Opinião

RJ extrapola limites da competência para legislar sobre relações de consumo

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14 de junho de 2021, 6h31

Recentemente, entrou em vigor a Lei 9.124/2021, do estado do Rio de Janeiro, que dispõe sobre os prazos de garantia de bens e serviços durante a pandemia da Covid-19.

Em linhas gerais, a referida lei dispõe que fica suspensa a contagem do prazo de garantia de bens e serviços enquanto perdurar a pandemia no âmbito do estado do Rio de Janeiro, limitada ao prazo máximo de dois anos.

A lei foi proposta sob a justificativa de que o estado do Rio de Janeiro passa por um grave momento em razão da pandemia e que, com o propósito de conter o avanço da crise sanitária, o governo estadual editou uma série de decretos para instituir quarentena; como consequência, alguns serviços foram interrompidos por prazo indeterminado, sendo que tal hipótese teria o potencial de prejudicar direito dos consumidores, atinentes ao exercício da garantia legal.

O objetivo da lei é prorrogar o prazo de garantia de bens e serviços enquanto o conjunto de decretos de restrição das atividades estiver em vigor, de modo que a coletividade de consumidores não seja prejudicada no que tange ao exercício do seu direito previsto no artigo 26 do Código de Defesa do Consumidor o famigerado prazo legal de garantia.

Durante a tramitação do projeto que culminou na referida legislação, a Comissão de Constituição de Justiça da Câmara dos Deputados do Rio de Janeiro deu sinal verde para o parecer de constitucionalidade, ao reconhecer que a matéria, por estar inserida no âmbito da defesa do consumidor, seria de competência estadual para legislar.

Vale ressaltar que de fato o artigo 24 da Constituição Federal prevê que, para legislar sobre matéria relativa às relações de consumo, a competência é concorrente entre União, estados e municípios, o que significa que todos os entes federativos podem legislar sobre o assunto.

Todavia, quando se trata de legislação concorrente, deve-se sempre ponderar os limites de atuação dos estados e municípios, principalmente em consideração à sistemática de normas constitucionais relacionadas. Tal medida, sem sombra de dúvidas, tem o condão de evitar excessos, principalmente quando se utiliza como baliza a observância aos princípios constitucionais.

E, nesse ponto, vale uma reflexão acerca da lei fluminense no que tange à competência concorrente dos estados e municípios para legislar sobre matéria que envolve relação de consumo; deve-se sopesar, principalmente quando se pretende impor um ônus às empresas, o princípio da isonomia, livre iniciativa e da livre concorrência.

Nesse diapasão, imposições legais que violem preceitos constitucionais e tenham o condão de quebrar a harmonia legal do ordenamento jurídico, impondo obrigações desarrazoadas, podem ser objeto de discussão no âmbito do poder Judiciário com relação à sua constitucionalidade.

O Supremo Tribunal Federal, na função de ser o guardião da Constituição Federal, tem precedentes[1] que estabelecem que, embora esteja prevista a competência concorrente para legislar, os estados e municípios não podem legislar livre e amplamente sobre matéria relativa às relações de consumo, principalmente quando não estiverem de acordo com o Código de Defesa do Consumidor, norma essa Federal que tem o propósito de nortear as relações de consumo.

Tal entendimento decorre do princípio da hierarquia das normas, devendo as leis seguirem uma graduação de acordo com os critérios pré-estabelecidos; no caso da competência concorrente para legislar, significa que à União incumbe o dever de estabelecer normas gerais e aos Estados e Municípios cabem complementar as lacunas da lei, de acordo com as situações e nuances regionais de cada ente.

Mas, quando determinada legislação municipal ou estadual se propõe a substituir e não complementar lei federal, tem-se que a competência concorrente foi extrapolada.

No caso da lei fluminense, há grandes indícios de que esta competência foi extrapolada ao dispor sobre alterações relativas ao prazo de garantia.

O artigo 26 do Código de Defesa do Consumidor estabelece que o direito de reclamar pelos vícios aparentes ou de fácil constatação caduca em 30 dias para serviços ou produtos não duráveis e 90 dias para serviços ou produtos duráveis, sendo que o parágrafo, segundo dispõe que obstam a decadência a reclamação comprovadamente formulada pelo consumidor perante o fornecedor, bem como a instauração de inquérito civil.

Como se afere, a nova legislação fluminense não tem o condão de preencher lacuna havida na lei federal, mas sim substituir previsão legal do Código de Defesa do Consumidor, mais especificamente, o seu artigo 26.

Sob o prisma do princípio da livre iniciativa, tal legislação prevê intervenção econômica significativa, já que sequer a lei federal previu tal circunstância; e no que tange ao princípio da livre concorrência, prevê obrigação excessivamente onerosa, ao impor que as empresas assumam todos os ônus para disponibilizar serviços e produtos com garantias de até 2 anos sem qualquer distinção entre produtos e serviços duráveis e não duráveis, quando a lei feral prevê que o prazo seja de 90 dias e 30 dias, respectivamente.

Já sob os aspectos do princípio da isonomia, a lei fluminense tem potencial de criar desigualdade entre os consumidores do Rio de Janeiro e do restante do país, sem quaisquer peculiaridades regionais que pudessem justificar tal distinção, além de que o preço final dos produtos oferecidos no estado poderá ficar mais caro do que no restante do país, já que os custos inerentes à manutenção da garantia por até 2 anos poderão ser repassado aos consumidores; e, quanto aos fornecedores, estes terão tratamentos distintos com relação às demais unidades da federação, principalmente ao considerar que boa parte deles comercializam seus respectivos produtos de forma uniforme no Brasil.

Portanto, a lei fluminense, ao substituir previsão legal contida no artigo 26 do Código de Defesa do Consumidor, extrapola a competência constitucional atribuída aos Estados e Municípios para legislar de forma concorrente com a União acerca das matérias relacionadas à produção e consumo. Isto porquanto fere o objetivo precípuo pretendido pelo legislador constutucional no que tange à competência concorrente dos Estados e Municípios foi conferir a estes autonomia para legislar com o propósito específico de preencher lacunas deixadas pelo legislador federal, dadas as peculiaridades e nuances regionais de cada ente federativo.

Além disso, a Lei 9124/2021 do Estado do Rio de Janeiro viola garantias da ordem econômica e financeira do Brasil (prevista no artigo 170 da Constituição Federal) e também os princípios constitucionais da isonomia, livre iniciativa e da livre concorrência, de modo que é patente sua inconstitucionalidade.

 

Fernando Torre é advogado e sócio da Lee, Brock, Camargo Advogados (LBCA).

 

 


[1] (ADI 3.645, Rel. Min. Ellen Gracie, Plenário, j. em 31.05.2006, DJ 01.09.2006; ADI 3.035, Rel. Min. Gilmar Mendes, Plenário, j. em 06.04.2005, DJ 14.10.2005; (ADI 2.656, Rel. Min. Maurício Corrêa, Plenário, j. em 08.05.2003, DJ 01.08.2003)

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