Diário de Classe

O debate Hart-Dworkin: a crítica à doutrina da discricionariedade judicial

Autores

  • Luísa Giuliani Bernsts

    é doutoranda e mestre em Direito Público (Unisinos) bolsista Capes/Proex membro do Dasein — Núcleo de Estudos Hermenêuticos (Unisinos) e do grupo de pesquisa Bildung — Direito e Humanidades (Unesa) e professora da Faculdade São Judas Tadeu (SJT-RS).

  • Giovanna Dias

    é advogada mestranda em Direito Público pela Universidade do Vale do Rio dos Sinos (Unisinos) e membro do Dasein — Núcleo de Estudos Hermenêuticos.

12 de junho de 2021, 8h02

Em 1967, o jurista estadunidense Ronald Dworkin publicou um artigo denominado O Modelo de Regras I, a partir do qual pretendeu contrapor as teses centrais da teoria de seu professor H.L.A Hart, iniciando, com isso, um dos debates mais importantes da história da teoria do Direito. Posteriormente, o artigo foi publicado no capítulo 2 da obra Levando os Direitos à Sério. Em 1994, surge o pós-escrito da obra O Conceito de Direito, o que seria uma resposta de Hart às críticas de Dworkin, que, em decorrência do seu falecimento, veio a ser publicado por seus amigos Penelope Bulloch e Joseph Raz. A tréplica de Dworkin foi publicada somente em 2004, com o ensaio O Pós-escrito de Hart e a Questão da Filosofia Política, que posteriormente foi incluído no capítulo 6 da obra A Justiça de Toga.

Verdade é que ainda hoje são encontrados papers e artigos de Dworkin que também podem ser considerados uma resposta ao pós-escrito, mas isso ocorre especialmente porque todo o seu empreendimento teórico pode ser considerado uma grande contraposição ao positivismo hartiano e aos positivismos em geral, sobretudo aquele denominado positivismo interpretativo.

Verdade também que existem muitos (muitos mesmo) materiais sobre o tema. Permitimo-nos citar, nesta coluna, apenas alguns deles, como, por exemplo, o artigo publicado por Lenio Streck e Francisco José Borges Motta, intitulado Relendo o debate entre Hart e Dworkin: uma crítica aos positivismos interpretativos e publicado na Revista Brasileira de Direito [1]; o artigo The "Hart-Dworkin" Debate: A Short Guide for the Perplexed, de Scott Shapiro [2] e o texto The Debate that Never Was, de Nicos Stavropoulos [3].

O debate Hart-Dworkin inicia, como visto, com as críticas formuladas pelo segundo autor, que delineou três principais preceitos comuns que fundamentam o positivismo jurídico na sua concepção. Primeiro, o Direito seria "um conjunto de regras especiais utilizado direta ou indiretamente pela comunidade com o propósito de determinar qual comportamento será punido ou coagido pelo poder público". Essas regras poderiam ser identificadas e distinguidas com o auxílio de critérios específicos, de testes que dizem respeito ao seu pedigree, também revelando-se coextensivas ao Direito. E aqui, chega-se ao segundo preceito: se algum caso não estiver coberto por uma das regras, ele poderá ser decidido por alguma autoridade pública, a partir de seu discernimento pessoal, oportunidade em que dispensada a aplicação do Direito. Finalmente, como terceiro preceito, na ausência de uma regra jurídica válida, não existiria obrigação jurídica, tendo em vista que a última apenas existe na ocorrência da primeira [4].

Para Hart, o sistema jurídico é composto pela combinação de regras primárias (que estabelecem o que é proibido e o que é permitido), e secundárias, que se referem às próprias normas primárias, especificando a forma como podem ser determinadas, introduzidas, eliminadas ou alteradas (e que também conferem poderes às autoridade).

Entre as regras secundárias está a regra de reconhecimento, que confere o fundamento e a validade de um sistema jurídico, porque ela possui como função a identificação das regras primárias e secundárias. Nesse sentido, também ela está relacionada com a validade da norma jurídica, porque oferece às autoridades públicas os critérios válidos para a identificação das normas primárias de obrigação. Funciona, portanto, como um padrão unificador e garantidor da identidade jurídica e é aceita como um fato social.

A partir da concepção de que os deveres jurídicos são criados por regras sociais (regras primárias e secundárias) cuja normatividade é garantida pelo reconhecimento social (regra de reconhecimento), Hart define a tese de que o direito existe como instituição social, na qual a linguagem ocupa um papel constitutivo [5], na medida em que o principal instrumento de controle — constituído pelas regras gerais, pelos padrões de conduta e pelos princípios — deve ser transmitido como padrão geral de conduta compreensível para os cidadãos.

No entanto, Hart adverte que existe um problema especialmente relacionado à questão de linguagem (ponto que pode ser considerado o mais criticado por Dworkin). Para Hart, a linguagem faz parte da constituição do Direito, na medida em que se trata de um fenômeno cultural. No entanto, ela é, naturalmente, imprecisa nas orientações, possuindo o que ele chama de cânones interpretativos, que sugere incertezas, vaguezas e ambiguidades. Assim, a sua visão é a de que a própria linguagem, dada a sua imprecisão, confere ao intérprete discricionariedade.

Consequentemente, em uma decisão judicial, quando o julgador estiver diante de um caso concreto em que não exista uma norma juridicamente válida prevista ou, ainda, na hipótese de existir, ela for linguisticamente vaga a ponto de restar incertezas acerca da sua aplicabilidade (os famosos casos de zonas de penumbra), o julgador poderá exercer sua criatividade e decidir conforme critérios próprios de justificação (baseados em princípios de política, economia, moral, etc) que não estão no Direito, e, sim, no seu próprio discernimento pessoal. Nessa oportunidade, o juiz age como um legislador contencioso, pois cria o Direito naquele caso concreto.

Hart não se preocupa em tematizar o conteúdo bom — ou mau — de uma decisão judicial, já que na zona de penumbra (ou no campo da discricionariedade) as decisões estão sempre certas, na medida em que o juiz está amparada por uma regra secundária que lhe confere essa autoridade. Esses referidos componentes, ignorados por Hart, e que são distintos das regras, operam em casos difíceis como princípios, políticas e outros tipos de padrões.

Em discordância à análise de Hart, Ronald Dworkin sustentou que a atividade judicial não consistiria tão somente na aplicação de regras, mas que haveriam outros fundamentos possuidores de status jurídico e que serviriam como guias de uma decisão judicial, inclusive nos casos em que há a referida zona de penumbra, de forma que não é dado ao julgador a prerrogativa de atuar com discricionariedade, sequer em casos excepcionais.

Esses outros fundamentos tratam-se dos princípios jurídicos que, conforme Dworkin — e em contraste com a concepção positivista — são juridicamente vinculantes para os agentes públicos. Essa, pois, a novidade de Dworkin.

Para elucidar a questão de como se definem os princípios, convém ter presente a distinção entre princípios e políticas. Os primeiros contemplam um padrão que deve ser observado em razão de suas exigências de justiça ou de equidade ou de alguma dimensão da moralidade, enquanto a segunda abrange um padrão que estabelece um objetivo a ser alcançado [6]. Dworkin articula seu argumento para demonstrar que princípios diferem de regras, e essas diferenças ocorrem no âmbito de sua aplicação, de sua dimensão e de sua validade.

Assim, as regras se excluem reciprocamente, "dados os fatos previstos para a incidência simultânea de mais de uma regra, somente uma delas será considerada válida e aplicável" [7], enquanto que no tocante aos princípios estes enunciam uma razão que conduz o argumento em certa direção, ainda que necessitem de uma decisão particular. Portanto, quando conflitantes, não teriam o mesmo efeito das regras, porque possuem a dimensão do peso ou da importância. Com isso, quando os princípios se intercruzam, o que está em jogo é a força relativa de cada um, não a sua validade [8].

Considerando-se então que, em decisões judiciais, os princípios e as políticas interagem enquanto fonte de autoridade para a geração de novas regras, pode-se aduzir que o Direito inclui tanto regras quanto princípios — alguns dos quais, obrigatórios como as regras. Assim, como aplicam-se padrões jurídicos obrigatórios, também aplicam-se direitos e obrigações jurídicos, de forma que, em casos de zona de penumbra, ou nos casos em que existem cânones de interpretação relacionados à regra existente, o juiz não pode simplesmente criar o direito a partir de um discernimento discricionário. Deve, em contrário, efetuar uma análise e um estudo acerca de quais os princípios jurídicos que sustentam aquele caso concreto, orientando-se por eles.

Diante dos princípios, não há brechas para a atuação discricionária do juiz, uma vez que contemplam o modo concreto de enfrentamento da discricionariedade judicial e sintetizam a manifestação da densidade normativo-concreta de um mandamento legal, o que demanda singularização, que só ocorre no momento aplicativo.

Cumpre ressaltar que o combate ao arbítrio presente na discricionariedade dos juízes reside justamente na busca pela devida concretização das promessas presentes no texto constitucional. Nesta senda, faz-se coerente aprofundar a questão do poder discricionário do juiz para compreender por que é fundamental observar o Direito como empreendimento constituído por regras e por princípios — e pelas implicações decorrentes disso.

Conceber o poder discricionário em seu sentido forte é ignorar que princípios e políticas fazem parte do Direito, considerando-os meros padrões extrajurídicos corriqueiramente utilizados nos tribunais, apenas pelo fato de determinarem obrigações diferentes das regras. Isso significa negar que são capazes de, sem ditar resultados, inclinar suas decisões para determinada direção — embora de maneira não conclusiva — cujo peso está relacionado à junção dos argumentos baseados na história legislativa e judiciária, juntamente com as compreensões compartilhadas por uma comunidade.

Dessa forma, assumir que, além das regras, os princípios fazem parte do ordenamento jurídico e se caracterizam como obrigatórios, além de colocar em xeque a tese da discricionariedade, aponta para a necessidade de reconhecimento de um teste de validade que possa ser satisfeito por todos os princípios que fazem parte do Direito. A tese não pode ser a da regra de reconhecimento — como a proposta por Hart, a qual é válida porque alguma instituição competente a promulgou — mas deve considerar aquilo que é contextualmente apropriado.

Em seu pós-escrito, Hart acaba reafirmando algumas teses que ele tinha formulado, como a da separação entre direito e moral e a da discricionariedade judicial. Rejeita muitas leituras que o Dworkin faz a respeito das suas teorias, mas, ao final, acaba assumindo que deu menos importância aos princípios jurídicos na descrição de Direito que ele formulou, e que tais princípios são muito importantes para a decisão judicial e para o pensamento jurídico. No entanto, também entende que assumir isso não gera maiores consequências para sua teoria como um todo.

As análises sobre o debate entre Hart e Dworkin não cabem nos limites dessa coluna. Por isso, fiquemos apenas com essa preliminar, que já oferece uma boa introdução acerca do que foi esse intenso e importante embate para a Teoria do Direito. O reconhecimento dos princípios jurídicos e a contraposição à discricionariedade judicial são ganhos inestimáveis.


[2] SHAPIRO, Scott J. The "Hart-Dworkin" Debate: A Short Guide for the Perplexed. Social Science Research Network, 2 fev. 2007.

[3] STAVROPOULOS, Nicos. The Debate that Never Was. n. 130, jun. p. 2082-2095, 2017.

[4] DWORKIN, Ronald. Levando os direitos a sério. São Paulo WMF Martins Fontes, 2010. p. 28.

[5] MOTTA, Francisco José Borges. Ronald Dworkin e a Decisão Jurídica. Savador: Juspofivm, 2017. p. 101.

[6] DWORKIN, Ronald. Levando os direitos a sério. São Paulo WMF Martins Fontes, 2010. p. 36.

[7] MOTTA, Francisco José Borges. Ronald Dworkin e a Decisão Jurídica. Salvador: Juspofivm, 2017. p. 103.

[8] STRECK, Lenio Luiz; MOTTA, Francisco José Borges. Relendo o debate entre Hart e Dworkin: uma crítica aos positivismos interpretativos. In: Revista Brasileira de Direito, v. 14, n. 1, 2018.

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