Direito civil atual

Porque é acertada a suspensão de despejos durante a pandemia

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14 de junho de 2021, 17h04

Junho começa com uma decisão emblemática do Supremo Tribunal Federal envolvendo o direito à moradia. Em recente posicionamento, o ministro Barroso deferiu parcialmente o pedido de cautelar formulado nos autos da ADPF nº 828, contra desocupações, despejos e reintegrações de posse encampados pelo Poder Público.

ConJur
Em sua fundamentação, o ministro fez uma compilação das normas existentes no ordenamento jurídico brasileiro tratando de situações análogas, mencionando algumas iniciativas no âmbito estadual suspendendo ou restringindo desocupações como medida de enfrentamento à Covid-19, a exemplo da Lei nº 9.020/2020 (RJ), Lei nº 9.212/2021 (PA), Lei nº 5.429/2021 (AM), Lei nº 6.657/2020 (DF) e Lei nº 11.676/2020 (PB). No âmbito federal, destacou-se a previsão expressa do artigo 9º da Lei nº 14.010/2020 (RJET) suspendendo a liminar para a desocupação do imóvel urbano nas ações de despejo de que trata os incisos I, II, V, VII, VIII e IX do §1º do artigo 59 da Lei nº 8.245/2020.

Spacca
Sob esse panorama, o ministro Barroso delimitou algumas situações de fato que seriam albergadas pela medida cautelar, com consequências jurídicas distintas; são elas: 1) ocupações antigas, anteriores à pandemia; 2) ocupações recentes, posteriores à pandemia; 3) despejo liminar de famílias vulneráveis. No primeiro caso, determinou-se que a remoção das ocupações consolidadas ficarão suspensas pelo prazo de seis meses; no segundo caso, determinou-se que os agentes estatais poderão agir com a finalidade de evitar a consolidação de novas ocupações irregulares, desde que com a devida realocação em abrigos públicos ou em locais com condições dignas (sublinhe-se); no terceiro caso, prorrogou-se a suspensão do despejo liminar de pessoas vulneráveis (sublinhe-se).

O relator também frisou situações que não estariam alcançadas pela cautelar, destacando-se: 1) quando a ocupação for realizada em áreas suscetíveis à deslizamentos, inundações ou processos correlatos; 2) quando a desocupação for necessária para o combate do crime organizado; 3) quando houver precedente do Supremo Tribunal Federal ou legislação local conferindo proteção mais abrangente para os grupos vulneráveis.

Considerando a relevância do debate, cada hipótese merece ser analisada com mais detalhes. Sobre o despejo liminar em locações residenciais, ponto a ser ressaltado é a aplicação do artigo 9º da Lei nº 14.010/2020 (RJET), com a postergação no tempo do prazo de suspensão já determinado pelo legislador, tendo em vista que a causa subjacente à previsão normativa ainda não cessou. Quer dizer, se o que levou o legislador a suspender provisoriamente as liminares de despejo foi o reconhecimento de que o isolamento social é fundamental ao enfrentamento à pandemia da Covid-19, e se a habitação continua sendo indispensável para que seja cumprida a recomendação das autoridades sanitárias, então a postergação dos efeitos do artigo 9º da Lei 14.010/2020 é consequência lógica da própria continuidade da crise sanitária e econômica no país.

Pode-se dizer que é um recurso a analogia, palavra de origem grega, com o significado de semelhança ou paridade. A utilização da analogia deve ter o cuidado de identificar a razão da previsão legal análoga. De modo que: "Se a razão desta, da previsão legal, justificar o caso a ser decidido aplica-se a analogia. Caso contrário, não. Vale aqui, o aforisma romano: ubi eadem legis ratio, ubi eadem legis dispositio" [1]. Ou seja, "onde há igual razão, há igual disposição": Ubi eadem est ratio eadem juris disposit teiosse debet [2].

Tal forma de interpretação e aplicação do direito também se encontra consignada no Livro 15 do Digesto: "As leis ou senatusconsultos não podem prever minuciosamente todas as ocorrências; porém, quando o seu sentido é claro em alguma de suas partes, o juiz deve estendê-lo aos casos semelhantes, proferindo nessa conformidade o seu julgamento" [3].

A nosso sentir, a decisão do ministro Barroso não é no sentido de estender a vigência da Lei nº 14.010/2020, mas sim no intuito de recorrer a analogia legis na construção da decisão. Não se trata da primeira decisão proferida pelo STF que faz uso da analogia legis com o efeito prático de postergar os efeitos de uma norma cuja vigência se deu por prazo certo.

Em 30/12/2020, o ministro Lewandowski deferiu a cautelar na ADI nº 6.625 para, na prática, estender a vigência de dispositivos da Lei nº 13.979/2020 (Dispõe sobre as medidas para enfrentamento da emergência de saúde pública de importância internacional decorrente do coronavírus responsável pelo surto de 2019), após admitir que a intenção do legislador foi manter "medidas profiláticas e terapêuticas extraordinárias, preconizadas naquele diploma normativo, pelo tempo necessário à superação da fase mais crítica da pandemia, mesmo porque à época de sua edição não lhes era dado antever a surpreendente persistência e letalidade da doença".

Cabe ainda mencionar um agravante a ser considerado no caso da suspensão da liminar de despejo prevista pelo artigo 9º da Lei nº 14.010/2020. É que o dispositivo, inicialmente, foi vetado pela presidência da República, somente entrando em vigor após a derrubada do veto presidencial pelo Senado Federal, o que ocorreu em 8/9/2020 [4]. Considerando que a suspensão das liminares foi prevista até o dia 30/10/2020, criou-se uma norma que teve sua vigência por menos de dois meses, sem ter cumprido a missão de atenuar o problema das locações urbanas em tempos de pandemia. Ainda sobre o tema dos despejos liminares, é importante desconstituir alguns mitos que costumam cercar o tema. Em nenhum momento houve a suspensão de toda e qualquer ordem de despejo. O que foi suspenso foi somente a liminar de despejo tratada no §1º do artigo 59 da Lei nº 8.425/1991.

Nas hipóteses legais, o cumprimento da ordem de despejo pode ser realizada no exíguo prazo de 15 dias, sem a oitiva do locatário, desde que prestada caução equivalente a 3 meses de aluguel. Trata-se de uma técnica processual existente na ação de despejo que posterga o exercício do contraditório, antecipando o provimento judicial. Por excepcionar o contraditório, trata-se de um rol numerus clausus e "não se permite elastério às situações tipificadas no artigo", conforme ensina Venosa [5].

Vale dizer que a mera falta de pagamento, por si só, nunca justificou a liminar de despejo. É preciso também que o contrato esteja desprovido de qualquer garantia, seja por não ter sido contratada, seja por sua extinção [6]. Existindo fiador, por exemplo, não é e nunca foi possível a concessão da liminar [7]. A suspensão do dispositivo possui assim uma razão de ser. Se a postergação do contraditório já é medida excepcional, ainda mais o deve ser em um cenário de crise sanitária.

Diante da situação excepcional de pandemia, pretende-se evitar o despejo do locatário de maneira abrupta, sem a sua manifestação nos autos. Esse entendimento não é incentivo à inadimplência, por não impedir o despejo após o contraditório, muito menos o manejo dos meios ordinários para a cobrança dos aluguéis. Ultrapassando o caso das locações residenciais, a cautelar também tratou das ocupações urbanas coletivas.

Embora o RJET tenha restado omisso sobre o tema, estando a matéria em análise pelo Senado Federal no Projeto de Lei nº 827/2020, é certo que há em nosso ordenamento jurídico fundamentos aptos a justificar a suspensão provisória das ordens de desocupação de imóveis utilizados para fins de moradia, enquanto perdurarem os efeitos da pandemia da Covid-19. Isso é possível pela própria abertura hermenêutica proporcionada pelos direitos fundamentais, tendo em vista utilizarem como técnica, por diversas vezes, conceitos jurídicos abertos ou cláusulas gerais, como é a função social.

A função social não se sobrepõe ao direito de propriedade. No entendimento aqui defendido, o direito de propriedade poderá ser condicionado ou limitado pela função social, à luz da chamada "teoria externa" [8]. Significa que o direito à propriedade não é absoluto e pode sofrer restrições, limites e intervenções [9], como todos os direitos fundamentais. É de se louvar a contenção do ministro Barroso na construção da decisão sob análise, respeitando os espaços de autonomia do direito civil.

Assim, a proteção do Estado a vida, liberdade e propriedade nas relações privadas deve ocorrer pela mediação normativa de direito privado, e não da Constituição; tendo em vista a necessidade de separação entre Estado e Sociedade Civil enquanto conquista jurídica [10].

Na Alemanha, desde o julgamento do emblemático caso Lüth pelo Tribunal Constitucional Federal em 1958, prevalece justamente o entendimento de que os direitos fundamentais não afetam diretamente as relações de direito privado, provocando apenas um efeito indireto nas situações jurídicas privadas, posto que os atos pertinentes a elas sejam limitados pelos direitos fundamentais a partir de uma interpretação a luz destes direitos; daí a ideia de irradiação de efeitos do direitos fundamentais nas relações privadas [11].

Segundo Otávio Luiz Rodrigues Júnior, não há que se falar em concorrência de espaços entre a Constituição e o legislador ordinário, posto que "este último tem uma função de grande relevo para a democracia: ao reduzir o grau de abstração constitucional, restringe a esfera de discricionariedade de outros agentes públicos (o administrador e o juiz), impondo-lhes uma valoração prévia, democrática e representativa das pautas axiológicas escolhidas pelo povo em sua regular e periódica substituição de seus procuradores ao Parlamento" [12].

Ao se valer, portanto, de regras da legislação ordinária de modo a mediar a irradiação de direitos fundamentais em tais relações entre proprietários e posseiros, a decisão do ministro Barroso ganha em previsibilidade e respeita a autonomia do direito privado. Mas, como nem tudo são flores, sobretudo no Supremo Tribunal Federal, a decisão também deixa lacunas que poderão limitar a aplicação prática do comando judicial.

Um exemplo é o uso do termo "pessoa vulnerável" ao tratar do despejo liminar nas locações residenciais, sem estabelecer qualquer parâmetro para aferir a aludida vulnerabilidade. A vulnerabilidade será comprovada pela renda per capita? A vulnerabilidade aqui entendida é somente financeira? Se até a hipossuficiência, presumida no Código de Processo Civil, é matéria controversa, o que se dirá do termo "pessoa vulnerável"?

Outro ponto de difícil compreensão: as ocupações ocorridas após 20/3/2020 podem ser desfeitas "desde que as pessoas sejam levadas para abrigos públicos ou que de outra forma se assegure a elas moradia adequada". Mas a quem cabe tal obrigação? Ao particular? Ao Poder Público? Aliás, a sentença em ação possessória envolvendo apenas particulares poderá criar obrigações para o Poder Público? Veja-se que, nas ações possessórias multitudinárias, o § 4º do artigo 565 do Código de Processo Civil permite que o juízo determine a intimação dos órgãos responsáveis pela política agrária e pela política urbana da União, de Estado ou do Distrito Federal, e de Município onde se localize o bem em disputa, para que participem da audiência de tentativa de conciliação ou de mediação para que informem se têm interesse na causa e se podem contribuir para a pacificação da lide possessória [13].

Isto, contudo, não significa necessariamente uma eventual transferência da responsabilidade do particular para o ente estatal quanto a realocação dos ocupantes do imóvel. Lançam-se as bases de um debate que certamente vai ocupar espaço nos Tribunais e poderá acabar por comprimir o alcance da decisão.

Esta coluna é produzida pelos membros e convidados da Rede de Pesquisa de Direito Civil Contemporâneo (USP, Humboldt-Berlim, Coimbra, Lisboa, Porto, Roma II-TorVergata, Girona, UFMG, UFPR, UFRGS, UFSC, UFPE, UFF, UFC, UFMT, UFBA, UFRJ e UFam).


[1] HECK, Luís Afonso. As fontes do direito. Revista dos Tribunais, v. 677 (março de 1992), RT Online.

[2] FARÍAS, Germán Cisneros. Diccionario de frases e aforismos latinos: una compillación sencilla de términos jurídicos. México, DF: Universidad Nacional Autónoma de México, 2003, p. 125.

[3] Digesto ou Pandectas do Imperador Justiniano – volume I: Constituições preliminares e Livros 1-4. Tradução brasileira por Manoel da Cunha Lopes e Vasconcellos. Tradução complementar, organização geral, adaptação e supervisão de transcrição por Eduardo C. Silveira Marchi, Bernardo B. Queiroz de Moraes e Dárcio R. Martins Rodrigues. São Paulo: YK, 2017, p. 74. No original: "1.3.12. Iulianus libro 15 digestorum. Non possunt omnes singillatim aut legibus aut senatus consultis comprehendi: sed cum in aliqua causa sententia eorum manifesta est, is qui iurisdictioni praeest ad similia procedere atque ita ius dicere debet". (Disponível em: https://droitromainºuniv-grenoble-alpes.fr/Corpus/d-01.htm#3 Acesso em: 25/3/2021).

[4] À época, ofertamos nota técnica contrária a tais vetos, que foi publicada no Conjur: https://www.conjur.com.br/2020-jun-22/direito-civil-atual-equivoco-vetos-presidenciais-lei-140102020

[5] VENOSA, Silvio de Salvo. Lei do inquilinato comentada: doutrina e prática: Lei nº 8.245/1991. 13. ed. São Paulo: Atlas, 2014, p. 296.

[6] Nos termos do artigo 59, §1º, inciso IX da Lei do Inquilinato: "a falta de pagamento de aluguel e acessórios da locação no vencimento, estando o contrato desprovido de qualquer das garantias previstas no artigo 37, por não ter sido contratada ou em caso de extinção ou pedido de exoneração dela, independentemente de motivo. (Incluído pela Lei nº 12.112, de 2009)".

[7] Cf.: "EMENTA: AGRAVO DE INSTRUMENTO – AÇÃO DE DESPEJO POR FALTA DE PAGAMENTO – CONTRATO DE LOCAÇÃO COM GARANTIA – FIADOR – LIMINAR – DESOCUPAÇÃO – IMPOSSIBILIDADE. A Lei de Locação determina que para ser concedida medida liminar de despejo é necessária a caução prestada em dinheiro, no valor equivalente a três alugueis, bem como a ausência das garantias previstas no artigo 37 da lei 8.245/91. Uma vez que o contrato em analise esteja garantido por fiança, resta impossibilitada a concessão da liminar. (TJ-MG: 10000180769846001, Relator Marco Aurelio Ferenzini, Julgamento: 22/01/0019, Publicação: 25/01/2019)"

[8] RODRIGUES JUNIOR, Otávio Luiz. Propriedade e função social: exame crítico de um caso de "constitucionalização" do direito civil. In: VERA-CRUZ PINTO, Eduardo; SOUSA, Marcelo Rebelo de; QUADROS, Fausto de; OTERO, Paulo (orgs.). Estudos de homenagem ao Prof. Doutor Jorge Miranda: V. 3 – direito constitucional e justiça constitucional. Coimbra: Coimbra Editora, 2012, p. 84.

[9] Cf: "A proibição do ajuizamento de ação petitória enquanto pendente ação possessória, em verdade, não limita o exercício dos direitos constitucionais de propriedade e de ação, mas vem ao propósito da garantia constitucional e legal de que a propriedade deve cumprir a sua função social, representando uma mera condição suspensiva do exercício do direito de ação fundada na propriedade. (REsp 1655582/MT, Rel. Ministra NANCY ANDRIGHI, TERCEIRA TURMA, julgado em 12/12/2017, DJe 18/12/2017)". Cf. também: SILVA, Virgílio Afonso da. O conteúdo essencial dos direitos fundamentais e a eficácia das normas constitucionais. Revista de Direito do Estado 4 (2006): 23-51.

[10] COSTA FILHO, Venceslau Tavares. Direitos fundamentais e relações privadas: crítica à interpretação patrimonializante. In: CASTRO JR, Torquato da Silva; COSTA FILHO, Venceslau Tavares (coords). A Modernização do Direito Civil – Volume I. Recife: Nossa Livraria, 2011, p. 41-42.

[11]GRIMM, Dieter. The Basic Law at 60 – Identity and change. German Law Journal – Review of developments in German, v. 11, nº 1 (january 2010), p. 43. Disponível em: www.germanlawjournal.com Acesso em: 16 de setembro de 2010.

[12] RODRIGUES JUNIOR, Otávio Luiz. Distinção sistemática e autonomia epistemológica do direito civil contemporâneo em face da constituição e dos direitos fundamentais. São Paulo: Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo [Tese de Livre-Docência], 2017, p. 557.

[13] COSTA FILHO, Venceslau Tavares; GOUVEIA FILHO, Roberto P. Campos. Artigo 565. In: STRECK, Lenio Luiz; NUNES, Dierle; CUNHA, Leonardo Carneiro da (orgs). Comentários ao Código de Processo Civil. São Paulo: Saraiva, 2016, p. 811.

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