Opinião

Recuperação judicial não é calote no Fisco

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12 de junho de 2021, 6h34

O instituto da recuperação judicial é uma solução para evitar que, diante de uma crise econômico-financeira superável, a empresa tenha de demitir e encerrar suas atividades. Foi com esse espírito que a Lei 14.112/2020 atualizou a legislação recuperacional e deu mais autonomia à Fazenda Nacional para negociar o recebimento de seus créditos em face da recuperanda.

Antes, o Fisco só tinha participação no processo de falência quando seus créditos entravam no rol de credores, mais especificamente na classe três. Na recuperação, como seu crédito não é submetido ao processo, utiliza-se da execução fiscal para cobrá-lo. Ao fim, deveria submeter ao juiz recuperacional a decisão de deferir ou negar atos constritivos ao patrimônio do devedor para a satisfação da cobrança. Na prática, para evitar a quebra da empresa por impossibilidade do cumprimento do Plano de Recuperação Judicial aprovado, o juiz negava a constrição de bens, e o devedor permanecia inadimplente com o Fisco.

A norma para levar o empresariado a sanar seu débito fiscal seria a de exigência da apresentação da CND, a certidão negativa de débitos tributários, após juntar o plano de recuperação judicial aprovado em assembleia geral de credores. Ocorre que tal norma, em 2013, foi flexibilizada pelo Superior Tribunal de Justiça. O STJ entendeu que o parcelamento tributário é direito da empresa e que a exigência de CND só seria possível diante de norma específica que disciplinasse tal parcelamento naquele processo. Os juízos então passaram a dispensar a exigência da CND. E restou legalizado dar calote no Fisco.

O entendimento só foi alterado em setembro de 2020, quando o ministro Luiz Fux, do Supremo Tribunal Federal, suspendeu a decisão do STJ sob o fundamento de que a exigência da CND para a concessão da recuperação faz parte de um sistema em que o devedor deve efetivar a regularização de seus débitos com o Fisco por meio do parcelamento. Caso não o faça, a execução fiscal continua e pode, sim, resultar na constrição de bens.

Tal posicionamento foi revisto pelo ministro Dias Toffoli, que não atacou o conteúdo material do entendimento, mas decidiu pela inexistência de desrespeito ao enunciado da súmula vinculante 10 e do artigo 97 da Constituição.

O advento da Lei 14.112/2020 consolidou a exigibilidade da regularização junto ao Fisco para a concessão do benefício recuperacional, alterando a Lei 10.522/2002 e introduzindo regras específicas sobre a transação e o parcelamento dos débitos fiscais das empresas em recuperação judicial, suprindo a lacuna que antes era fundamento para o afastamento da exigência da CND.

Para obter o parcelamento, basta o requerimento ou o deferimento do processamento da recuperação judicial, podendo ser dividido em até 120 prestações mensais com condições variadas de pagamento. Todas as obrigações com o Fisco são incluídas, sendo elas vencidas ou não, tributárias ou não. Pode-se dizer, então, que a lei trouxe um facilitador para que as sociedades empresárias em recuperação judicial regularizem seus débitos fiscais, atingindo sua função social no que diz respeito ao recolhimento de tributos.

Junto ao advento da regra, começam a surgir os casos concretos de sociedades em recuperação judicial que tiveram a sua concessão negada por conta da não apresentação da CND após a aprovação do plano pela assembleia geral de credores. Foi o que ocorreu na recuperação do Grupo Hotéis Othon. Apesar de o Plano de Recuperação Judicial ter sido aprovado pela assembleia geral de credores, a União Federal recorreu da decisão de concessão, reformada pela 16ª Câmara Cível do Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro.

O desembargador relator Eduardo Gusmão Alves de Brito Neto ressaltou em seu voto o paradoxo, antes da alteração da Lei 11.101/2005, entre a recuperação judicial e a cobrança dos débitos fiscais, uma vez que o processo recuperacional visava o pagamento de todos os credores, com exceção da Fazenda Pública.

Observou ainda que as recuperandas não encontraram óbice à obtenção das certidões, seja pela via administrativa ou pela via judicial, pois em momento algum buscaram a concessão da CND. Sequer buscaram equacionar as dívidas fiscais, convencidas de sua irrelevância. Não havia como justificar pela multiplicidade de credores tributários, pois a rede possui estabelecimentos em poucas cidades. O desembargador deu provimento ao recurso, cassando a decisão que concedeu a recuperação judicial sem a comprovação da regularidade fiscal.

Por esta decisão, pode-se verificar o início de uma mudança concreta de posicionamento do Judiciário em relação à exigência do artigo 57 da Lei nº 11.101/2005. Foi o que se viu no acórdão da 17ª Câmara Cível do Tribunal de Justiça do Paraná na recuperação do Grupo Naga. O grupo não apresentou a CND, mas a Justiça levou em consideração os esforços envidados para o pagamento do passivo fiscal com negociações para parcelamento da dívida. Outra decisão foi a do Juízo da 2ª Vara de Falências e Recuperações Judiciais de São Paulo na recuperação do Laboratório Baldacci. Apesar de também não ter apresentado a CND, ficou ressaltado que a devedora adotou medidas necessárias para o parcelamento fiscal, além de fazer constar como obrigação do plano o pagamento do débito fiscal.

Outro caso que mostra o impacto da alteração legislativa é o do Grupo Abril, que recentemente celebrou acordo de transação individual com a Procuradoria-Geral da Fazenda Nacional. A transação tributária envolveu valores em torno de R$ 830 milhões, tratando-se da primeira transação individual de empresas em recuperação judicial.

Os casos demonstram que as alterações trazidas pela Lei 14.112/2020 vêm prestigiar o devedor que busca sanar seus débitos fiscais. Já aqueles que vislumbram no processo de recuperação judicial uma forma de dar calote no Fisco possivelmente caminharão para a falência.

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