca
Hoje comento outro aspecto do mesmo problema, pretendendo fazê-lo com o mesmo enfoque didático: deve haver anulação dos créditos de ICMS nestas aquisições? Isto porque os Fiscos estaduais ensaiam obrigar a anulação desses créditos que vêm embutidos na aquisição original dessas mercadorias.

Em busca do didatismo, pode-se representar esta situação da seguinte forma: o contribuinte A adquire mercadorias com ICMS embutido no preço e destacado na nota fiscal. Todavia, ao transferir as mercadorias para outro estabelecimento seu, localizado em estado diverso, embora com o mesmo CNPJ, pretendem os Fiscos estaduais que seja anulado o ICMS referente à aquisição originária daquela mercadoria.

Assim, o contribuinte A terá pago o ICMS e perderá o direito ao seu crédito, pois não conseguirá recuperá-lo nas operações subsequentes, sob o argumento de que a operação posterior será isenta ou não tributada. A rigor, neste aspecto do problema, não se discute mais a incidência, mas a anulação do crédito original, em razão de que na operação subsequente não será cobrado o imposto.

Alegam os Fiscos que o amparo normativo está na Constituição, ao determinar que a isenção ou a não incidência do ICMS, salvo determinação em contrário da legislação, acarretará a anulação do crédito relativo às operações anteriores (artigo 155, parágrafo 2º, II, “b”).

Eis a questão: a que se refere este artigo da Constituição, que, inclusive, permite que exista “determinação em contrário da legislação”?

Trata-se claramente de uma situação que deve ser compreendida como limitada à territorialidade federativa, isto é, circunscrita à divisão política interna de um país organizado sob a forma federativa.

Melhor explicando: nas operações internas a cada estado, esta determinação possui certa lógica, como exceção à não cumulatividade, que é a regra geral (artigo 155, parágrafo 2º, I, da Constituição). Todavia, a interpretação desse artigo não alcança operações interestaduais nas quais haverá incidência do ICMS no estado de destino daquela transferência.

Eis o ponto: o caso analisado pela ADC 49 prevê isenção ou não incidência nessas operações? A resposta a esta questão deve necessariamente considerar a lógica federativa.

Se nos restringirmos à análise de cada estado membro individualizadamente, a resposta rápida e errada será: sim, a decisão do STF trata de uma hipótese de isenção ou não incidência, e o crédito de ICMS deve ser anulado na forma do artigo 155, parágrafo 2º, II, “b”, da Constituição.

Todavia, e este ponto é extremamente importante, a decisão do STF tratou da não incidência do ICMS nas operações interestaduais de transferência de mercadorias entre estabelecimentos do mesmo titular, isto é, as relações tributárias daquela operação, não abordando a questão financeira da manutenção do crédito decorrente dessas operações. Trata-se de outro problema, decorrente da referida decisão, e que não foi por ela tratado até o presente momento.

Observa-se que, a despeito de tais transferências não serem tributadas no estado de origem da transferência, o serão no estado de destino daquela operação.

Logo, a resposta meditada e correta à questão formulada só pode ser: não, o direito ao crédito permanece íntegro no estado de origem da transferência da mercadoria entre estabelecimentos, não devendo ser anulado, pois haverá tributação no Estado de destino desta transferência.

A ótica, portanto, extrapola os limites territoriais de cada estado isoladamente considerado no caso de transferências interestaduais de mercadorias entre estabelecimentos do mesmo contribuinte, pois haverá tributação na esfera de jurisdição fiscal de destino, sendo inaplicável à espécie o artigo 155, parágrafo 2º, II, “b”, da Constituição.

Como ocorrerá a transferência desse créditos entre os estados – ou seja, a transferência interestadual desse crédito de ICMS – é algo a ser verificado, no âmbito da regulamentação infraconstitucional, porém o direito ao crédito permanece íntegro, não se aplicando à esta hipótese ora analisada

Os Fiscos estaduais estão lendo de maneira restrita e simplista o artigo 155, parágrafo 2º, II, “b”, que possui a lógica da territorialidade federativa do ICMS, referindo-se apenas às operações internas a cada estado membro, e não à operação mercantil como um todo, interestadual. O alcance da norma não é o da ótica fiscal estadual pretendida, mas o da operação como um todo.

O STF, repete-se, agiu bem em reafirmar sua pacífica jurisprudência acerca da não incidência do ICMS na transferência de mercadorias entre estabelecimentos do mesmo titular. Resta agora analisar a pretensão fiscalista e reducionista dos Fiscos estaduais que pretendem a anulação dos créditos nas operações interestaduais em que ocorrem tais transferências, ancorados em uma norma que não tem a ampliação que os Fiscos lhe desejam aplicar. É necessário analisar de forma cooperativa nosso sistema federativo, e não como sendo os estados ilhas isoladas dentro de todas as operações empresariais realizadas.

Em suma: estamos prestes a enfrentar outras batalhas judiciais acerca desse ponto importante, que diz respeito à manutenção dos créditos de ICMS nas transferências interestaduais entre estabelecimentos do mesmo contribuinte, se o STF não esclarecer desde logo o alcance de sua decisão, sob a ótica do federalismo cooperativo.

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    é professor titular de Direito Financeiro da Universidade de São Paulo (USP), advogado e sócio do escritório Silveira, Athias, Soriano de Mello, Guimarães, Pinheiro & Scaff Advogados.

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