Opinião

Ação processual penal: entre a obrigatoriedade e a realidade

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10 de junho de 2021, 18h05

Em artigo aqui publicado, ficou claro que o contraditório prévio ao possível recebimento da acusação é, sem dúvidas, um grande limitador de excessos acusatórios e ilegalidades, e, por isso mesmo, limitador do poder (que precisa ser controlado) [1].

Quem faz o controle da acusação é o juiz [2]. Assim, é preciso saber mediante quais critérios ele fará tal controle. Ou seja, não basta só o contraditório. Tais critérios se dividem, basicamente, entre: pressupostos processuais e condições da ação [3] [4].

Todavia, antes dos critérios mencionados, existem determinadas regras [5] que devem ser observadas: oficialidade e obrigatoriedade [6]. Pelo menos no que tange à ação processual penal de iniciativa pública, há consenso na dogmática de que a regra da oficialidade trata da atribuição privativa do Ministério Público para exercê-la, como se nota do artigo 129, I da CF.

Já a obrigatoriedade [7] requer uma análise mais detida, pois, a par de uma doutrina mais tradicional sustentar sua existência no ordenamento jurídico brasileiro, há quem diga que a regra não estaria prevista na legislação [8]: eis a questão!

Ademais de determinados argumentos, na realidade o princípio da obrigatoriedade não se sustenta. Não há sistema penal no mundo que dê conta de apurar e julgar todos os crimes: aqui está a falsificação de qualquer pretensão que busque, no rigor legislativo, a imposição de o Estado perseguir todos os delitos [9] (os crimes de ação processual de iniciativa privada e os que necessitam de representação constituem exceção à regra).

Pela impossibilidade de perquirir todas as condutas delituosas, o sistema de justiça criminal opera com total seletividade [10]. Um exemplo desse "processo seletivo" é dado por Sérgio Salomão Shecaira: "Passados os constrangimentos naturais do passeio de camburão, revistas pessoais, perda de tempo, invasão de privacidade etc., essas pessoas são devolvidas para as ruas sem qualquer acusação formal ou política pública ou social que tenha o objetivo de restituir-lhes a dignidade. É de se indagar: voltam felizes para com o passeio ou revoltadas com a discriminação?" [11].

Assim, a verdade é que a obrigatoriedade, se existe, está revogada pelas escolhas dos atores do sistema de justiça criminal. Justamente para se evitar problemas [12] advindos daquelas escolhas é que se deve laborar com verdadeiros critérios, uniformes e coerentes — a fim de que se decida o que vai ou não, em matéria penal, ser perseguido pelo Estado — instituindo-se não mais a obrigatoriedade, mas a oportunidade como regra da ação processual penal (em sentido estrito, acusação).

Os mencionados critérios precisam surgir de acordo com a realidade de cada região do país; no entanto, Leonel Gonzáles Postigo, amparado em Alberto Binder, dá balizas interessantes, as quais chama de regras, para que se trace uma política criminal que busque dar conta dos casos penais realmente importantes [13]: "a) regras vinculadas ao tratamento dos casos de menor quantia; b) regras vinculadas a uma restrição dos casos nos quais a ação pode ser exercida pelo Ministério Público; c) regras que aumentam o controle da vítima sobre o caso; d) regras de suspensão da persecução penal, condicionada à aplicação de medidas ou regras de conduta; e) regras de extinção da ação" [14].

Enfim, somente se uma comunhão entre autoridades (dos diversos poderes) for capaz de decidir os rumos da persecução penal, no sentido de escolher o que vai, ou não, ser investigado, processado e julgado, é que o julgador — bem como aqueles que participam do processo decisório — terá condições de decidir de maneira séria o que deve ou não virar processo. Desta forma, quem sabe, o processo penal poderá ser um verdadeiro redutor de danos.

 


[2] "Nesse contexto, a função do juiz é atuar como garantidor da eficácia do sistema de direitos e garantias fundamentais do acusado no processo penal" (Lopes Júnior, Aury. Direito Processual Penal. 17ª ed. São Paulo: Saraiva Educação, 2020, p. 70).

[3] Coutinho, Jacinto Nelson de Miranda. Introdução aos princípios gerais do Direito Processual Penal. Brasileiro. Revista da Faculdade de Direito da UFPR, Curitiba, a. 30, n. 30. 1998, p. 163-198, p. 185). Disponível em: https://revistas.ufpr.br/direito/article/view/1892. Acesso em 29/05/2021. A ideia de pressupostos processuais remonta a Oskar Von Bullow, com sua teoria homônima. No entanto, tal teoria, ao menos para ceara processual penal, é totalmente criticada por, dentre outros, Aury Lopes Júnior, que adota a gramática goldschimidtiana, analisando o processo não como relação jurídica, mas, sim, como situação jurídica. (Lopes Júnior, Aury. Fundamentos do Processo Penal: Introdução Crítica. 6ª ed. São Paulo: Saraiva Educação, 2020, p. 275-278).  

[4] Tradicionalmente, forte na Teoria Geral do Processo, se desenhou as condições da ação como: legitimidade, interesse de agir, possibilidade jurídica do pedido e justa causa; modernamente, com base nas especificidades do Direito Processual Penal, atribui-se à ação as seguintes condições: legitimidade da parte autora, tipicidade aparente, punibilidade concreta e justa causa.

[5] Trabalhando com a ideia de regras, e não princípios (como faz grande parte da doutrina): Lopes Júnior, Aury. Direito Processual Penal. 17ª ed. São Paulo: Saraiva Educação, 2020, p. 243 e ALVES DA SILVA, Fernando Laércio. Rediscutindo a obrigatoriedade e a indisponibilidade da ação penal pública: há espaço para elas em um processo penal de base democrática. Coutinho, Jacinto Nelson de Miranda; PAULA, Leonardo Costa de; Nunes da Silveira, Marco Aurélio (organizadores). Mentalidade inquisitória e processo penal no Brasil: estudos sobre a reforma do CPP no Brasil: vol. 4. Curitiba: Observatório da Mentalidade Inquisitória, 2018, p. 208.

[6] Souza, Bruno Cunha. Obrigatoriedade: um problema a ser pensado. Paula, Leonardo Costa de; Nunes da Silveira, Marco Aurélio (organizadores). Mentalidade inquisitória e processo penal no Brasil: escritos em homenagem ao Prof. Dr. Jacinto Nelson de Miranda Coutinho: vol. 5. Curitiba: Observatório da Mentalidade Inquisitória, 2018, p. 319.

[7] Segundo Coutinho, a regra se estabeleceria para que se evite ingerências de todas as ordens no exercício da atividade do Ministério Público, bem como para que se trate todos de maneira igual: acusando quando tem que acusar; retrocedendo quando tem que retroceder (Coutinho, Jacinto Nelson de Miranda. Introdução aos princípios gerais do Direito Processual Penal Brasileiro…, p. 183).

[8] Sustentando a ideia: Coutinho, Jacinto Nelson de Miranda. Introdução aos princípios gerais do Direito Processual Penal Brasileiro, p. 183-184; SOUZA, Bruno Cunha. Obrigatoriedade: um problema a ser pensado…, p. 327, dizendo que a obrigatoriedade é inconstitucional; Nunes da Silveira, Marco Aurélio. Por uma teoria da ação processual penal: aspectos teóricos atuais e considerações sobre a necessária reforma acusatória do processo penal brasileiro. Curitiba: Observatório da Mentalidade Inquisitória, 2018, p. 387-389, aduzindo que num modelo de processo penal acusatório não se pode falar em obrigatoriedade, mas em oportunidade (grifo do autor).

[9] Segundo o SISPENAS, o total de tipos penais seria de 1529. Disponível em: https://www.justica.gov.br/seus-direitos/elaboracao-legislativa/sispenas/anexos/2008artigosispenas_revista-juridica.pdf. Acesso em: 7/6/2021. Já o Projeto Pensando o Direito elaborou pesquisa segundo a qual, por critérios metodológicos distintos, o resultado do total número de tipos penais seria o de 891. Disponível em: https://www.justica.gov.br/seus-direitos/elaboracao-legislativa/pensando-o-direito/publicacoes/anexos/06pensando_direito_relatorio.pdf. Acesso em: 07/06/2021. Ambos os projetos foram produzidos no âmbito do Ministério da Justiça, nos anos de 2008 e 2009, respectivamente.

[10] "(…) é no processo de criminalização que a posição social dos sujeitos criminalizáveis revela sua função determinante do resultado de condenação/absolvição criminal: a variável decisiva da criminalização secundária é a posição social do autor, integrada por indivíduos vulneráveis selecionados por estereótipos, preconceitos e outros mecanismos ideológicos dos agentes de controle social — e não pela gravidade do crime ou pela extensão social do dano" (SANTOS, Juarez Cirino dos. Direito penal: parte geral. 9º ed. rev. atual e ampl. São Paulo: Tirant lo Blanch, 2020, p. 36).

[11] SHECAIRA, Sérgio Salomão. Criminologia. 8ª ed. rev. atual. ampl. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2020, p. 165.

[12] Só para ilustrar, recentemente o STJ trancou o processo criminal de um sujeito, condenado nas instâncias ordinárias, pela prática de um furto de dois filés de frango, calculados em R$ 4,00 reais. Disponível em: https://www.conjur.com.br/2021-jun-01/stj-aplica-insignificancia-furto-comida-faz-apelo. Acesso em: 7/6/2021.

[13] Em 2011, há notícias no CONJUR sobre as baixa resolução dos casos de homicídios: de 50 mil homicídios ocorridos no ano, apenas 8% são solucionados. Disponível em: https://www.conjur.com.br/2011-mai-09/somente-homicidios-sao-resolvidos-50-mil-cometidos-pais. Disponível em: 8/6/2021. Para mais informações e estatísticas sobre a resolução dos casos, ver https://www.ipea.gov.br/atlasviolencia/filtros-series/1/homicidios.

[14] Postigo, Leonel Gonzáles. A função estratégica do Ministério Público: Reflexões sobre os princípios da obrigatoriedade e de fiscal da lei. Coutinho, Jacinto Nelson de Miranda; Paula, Leonardo Costa de; Nunes da Silveira, Marco Aurélio (organizadores). Mentalidade inquisitória e processo penal no Brasil: estudos sobre a reforma do CPP no Brasil: vol. 4. Curitiba: Observatório da Mentalidade Inquisitória, 2018, p. 77.

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