Opinião

Box rate nos portos: em briga de elefantes, quem sofre é a grama

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10 de junho de 2021, 9h03

Recentemente, o Conselho Administrativo de Defesa Econômica (Cade), por maioria, manteve o já exaustivamente questionado posicionamento de considerar que configura infração à ordem econômica a cobrança do Serviço de Segregação e Entrega (SSE), popularmente conhecido como THC2.

Apenas para rememorar os fatos, no bojo da operação com o container, a atividade do operador portuário envolve a movimentação vertical (do convés ou porão do navio ao seu costado) e horizontal (movimentação em terra, do costado do navio ao portão do terminal). Por esse serviço, o operador portuário é remunerado pelo armador por meio do box rate.

A controvérsia, de maneira simplista, é saber se o serviço de segregação feito pelo operador portuário para que o Terminal Retroportuário Alfandegado (TRA) pegue a carga e leve até seu armazém está ou não incluída no box rate. No julgamento do PA 08700.005499/2015-51, entendeu-se que sim, o que resultou na aplicação de uma multa ao operador portuário de mais de R$ 9 milhões. Sem dúvida, quantia que impacta o fluxo de caixa de qualquer empresa que opere em solo tupiniquim.

Em linhas gerais, a fundamentação da condenação considerou que alguns dos custos do THC2/SSE já compunham o box rate, carecendo a cobrança de justificativa econômica razoável. A taxa, então, possuiria caráter discriminatório.

A jaboticaba brasileira entra em cena quando se verifica que a Agência Nacional de Transportes Aquaviários (Antaq), o ente responsável pela regulação do setor, desde 2012 ratificando a questão na Resolução 34/2019, entende que o SSE/THC2 não faz parte dos serviços remunerados pela box rate, o que por si só já fulmina, expressamente, o argumento de que não haveria justificativa econômica na cobrança.

É relevante ressaltar o contrassenso, que se configura quando operador portuário é punido por seguir uma determinação daquele ente que lhe regula, ou seja, em razão da disputa instaurada entre o Cade e a Antaq, que possuem posicionamentos diametralmente opostos, o particular é punido por agir de acordo com o ordenamento.

O fato é que o posicionamento mais recente da autoridade da concorrência desconsiderou a existência de diversos pronunciamentos judiciais, dentre eles a perícia feita no bojo do Agravo de Instrumento 0002345-09.2017.8.26.0562, que confirma a existência de um serviço adicional, e tantos outros acórdãos estaduais, federais e do STJ sobre o tema.

Ressalva-se, contudo, o voto divergente, carreado pela conselheira Lenisa Prado, que apontou a inexistência de comprovação de que a cobrança do SSE/THC2 tinha por fito criar vantagens anticompetitivos ou mesmo que a cobrança tivesse diminuído a concorrência, bem como ressaltou que não se trata de uma cobrança em duplicidade, ratificando que ao Cade não caberia agir como revisor de políticas públicas.

Fato é que decisões dessa natureza, especialmente quando há regulação da matéria pelo órgão competente, acabam por impactar negativamente o ambiente econômico e social.

Em termos econômicos, a decisão questionada nesse artigo diminui a segurança de se investir nesse segmento (sem falar nos custos, para os portos, decorrentes da revisão do equilíbrio econômico-financeiro dos contratos).

Primeiramente, porque seria difícil imaginar que os operadores portuários não cobrariam por um serviço adicional e que é efetivamente prestado. É desarrazoado concluir que um trabalho dessa natureza, que requer o destacamento de mão-de-obra especializada e equipamento, alocação de espaço físico e dispêndio de tempo, não remunerados no box rate, poderia não ser objeto de pagamento específico.

Em segundo lugar, como dito acima, existe uma norma editada pela agência reguladora que expressamente autoriza a cobrança, por entender que o SSE/THC2 não compõe a cesta básica de serviços e deve ser objeto de remuneração específica.

Quanto a esse ponto, argumenta-se que houve uma possível captura da agência reguladora que culminou na edição da resolução. Contudo, é interessante frisar que o ônus de eventual captura, nunca comprovada, não pode recair sobre o particular, o qual somente está cumprindo determinação daquele órgão que rege suas atividades. Utilizar-se do antitruste como política primária para resolver problemas de corrupção ou qualquer outro problema fora do âmbito da competição, é um tiro que sairá pela culatra [1].

De tudo quanto exposto, não é forçoso dizer que decisões como a proferida nos autos do PA sinalizam para o empresariado brasileiro, pelo menos para aqueles que investem em terminais portuários, que esse não é um segmento seguro para investir, diante das constantes divergências entre a autoridade da concorrência e o órgão regulador.

De outra banda, há um custo social altíssimo em decisões dessa natureza consubstanciadas no assoberbamento da máquina judiciária. Como dito acima, a decisão condenou o operador portuário em uma multa altíssima. Apesar de não ser possível recorrer administrativamente, a não ser por uma via restrita e integrativa, nada impede que o judiciário seja instado a se manifestar sobre o tema.

E foi, justamente, isso o que aconteceu. Pouco tempo após a decisão definitiva, a empresa condenada recorreu à Vara Federal da Seção do Distrito Federal questionando a decisão proferida. Não se teve acesso ao inteiro teor dos autos, tombados sob o nº 1007532-90.2021.4.01.3400, por se tratar de caso que tramita em segredo de justiça, mas se sabe que foi concedida a tutela cautelar solicitada para obstar o pagamento da multa até ulterior deliberação judicial.

Independente do desfecho que será adotado, é certo que a ida ao judiciário, após o esgotamento da esfera administrativa, implica custos adicionais, provavelmente não previstos pela empresa, e que impactarão nos custos da operação ao passo que o magistrado responsável terá que escolher entre analisar um caso que necessariamente depende da tutela jurisdicional com a celeuma aqui narrada, que poderia ser resolvida administrativamente.

Conforme apontado, há robusto lastro probatório que aponta para legalidade da cobrança efetuada sendo que o Cade seguiu em via diametralmente oposta mesmo diante de um posicionamento muito claro da Antaq sobre o tema. Assim, ao que tudo indica, a máquina judiciária, já sobrecarregada, foi chamada a se manifestar sobre algo que poderia ser resolvido com diálogo institucional.

É preciso rememorar que o Cade não é agência reguladora e nem pode fazer suas vias, avocando para si competências que não lhe são próprias. É preciso, então, dialogar com a Antaq a fim de que seja efetivamente apreciada a compatibilidade da política regulatória frente ao direito antitruste, mas, como resultado, requerendo ou solicitando às autoridades providências para o cumprimento da lei concorrencial [2].

Ao fim e ao cabo, é fundamental que o Cade e a Antaq entrem em sintonia, adotando posturas harmônicas. Do contrário, quem continuará sofrendo é o empresariado, a parte mais fraca nesse "duelo de elefantes".

 


[1] SHAPIRO, Carl. Antitrust in a time of populism. International Journal of Industrial Organization, Volume 61, 2018, Pages 714-748

[2] NETO, Caio Mário da Silva Pereira. FILHO, José Inácio Ferraz de Almeida Prado. Espaços e interfaces entre regulação e defesa da concorrência: a posição do Cade. Revista Direito GV, v. 12, nº 1, jan-abr 2016. São Paulo, p. 13-48

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