Limite penal

Por um controle prévio de racionalidade na reforma do júri

Autor

  • Marcella Mascarenhas Nardelli

    é doutora em Direito Processual pela Uerj professora de Direito Processual Penal da Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF) e autora do livro "A Prova no Tribunal do Júri" da Editora Lumen Juris.

11 de junho de 2021, 11h44

Spacca
O procedimento do júri está entre os temas que haviam sido objeto de alterações mais significativas e sensíveis no Projeto de Reforma do Código de Processo Penal a partir do parecer do relator-geral da comissão especial da Câmara, deputado João Campos (apresentado em 26 de abril de 2021). Ao que parece, o substitutivo elaborado após as discussões e sugestões recebidas voltaria atrás em algumas questões tidas como mais polêmicas, como a supressão da instrução preliminar e a fórmula de quesitação em duas fases anteriormente proposta.

No entanto, um ponto que parece pacífico em todas as versões discutidas é a tendência de se adotar uma simplificação ainda mais significativa no teor dos quesitos que discutem se o acusado é culpado ou inocente. No modelo vigente, há um quesito que discute a materialidade do fato, outro dedicado à autoria, e um terceiro que questiona se o jurado absolve o acusado. Nas propostas, a ideia seria dirigir ao júri um único quesito que contemplaria os três referidos, limitando-se a indagar se o jurado absolve o acusado.

Veja-se que este formato se aproxima, quanto à definição da culpa, do modelo de quesito genérico de condenação/absolvição utilizado nos sistemas de common law. Isso é preocupante, no mínimo, por dois motivos. A um, já que a dinâmica do questionário é tida como uma das formas de se suprir a ausência de fundamentação, mas desde que os quesitos sejam suficientemente analíticos a fim de que os lacônicos "sim" ou "não" emitidos pelos jurados se encaixem em um contexto estruturado, a fim de que se faça possível compreender o raciocínio que motivou a decisão [1]. A dois, pelo fato de não se adotar, por aqui, alguns dos mais relevantes mecanismos procedimentais de controle prévio, típicos da common law, capazes de compensar os veredictos genéricos.

O júri anglo-americano é usualmente concebido como o símbolo da liberdade de apreciação da prova, o que se materializa por meio da emissão de um veredicto genérico e imotivado. Mas esta visão é apenas parcial e pode ser bastante enganosa, na medida em que não se compreende o contexto que precede o momento de deliberação e decisão. Como bem aponta Mirjan Damaška [2], a common law nunca se mostrou avessa aos mecanismos voltados para o escopo de limitar a liberdade dos jurados na apreciação da prova. Ao contrário: o desenvolvimento de sua doutrina probatória tem este como um de seus principais propósitos, o que é feito por meio de uma lógica de filtragem das informações a serem disponibilizadas ao júri, paralelamente a alguns outros instrumentos empregados para estruturar o processo de raciocínio e deliberação, materializados nas instruções fornecidas aos jurados ao longo do julgamento.

Por não serem conhecidas as razões pelas quais se determinou a condenação ou a absolvição do acusado, ganham especial destaque essas medidas tendentes a proporcionar formas alternativas de controle sobre a atuação dos cidadãos leigos. A ideia é que, se não se pode controlar o produto da decisão, deve-se controlar a qualidade de suas premissas, daquilo que lhe servirá como fundamento. Recomenda-se, portanto, análise criteriosa de todo o conjunto de informações que é levado ao conhecimento dos jurados durante a sessão de julgamento, já que é a partir desses elementos que a decisão será alcançada. É a lógica de racionalidade ex ante de que fala Taruffo [3], a qual norteia a dinâmica do procedimento do júri na common law e que se configura como medida de controle preventivo sobre os fundamentos do juízo.

Ao analisar os aspectos mais relevantes dessa sistemática, Damaška [4] apontou três características marcantes, as quais desempenham importante papel na dinâmica de seu funcionamento: a intensa complexidade da regulação em matéria probatória; uma grande preocupação em filtrar os elementos de prova a serem apresentados aos jurados; e um anseio em estruturar a análise da prova para os julgadores do fato  estas duas últimas são as que mais interessam para o presente contexto.

O ponto é o seguinte: se o sistema brasileiro pretende se valer da clássica fórmula genérica de quesito sobre a culpa do júri anglo-americano, deve também adotar os cuidados que aquele modelo prevê como contrapartida para assegurar essa via de controle de racionalidade ex ante, de modo que o veredicto seja alcançado com base em um conjunto informativo suficiente, consistente e confiável.

Merece destaque, em primeiro lugar, a classe de limitações probatórias que se justifica com o intuito de inadmitir no processo provas consideradas suspeitas, por seu potencial de levar a raciocínios equivocados. Fundadas no escopo de controlar a correção dos raciocínios inferenciais de seus principais destinatários, as exclusionary rules são consideradas símbolos marcantes dessa cultura peculiar.

Parecem importantes também algumas proibições que recaem sobre provas com baixo teor informativo que se apresentam principalmente com o propósito de apelar para a subjetividade dos jurados, seja buscando uma simpatia, comoção, e até mesmo com o intuito de criar um injusto preconceito contra a pessoa do acusado ou da vítima (a exemplo das provas de má conduta). Por outro lado, consideram que algumas provas poderiam ser superestimadas pelo júri na medida em que se mostrem relevantes, apesar de apresentarem informações pouco confiáveis  a exemplo do testemunho por hearsay, cujo conteúdo dificilmente poderá ser testado à luz da dialética processual.

Apesar de levarem à exclusão de elementos de prova relevantes, a classe das chamadas exclusionary rules é considerada pelos operadores da common law como normas de conteúdo epistêmico. Isso se deve a seu fundamento de aprimorar a capacidade do júri de desenvolver bons raciocínios sobre as hipóteses fáticas, além do propósito de controlar excessos dos litigantes em meio ao clima adversarial, procurando evitar abusos no manejo da prova com pretexto exclusivamente persuasivo. A exclusão da prova seria justificável, nesse sentido, caso seu valor probante seja suficientemente suplantado pelo potencial de gerar preconceito, confusão ou engano do júri, de modo a prejudicar a precisão da reconstrução histórica dos fatos [5]. A circunstância de que os jurados não apresentarão as razões para o veredicto justifica ainda mais a preocupação com o controle da qualidade epistêmica do conjunto probatório.

Ao lado da tendência de filtragem do material informativo, situa-se o anseio do sistema de estruturar a análise da prova por seus destinatários [6]. Nesse sentido, as instruções fornecidas pelo juiz para desconsiderar determinadas informações inadmissíveis e as regras de admissibilidade parcial  pelas quais certas informações somente podem ser consideradas para propósitos específicos  , são algumas ilustrações.

As instruções aos jurados são mecanismos característicos da sistemática de controle ex ante e se consubstanciam como importantes fatores de racionalização da decisão dos cidadãos [7]. De acordo com essa lógica, constitui obrigação do magistrado instruir os jurados sobre sua função, sobre a dinâmica do procedimento e sobre as questões de direito aplicáveis (esclarecendo-se sobre a forma adequada de interpretar alguns dos conceitos jurídicos pertinentes). O júri é orientado, basicamente, sobre como lidar com a vasta gama de informações que lhe foi apresentada, bem como sobre as regras de ônus da prova e sobre o standard probatório a ser adotado para a decisão [8].

A suposta imagem de liberdade que os observadores da civil law atribuem à dinâmica anglo-americana na formação do convencimento dos jurados não revela todo o trabalho anterior do sistema em controlar o conjunto informativo e assegurar sua consistência por meio desses instrumentos, o que sem dúvida alguma materializa a preocupação com a racionalidade dos veredictos e com a redução dos riscos de uma condenação equivocada.

Por outro lado, em uma perspectiva recursal, considerando-se o caráter genérico e imotivado do veredicto, o sistema procura sujeitar ao controle das partes a adequação do banco de dados fornecido aos jurados como base para seu alcance: se o suporte racional do produto (output) da decisão escapa a uma supervisão, o suporte racional para o material de entrada (input) pode estar sujeito a ataque. A análise pode consistir, por exemplo, na verificação do suficiente potencial probante da prova submetida ao júri, ou dos standards racionais adequados que fundamentam as instruções do juiz [9].

É justamente essa a base para o controle dos veredictos. "É através da possibilidade de influência sobre aquilo que a 'esfinge processual' escuta e vê, que as partes sentem que podem afetar o resultado da causa" [10]. Todo o conjunto de informações a ser submetido ao júri, inclusive as instruções do juiz, é o que servirá de base para os questionamentos sobre a justiça ou injustiça do veredicto, em sede de apelação.

O procedimento de júri brasileiro, inspirado que foi no modelo francês, adota lógica bastante distinta da anglo-americana: atribui-se ampla margem de liberdade decisória a partir da ideia de íntima convicção, segundo a qual nem mesmo a prova dos autos parece ser baliza para o veredicto  só o é a própria consciência do jurado. A noção de que os valores morais e o senso próprio de justiça de cada cidadão seriam fatores legítimos para nortear o convencimento dos jurados leva a que se considere plenamente legítimo o manejo da prova segundo esses pretextos.

Não se verifica um adequado zelo ou critério quanto ao conjunto probatório que é apresentado ao conselho de sentença em plenário, tanto no que se refere à suficiência, quanto à qualidade dos elementos de prova. São inúmeros os exemplos de provas material e formalmente controversas que permanecem no processo [11]  inclusive a título de elementos informativos produzidos na etapa investigativa  e acabam sendo levadas ao conhecimento dos jurados pela via dos debates, através da leitura de peças. Essa possibilidade de livre exploração do conteúdo de provas produzidas em etapas anteriores no contexto dos debates orais faz com que, em alguns casos, quase nenhuma prova seja produzida diante do júri. Como adverte Aury Lopes Jr.: "Assim deveria funcionar o júri: prova produzida na frente dos jurados. Infelizmente a instrução em plenário é uma exceção. A regra é a patologia: prova produzida na primeira fase, diante do juiz presidente, e mera leitura de peças em plenário" [12].

Por outro lado, há um grande receio de que qualquer comportamento do juiz que extrapole a condução mecânica dos trabalhos possa ser interpretado como influência indevida sobre o convencimento dos cidadãos, de forma a macular a soberania dos veredictos. Em vista disso, tende-se a exigir certa autocontenção por parte do magistrado em meio às suas atribuições frente aos jurados, o que frustra, todavia, a expectativa de que os mesmos disponham de uma compreensão básica acerca de questões fundamentais ao desempenho de sua função. Como consequência, esse papel é assumido pelos próprios representantes das partes, o que leva a resultados insatisfatórios. O conhecimento de algumas questões fundamentais sobre o direito e sobre o papel dos jurados acaba apresentado ao júri de forma, por vezes, contraditória, sujeito a manipulações e distorções inerentes à arena da retórica.

A consciência da comunidade não é, por si só, fundamento legítimo para se condenar o acusado ante a ausência de prova idônea que desconstitua a presunção constitucional de inocência, produzida em contraditório e diante dos verdadeiros julgadores do fato. O sistema deve incorporar medidas de controle capazes de assegurar essa garantia de fundo epistêmico: o direito do acusado de ter um julgamento fundado em uma cognição adequada. Daí a relevância do estabelecimento de uma racionalidade prévia, cuidando da fiabilidade da base informativa que servirá para a formação do veredicto, tal como se verifica no contexto anglo-americano.

É preciso aceitar que os cidadãos são, por opção constitucional, os juízes do fato nos crimes dolosos contra a vida, e buscar implementar, a partir daí, as medidas necessárias para que exerçam a função com qualidade. Da forma como hoje se coloca a dinâmica de funcionamento do juízo em plenário, não é necessária uma análise mais profunda para se constatar que resta, de fato, muito improvável que o júri encontre sozinho a racionalidade que não lhe fora proporcionada oportunamente. Além de injusto com o acusado, trata-se de desrespeito com os jurados  os quais merecem ser levados a sério.


[1] TEDH, Caso Taxquet v. Bélgica, 16 de novembro de 2010, §92. Disponível em: http://hudoc.echr.coe.int/sites/eng/pages/search.aspx?i=001-101739.

[2] DAMAŠKA, Mirjan. Evidence Law Adrift. New Haven: Yale University Press, 1997, p. 18-19.

[3] TARUFFO, Michelle. La prueba de los hechos. Trad. Jordi Ferrer Beltrán. Madrid: Trotta, 2011, p. 421.

[4] Op. cit.

[5] MALAN, Diogo Rudge. O Direito ao Confronto no Processo Penal. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2009, p. 39.

[6] DAMAŠKA, Mirjan. Evidence Law… cit., p. 17-18.

[7] Para compreender a função das instruções aos jurados, ver item 5.4.2. "As instructions do júri estadunidense e o summing-up do procedimento inglês: a relevante e construtiva interação entre a função do juiz e a dos jurados" em: NARDELLI, Marcella Mascarenhas. A Prova no Tribunal do Júri. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2019. Ver também: NARDELLI, Marcella Mascarenhas. É preciso levar os jurados brasileiros a sério: https://www.conjur.com.br/2020-abr-10/limite-penal-preciso-levar-jurados-serio; e NARDELLI, Marcella Mascarenhas; SILVA, Rodrigo Faucz Pereira e; AVELAR, Daniel Ribeiro Surdi de. As instruções e o aperfeiçoamento dos julgamentos: https://www.conjur.com.br/2021-abr-29/opiniao-instrucoes-aperfeicoamento-julgamentos-juri.

[8] ZANDER, Michael. Cases and Materials on the English Legal System. 10th ed. Cambridge: Cambridge University Press, 2007, p. 519.

[9] DAMAŠKA, Mirjan. Evidence Law… cit., p. 44.

[10] Ibidem.

[11] CASTRO, Antônio Carlos de Almeida, KAKAY; FREIRIA, Marcelo Turbay. A impossibilidade de utilização, no plenário do Tribunal do Júri, de prova acusatória (formalmente ou materialmente) controversa produzida em inquérito policial. In: SIDI, Ricardo; LOPES, Anderson Bezerra. Temas atuais da Investigação Preliminar no Processo Penal. Belo Horizonte: D'Plácido, 2018, p. 351-352.

[12] LOPES JR., Aury. Direito Processual Penal. 10ª ed. São Paulo: Saraiva, 2013, p. 1041.

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    é doutora em Direito Processual pela Uerj, professora de Direito Processual Penal da Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF) e autora do livro "A Prova no Tribunal do Júri", da Editora Lumen Juris.

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