Observatório constitucional

A patética diferença entre a ala ideológica e a técnica

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12 de junho de 2021, 8h00

Democracia e Constituição
A impostura mais burra de nossa época é o ódio aos fatos e às palavras. É a boa e velha estupidez, no sentido técnico do termo [1]. Em 2021, a única coisa mais ou menos nova debaixo do sol, em matéria de estultice, são as redes sociais e os grupos de WhatsApp.

Querem um exemplo? Vivemos numa democracia constitucional. Talvez sejam as palavras e o fato mais fundamentais dos nossos tempos. Pouco importa: sobre essa expressão e a realidade que ela designa circulam as opiniões mais confusas e contrárias.

Se pesquisássemos na Internet o que se entende por democracia, chegaríamos a esta definição superficial: uma forma de governo na qual a população decide, por si própria, segundo a lógica da maioria, as regras que orientam a convivências social.

Repetindo a "fórmula" para constituição, ou melhor, constitucionalismo, obtemos o seguinte resultado: a sujeição da liberdade a uma lei superior e a certos limites impostos pelas maiorias políticas.

Defini-las dessa forma e, logo na sequência, afirmar que estamos numa espécie de regime que as coloca lado a lado, nos faz cair em paradoxo [2]. Como poderíamos justificar um modelo de governo que une dois elementos incompatíveis, um majoritário, que preza a maioria ("democracia"); e outro contramajoritário, que se lhe opõe ("constitucional")?

Ora, como bem notou Lenio Streck, a partir dessa visão simplista, o constitucionalismo poderia, afinal, ser considerado antidemocrático, em franca oposição ao maior ideal político do nosso tempo [3]. A tensão, na verdade, não existe entre dois ideais, mas entre duas formas distintas de conceber a democracia: a majoritária e a constitucional [4].

Ocorre que, atualmente, tomar partido do majoritarismo e defender que a democracia é o governo do povo é condenar-se ao fracasso civilizatório. O motivo é simples e atual: as maiorias degeneram. A turba se ergue contra o bem comum. A multidão, não raras vezes, é estúpida.

Para hoje ser digna do nome, a democracia deve ser contramajoritária. E, doa a quem doer admiti-lo, são a jurisdição e o processo constitucionais que, em última análise, protegem, do ataque das maiorias fortuitas, as minorias e os direitos fundamentais [5].

Dispomos, no Brasil, de um catálogo generoso de direitos básicos, que de nada serviriam se não houvesse quem os afirmasse, diariamente, contra os que não acreditam na democracia. Eis a razão de ser da jurisdição constitucional contemporânea: dar legitimidade às minorias contra os seus algozes [6].

É a Constituição, como produto do nosso processo civilizatório, que fundamenta a nossa democracia, e não a boa vontade de líderes políticos, e muito menos o coturno e o fuzil das Armadas.

Logo, não há nada mais democrático do que o constitucionalismo ou mais constitucional do que a democracia.

Desfeita essa confusão mental, precisamos enfrentar outra, na qual muitos de nós temos caído. Usamos o plural para incluir, além de nós próprios, a louvável parcela da mídia que, mesmo se opondo ao indefensável, faz-se vítima de uma falácia antidemocrática e inconstitucional: incorrer na tentação do Estado dual.

A tentação do Estado Dual
Admitir e noticiar que existem duas alas no governo federal, uma técnica e outra ideológica, é um erro fundamental de percepção da realidade. Não só porque à primeira faltam ideias e, à segunda, conhecimento. É porque esse raciocínio remonta ao período — e é inescapável o uso da expressão — nazista.

Sim, nazista, no sentido histórico do termo, e não na acepção frouxa com que essa palavra é invocada hoje em dia, que dificulta — e muito — a discussão e nos emburrece cada vez mais.

Antes de nos explicarmos, um aviso aos "canceladores" precoces, à esquerda e à direita: não se trata de uma reductio ad Hitlerum, nem de uma hipótese de aplicação da Lei de Godwin, segundo a qual à medida que uma discussão se alonga, a probabilidade de surgir uma comparação envolvendo Adolf Hitler ou os nazistas tende a 100%" [7].

Nosso argumento [8] se baseia nos estudos de Michael Stolleis [9], Bernd Rüthers [10] e Jens Meierhenrich [11] sobre o direito e a política praticados no Terceiro Reich, bem como no depoimento heroico de Victor Klemperer [12].

Se levássemos às últimas consequências o pseudolatinismo de Leo Strauss [13], nenhum desses estudiosos poderia ter escrito uma linha sequer e, possivelmente, estaríamos privados das maiores contribuições teóricas ao estudo da história e do direito constitucional.

Ocorre que dar a alguém ou a algum argumento a pecha de nazista costuma encerrar as discussões, convidando a racionalidade a se retirar: "Disso não se fala". Eis o que está implícito. E aqui rendemos todas as homenagens a Michael Stolleis, verdadeiro polímata, na acepção mais nobre do termo, que demonstrou a formação do "não" direito nazista.

Contudo, isso não significa que a experiência alemã do início do século passado, se estudada com frieza e guardando-se todas as proporções, por conta do seu caráter excepcional, não nos possa ensinar alguma coisa. A loucura é metódica e o exemplo, por maldito que seja, continua paradigmático.

Pior do que o uso da reductio ad Hitlerum é ignorar e deixar de aprender com os erros históricos contados pelo processo civilizatório. Uma olhada rápida ao passado nos teria feito perceber que dividir governo em ala técnica e ideológica é um artifício retórico para suavizar e despoluir toda uma estética totalitária.

A ordem jurídica nazista se apoiou em teorias; não em leis. Foram ideias que convenceram os juristas a manejar o direito para fins genocidas e totalitários.

Uma dessas ideias é muito próxima do argumento ala técnica versus ala ideológica, que a mídia vem aplicando ao governo Bolsonaro, dando a entender que elas devessem ser combatidas e controladas por meios distintos, empunhando-se contra uma a lei, a constituição e a ciência e, contra a outra, a política.

Dividir um governo com frequentes rompantes autoritários em ala técnica e ideológica, ignora o sempre atual alerta de Orwell: "O que é realmente assustador no totalitarismo não é que se cometam 'atrocidades', mas que se agrida o conceito de verdade objetiva: proclama-se controlar o passado tão bem quanto o futuro" [14].

A anatomia de uma ferramenta totalitária
Trata-se do mecanismo do Estado Dual, desmascarado por Ernst Fraenkl. O termo foi usado pela primeira vez em 1937, num artigo publicado sob o pseudônimo Conrad Jürgens, com o título "O Terceiro Reich como Estado Dual" [15]. Nele, Fraenkl observa que a Alemanha nazista, longe de consistir na realidade total e unitária pretendida por Hitler, estava cindida em duas metades paralelas e conflitantes, cada qual encerrando uma faceta do poder Estatal. À época, Fraenkl distinguira entre o "Estado como unidade política" (Staat als politische Einheit), e o "Estado como aparato técnico" (Staat als technischer Apparat[16].

Mais tarde, já exilado nos Estados Unidos, Fraenkl substituiria essa dupla pela oposição sui generis do Estado de Prerrogativas versus Estado Normativo, que permitiu aos nazistas transformar um governo autoritário e provisório e constitucional, numa ditadura permanente, inconstitucional e genocida [17].

Nos anos anteriores ao Terceiro Reich, o Judiciário alemão falhara, sistematicamente, em impor limites às prerrogativas concedidas ao Poder Executivo, pelo direito do estado de emergência. Ao excluí-las da possibilidade de controle judicial — mesmo durante a república de Weimar —, os tribunais perpetuaram uma nefasta tradição monárquica, segundo a qual a declaração do estado de emergência era um ato incontestável e exclusivo [18].

Com base num decreto emergencial, previsto na Constituição de Weimar e na tradição jurídica alemã, a política foi retirada dos limites da jurisdição estatal. No "vácuo do direito", os dirigentes poderiam agir com plena discricionariedade, a salvo de qualquer controle ou regulação oficial.

Segundo Fraenkl, o "Estado de Prerrogativas" era o poder exercido com arbítrio e violência sem limites, isolando-se de toda e qualquer possibilidade de constrição judicial ou democrática.

A criação dessa metade do Estado nazista, reconhecida oficialmente como legítima e incapaz de ser contestada em juízo, levou à dissolução gradual dos elementos básicos do Estado de Direito. De sentença em sentença, de ato em ato administrativo, foram abolidos os limites constitucionais e legais do Poder Executivo e do Poder de Polícia do Terceiro Reich. A impossibilidade de questionar o direito do estado de emergência no Judiciário levou, assim, à neutralização completa do controle de constitucionalidade das leis e dos atos administrativos (judicial review), atributo, como vimos acima, imprescindível a qualquer governo democrático [19].

Todas as decisões, entendidas pelo próprio Poder Executivo como puramente políticas e discricionárias, eram postas a salvo, tanto dos órgãos de cúpula da jurisdição administrativa, como dos do Poder Judiciário.

"Talvez", diz-nos autor do "Estado Dual", "possamos resumir as diferenças entre um Estado de direito e o Terceiro Reich da seguinte forma: no primeiro, o Judiciário controla o Executivo em prol da legalidade; no segundo, o Executivo subjuga o Judiciário em nome da conveniência política" [20]. O Estado das Prerrogativas tinha "jurisdição sobre a jurisdição", determinando seus próprios limites, à revelia do direito [21].

A manutenção dessa estrutura reclamava um contraponto necessário, denominado "Estado Normativo". Era a metade do Terceiro Reich, dotada dos meios jurídicos necessários à manutenção da ordem, dos quais o Estado Nazista poderia se valer, submetendo-se voluntariamente ao direito, se e quando julgasse conveniente [22].

Para que se engendrasse, em face do povo alemão, a ilusão de legalidade do "direito degenerado" (Rüthers), do "direito no não-direito" (Stolleis), a violência do "Estado Normativo" ficava restrito à sua própria jurisdição, distinta e independente da do "Estado de Prerrogativas" [23].

O Estado Normativo não se confunde com o Rechtsstaat, com o Estado de Direito. É sua versão corrompida e desfeita pela política arbitrária e violenta dos genocidas.

Conclusão: nunca existiram duas alas
Na democracia constitucional, não existe divisão do Estado ou de governo em metades técnicas e ideológicas. Ele é encarado como uma só coisa, que deve se pautar pela constituição e pelas leis.

O clichê que escutamos todos os dias, o do tal conflito entre as "alas" no governo federal, nada esclarece. Pior, torna-nos suscetíveis a aceitar que essa divisão seja possível e natural, dando-lhe ares de respeito e normalidade.

Grande parcela do debate público, inclusive da mídia tradicional, ainda não se deu conta de que, ao incorrer na divisão "ala técnica e ideológica", faz-se com que o governo seja dotado de uma blindagem intransponível. Por maior que seja o erro, e são vários, como a aposta no negacionismo, institucionalização de fake news, agressão às Instituições, politização das Forças Armadas e a negligência no combate à Pandemia, ao se aceitar a distinção entre ala técnica e ala ideológica, se reproduz um ar de normalidade. É como se a ala ideológica pudesse fazer atrocidades, mas o governo sempre se preservaria por uma suposta ala técnica que seria blindada do conspiracionismo e dos negacionismos que (des)orientam a ala ideológica.

Ocorre que já sabemos quais são as consequências desse tipo de raciocínio: criar, na consciência coletiva, a ideia de que parte do (des)governo atual está a salvo do direito e da Constituição, podendo dizer o que quer, mentir sobre o que lhe prejudica, e omitir-se dos seus próprios erros.

Não se trata aqui, uma vez mais, de usarmos nossa análise para acusar algo de nazismo, até porque concordamos com Umberto Eco: o nazismo foi único, por particularidades inerentes àquele fenômeno [24].

A teoria do "Dual State" serve para entender como em nada ajuda diferenciar um governo em ala técnica e ala ideológica. Precisamos esclarecer, de uma vez por todas, que todas as alas pertencem ao mesmo governo. Todos os partícipes do governo se beneficiarão dos seus eventuais resultados positivos, mas, ao mesmo tempo, serão corresponsáveis pelos seus erros.

Sempre que a suposta ala ideológica atacar as instituições como o Supremo Tribunal Federal, propagar fake news, realizar discursos misóginos e homofóbicos, apostar contra vacinas e em todo tipo de negacionismo, não nos esqueçamos: a ala técnica ajuda a legitimar tudo isso. As coisas não são assim porque queremos, ela são assim porque a história nos ensina que assim as coisas se deram, com perdão da cacofonia.

Afinal, como já bem dizia um dos nossos profetas, "(o) patético de nossa época é que o passado se insinua no presente" [25].


[1] MUSIL, Robert. Sobre a Estupidez, In: O papel mata-moscas e outros textos. 1.ª ed., São Paulo: Carambaia, 2018, p. 65-109.

[2] MICHELMAN, Frank Isaac. Brennan and Democracy, Princeton: Princeton University Press, 2005, p. 5-6.

[3] STRECK, Lenio Luiz. Verdade e Consenso. 6.ª ed., São Paulo: Saraiva, 2017, p. 112.

[4] Ibidem, p. 113.

[5] FALCÓN, Enrique. El derecho procesal constitucional: teoria general, nacimiento y desarrollo de la disciplina, contenido, autonomia científica. In: MAC-GREGOR, Eduardo Ferrer; LELO DE LARREA, Arturo Zaldívar (Orgs.). Estudios en homenaje à Hector Fix-Zamudio. México: Universidad Autónoma de México, 2008, p. 97, v.1.

[6] MARTOS, José A. Montilla. Minoria política & Tribunal Constitucional. Madrid: Trotta, 2002, n. 3.2., p. 93-94. Ver ainda: ABBOUD, Georges. Democracia para quem não acredita, Belo Horizonte: letramento, 2021.

[8] O tema, entre outros tantos, é tratado com maior profundidade e extensão no primeiro capítulo do nosso Direito Constitucional Pós-Moderno, 1.a ed., São Paulo: Thomson Reuters Brasil/Editora Revista dos Tribunais, 2021.

[9] STOLLEIS, Michael. The Law under the swastika: studies on legal history in Nazi Germany. 1.a ed., Chicago: University of Chicago Press, 1998. Ver também, do mesmo autor, O direito público na Alemanha: uma introdução à sua história do século XVI ao XXI. São Paulo: Saraiva, 2018.

[10] RÜTHERS, Bernd. Derecho degenerado. Teoría jurídica y juristas de cámara em el Tercer Reich. 1.a ed., Madri: Marcial Pons, 2016. Confirma-se, além desse, os volumes Teoría del derecho. Concepto, validez y aplicación del derecho. Bogotá: Editorial Témis, 2018, e Die Unbegrenzte Auslegung: Zum Wandel der Privatrechtsordnung im Nationalsozialismus, 8.a ed., Tübigen: Mohr Siebeck, 2017.

[11] MEIERHENRICH, Jens. The Remnants of the Rechtsstaat: An Ethnography of Nazi Law. Oxford: Oxford University Press, 2018. Somando-se a essa obra de síntese, temos a monografia The Idea of the Rechtsstaat: na intelectual history. London: London School of Economics and Political Science, 2017 (manuscrito não publicado) e o artigo Fearing the Disorder of Things: The Development of Carl Schmitt's Institutional Theory, 1919-1942. In: MEIERHENRICH, Jens e SIMONS, Oliver (Eds.). The Oxford Handbook of Carl Schmitt. Oxford: Oxford University Press, 2016, p. 192-202.

[12] KLEMPERER, Victor. Os diários de Victor Klemperer: testemunho clandestino de um judeu na Alemanha nazista, 1933-1945. São Paulo: Companhia das Letras, 1999; e o seminal LTI — A Linguagem do Terceiro Reich. Rio de Janeiro: Contraponto, 2009.

[13] STRAUSS, Leo. Natural Right and History. Chicago: University of Chicago Press, 1965, p. 42.

[14] ORWELL, George. História e mentiras. In: O que é fascismo? e outros ensaios. Edição Kindle, São Paulo: Cia das Letras, 2009, locs. 1013-1014.

[15] FRAENKEL, Ernst. Das Dritte Reich als Doppelstaat. In: FRAENKL, Ernst. Gesammelte Schriften. Baden-Baden: Nomos, 1999, p. 504, v. 2.

[16] Ibidem, p. 505.

[17] FRAENKL, Ernst. The Dual State: A Contribution to the Theory of Dictatorship. Oxford: Oxford University Press, 2017, p. 5.

[18] Ibidem, p. 6.

[19] Ibidem, p. 24.

[20] Ibidem, p. 40.

[21] Ibidem, p. 57.

[22] Ibidem, p. 58.

[23] Ibidem, p. 70.

[24] ECO, Umberto. Fascismo Eterno, São Paulo: Record, 2020, p. 39-40

[25] RODRIGUES, Nelson. O leque foi um momento. In: O óbvio ululante: primeiras confissões, São Paulo: Companhia das Letras, 1993, p. 104.

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