Controvérsias Jurídicas

A mídia e o processo como pena autônoma

Autor

  • Fernando Capez

    é procurador de Justiça do MP-SP mestre pela USP doutor pela PUC autor de obras jurídicas ex-presidente da Assembleia Legislativa de SP presidente do Procon-SP e secretário de Defesa do Consumidor.

10 de junho de 2021, 8h01

Em tempos de globalização e comunicação massificada, qualquer um pode se tornar famoso da noite para o dia, conquistando milhões de seguidores em minutos. A internet tornou-se poderosa arma de divulgação, transmitindo com enorme agilidade a informação.

O Brasil, como Estado democrático de Direito, tem compromisso com a imprensa livre e vigilante, protegida contra o filtro autoritário da censura prévia. Nossa Lei Maior assegurou em seu artigo 220, § 2º, ser "vedada toda e qualquer censura de natureza política, ideológica e artística" e, em seu artigo 5º, IV, a livre expressão do pensamento. Em uma democracia, todos devem ter liberdade de dizer o que pensam e conhecer a verdade dos fatos.

Nesse sentido, é inegável a contribuição da imprensa na divulgação de irregularidades na administração pública. Do mesmo modo, sua aliança com órgãos constitucionais de controle tem se revelado de extrema eficácia. Trata-se de verdadeiro e legítimo exercício do poder soberano de fiscalização, delegado pela via constitucional.

Como todo poder, porém, seu exercício ilimitado acaba resultando em abusos, notadamente quando a veiculação não é fidedigna aos fatos. Nesse ponto, a Justiça brasileira necessita aprimorar a tutela da honra alheia, a fim de que o benefício da liberdade de informar não seja maculado pelo excesso ou desvio. Essa conclusão pode ser extraída do julgamento da ADPF 130, a qual considerou a Lei de Imprensa não recepcionada pela nova ordem constitucional. Não existe controle prévio, o que aumenta a responsabilidade pela apuração dos abusos na liberdade de informar [1].

Do mesmo modo, o corporativismo de alguns órgãos correcionais tem levado à impunidade de agentes públicos que abusam de suas funções e, assim, estimulado por omissão as práticas que resultam em ineficácia no combate à corrupção, na medida em que se avolumam os casos de nulidade e escassez de condenações finais, acarretando desperdício de tempo e dinheiro público pela desnecessária movimentação do aparato da Justiça em hipóteses sem justa causa. Tudo porque não se coibiu com efetividade a cultura do abuso.

Ao priorizar o espetáculo de medidas precipitadas ao arrepio da Constituição e respaldar o oferecimento de ações sem lastro probatório e fadadas ao insucesso, criam-se expectativas irreais. A estratégia de pressionar órgãos jurisdicionais, seja pela ameaça da crítica pessoal, seja pela retórica sofística do discurso acusatório, procura compensar falta de provas com frases de efeito.

O modus operandi é conhecido: teatralidade processual com respaldo da mídia, execração pública e acúmulo artificial de documentos desnecessários, com o objetivo de dificultar a leitura no apertado prazo que o Poder Judiciário tem para se manifestar.

O juiz, não raro se vê diante do dilema de decifrar se um escândalo é real ou fabricado, premido pelo tempo e sob pressão social, não lhe restando alternativa a não ser embarcar na narrativa acusatória. Nessas hipóteses, o caminho mais usual tem sido autorizar o início de ações sem cuidado e a necessária reflexão. Na sequência, os fatos são divulgados tendenciosamente em manchetes escandalosas, despertando a atenção e o julgamento precoce do público. A tardia revelação da farsa não virá acompanhada da necessária reparação moral, pois muito tempo já se passou. A destruição da reputação ou da vida física do acusado já terá se operado.

As ações abusivas seguem o mesmo padrão: investigar pessoas, não fatos. Não se parte do fato para o suspeito, mas elege-se o inimigo a partir de fonte de duvidosa credibilidade ou alteração ideológica da verdade. Inicia-se, então, a busca alucinada de evidências, em autêntica devassa acompanhada da espetacularização midiática. Tal fenômeno denomina-se seletividade ideológica da persecução penal. Esta pesca predatória de provas já foi identificada pela doutrina (fishing expedition[2].

São procedimentos sem elementos concretos. Denúncias vagas baseadas em conjecturas e ilações. Convicções pessoais (achismo) substituindo padrões objetivos de investigação científica. As garantias constitucionais passam a ser vistas como obstáculos ao bom andamento da apuração. O que importa é o que parece e não os parâmetros impessoais de avaliação. A consequência já é conhecida: fracasso da persecução penal.

Não é por outra razão que comumente tais práticas deságuam na nulidade do processo, na absolvição do acusado ou na prescrição do crime, beneficiando o real culpado e a fila de suspeitos de menor grife, que se perdem no esquecimento provocado pela desordenada apuração. Sempre que justiça dorme no começo de uma investigação, ela se vê obrigada a acordar no fim. A investigação não acabou em pizza, já tinha começado.

Alguns acordos de colaboração premiada se transformaram em pactos de mútua utilidade, livrando o malfeitor de seus crimes para enredar personalidades de forma imprudente e irresponsável. O delator fornece combustível midiático à investigação ou processo e em troca, se vê protegido de seus crimes e garantido no patrimônio que desviou, afinal passa a ser visto como "parceiro da Justiça", "o amigo da acusação".

Importante destaque merece o voto do ministro Gilmar Mendes, às vezes criticado por se opor ao politicamente conveniente, no julgamento do HC nº 84.409/SP: "Quando se fazem imputações vagas, dando ensejo à persecução criminal injusta, está a se violar o princípio da dignidade da pessoa humana. O estado está vinculado ao dever de respeito e proteção do indivíduo contra exposição a ofensas ou humilhações. Não é difícil perceber os danos que a mera existência de uma ação penal impõe ao indivíduo. Daí a necessidade de rigor e prudência por parte daqueles que têm o poder de iniciativa nas ações penais e daqueles que podem decidir sobre o seu curso" [3].

Aqui se revela a dolorosa verdade que os dias desconhecem e só os anos sabem: o resultado dessas ações importa menos do que o impacto na reputação, compensando a ineficácia da persecução, com a satisfação do interesse pessoal do acusador. O processo justo ou injusto é capaz de provocar desastres. Não por outra razão, bem apontou o mestre italiano Carnelutti: "nem tanto faz sofrer os homens porque culpados, como para saber se são culpados ou inocentes" [4].

A utilização do processo como pena em si é um ato ilícito qualificado pelo abuso de poder. Sua tipificação no artigo 30 da nova Lei de Abuso de Autoridade (Lei nº 13.869/19) revela que a prática não é incomum. Por essa razão, é preciso ter responsabilidade no exercício do poder. A acusação mais grave nem por isso prescinde de comprovação. Somente assim, será possível garantir civilidade ao processo. É preciso que todos os encarregados do manejo da investigação e processo ajam com honestidade, lealdade, impessoalidade e eficiência.

A deflagração de uma ação ou investigação gera expectativa na coletividade. O agente público por ela responsável tem o dever de eficiência, não podendo se perder em abusos e atos de ineficácia, sob pena de provocar frustração no seio da sociedade. No julgamento do HC nº 158.319 [5], ocorrido em 26/6/2018, de relatoria do ministro Gilmar Mendes, o STF teceu duras críticas ao indevido e açodado recebimento pelo TJ de SP, de uma denúncia manifestamente inepta: "O ministro Celso não se cansa de citar o clássico das Arcadas, de João Mendes, sobre o que deve ser a estrutura lógica da denúncia: denúncia inepta não deve ter trânsito porque fere o contraditório e a ampla defesa, fere a dignidade da pessoa humana. A própria Lei tomou esta cautela, e se não fizesse, teríamos que fazer esse constructo. 'Ah! Deixe tramitar o processo'. Por isso, é importante que esse Tribunal continue a fazer escrutínio severo das denúncias quando do seu recebimento. Já se disse: 'Deixa cair a caneta e depois se vê'. Não, não é assim. Não é bom que seja".

Certas posições são difíceis de ser assumidas. A covardia é cômoda, mas como dizia Churchill, "a coragem é a primeira das qualidades humanas, porque é a qualidade que garante as demais". No curto prazo, pode parecer desconfortável revelar a verdade, mas a longo prazo, ela acabará aparecendo. Comodidade e covardia não combinam com justiça.


[1] ADPF nº 130 – Ministro Relator Carlos Britto, julgado pelo Pleno do Supremo Tribunal Federal. Dje. 6.11.2009.

[2] Melo e Silva, Philipe BenoniI. Fishing Expedition: a pesca predatória por provas por parte dos órgãos de investigação. HTPP: \J.Infoartigosfishing-expedition-21.01.2017

[3] HC nº 84.409/SP – Ministro Relator Joaquim Barbosa, julgado pela 2ª Turma do Supremo Tribunal Federal. DJe, 19/08/2005.

[4] Carnelutti. Francesco. As Misérias do Processo Penal. Trad. José Antonio Cardinalle. Ed. Servanda, 1995, p. 39.

[5] HC nº 158.319/SP – Ministro Relator Gilmar Mendes, julgado pela 2ª Turma do Supremo Tribunal Federal. DJe, 15/10/2018.

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