Direto do Carf

Interposição fraudulenta e ausência de dolo na jurisprudência do Carf

Autor

  • Diego Diniz Ribeiro

    é advogado tributarista e aduanerista ex-conselheiro titular do Carf na 3ª Seção de Julgamento professor de Direito Tributário Direito Aduaneiro Processo Tributário e Processo Civil doutor em Processo Civil pela USP mestre em Direito Tributário pela PUC-SP pós-graduado em Direito Tributário pelo Ibet e pesquisador do NEF da FGV/SP e do grupo de estudos de Processo Tributário Analítico do Ibet.

9 de junho de 2021, 8h01

O tema da interposição fraudulenta em matéria aduaneira configura um assunto riquíssimo no âmbito da jurisprudência do Carf, motivo pelo qual é reiteradamente abordado neste espaço[1]. Apesar da recorrência, continua sendo uma fonte inesgotável de discussões.

Spacca
Na coluna de hoje abordar-se-á, de formais mais detida, o Acórdão Carf n. 9303-008.721, veiculado pela 3ª Turma da Câmara Superior de Recursos Fiscais (“CSRF”), em 12.06.2019, em especial por conta da seguinte prescrição do voto vencedor: a infração por interposição fraudulenta independe da intenção do agente e dos efeitos do ato praticado.

A parte final do excerto acima descrito é assunto recorrente no Tribunal e tem como ponto de partida o disposto no art. 23, inciso V, §§ 1º e 3º do Decreto-lei n. 1.455/76[2]. A discussão gravita em torno da expressão “dano ao erário” ensejar ou não a necessidade de prova quanto a supressão de tributo para os casos de interposição fraudulenta. A respeito desse ponto, a jurisprudência do Carf é pacífica no sentido de que o bem jurídico a ser tutelado não é exclusivamente o Erário público, no sentido de acervo de recursos públicos e os interesses arrecadatórios correlatos, como uma análise literal do dispositivo poderia induzir, mas sim o controle administrativo-aduaneiro, ou seja, o poder de polícia da aduana brasileira em fiscalizar as operações de comércio exterior. Não haveria, portanto, necessidade de dolo específico (intenção de evasão fiscal), mas tratar-se-ia de infração de mera conduta[3], bastando, pois, a configuração da ocultação fraudulenta. Nesse sentido: Acórdãos Carf n. 3402-004.848, 3302-006.583, 9303-004.334 e 3401-003.092.

A questão que remanesce para debate nesse espaço, entretanto, é a parte primeira do excerto acima transcrito do Acórdão Carf n. 9303-008.721 (a infração por interposição fraudulenta independe da intenção do agente). Segundo o entendimento esposado na aludida decisão, a interposição fraudulenta seria um ilícito aduaneiro de responsabilidade objetiva, ou seja, que independeria do intuito do infrator, estando aqui o ponto controverso da decisão analisada.

Importante desde já registrar que a ausência de dolo específico para a configuração do tipo infracional não é sinônimo de ausência de dolo, haja vista que para configuração da interposição fraudulenta é fundamental restar provado a existência de fraude ou simulação, dois institutos jurídicos que pressupõe a intenção do agente para a sua própria configuração[4]. No caso, a fraude ou a simulação são perpetradas com o fito de burlar o controle aduaneiro, sob pena de mero erro no preenchimento de informações aduaneiras configurarem indevidamente o ilícito da interposição fraudulenta. Nesse instante merece destaque o seguinte trecho do voto vencedor[5] proferido no Acórdão em análise:

 

Em outras palavras, não há que se falar em "interposição presumida" e "interposição comprovada". A infração é uma só, por interposição fraudulenta, os elementos de prova hábeis a comprová-la são muitos.

 

O caso debatido pela CSRF era uma acusação de interposição presumida, o que, segundo a Relatora originalmente designada para o caso[6], pressuporia provas específicas (incapacidade financeira para suportar a operação) para fins de configuração da fraude na ocultação do terceiro, o real importador[7]. Convém, nesse momento, abrir um importante parêntese a respeito da distinção, textualmente refutada pelo voto condutor analisado, entre interposição fraudulenta comprovada e presumida.

De fato, como afirmado no trecho acima transcrito do voto em análise, a infração de interposição fraudulenta é uma só: ocultar, mediante fraude ou simulação, a existência de terceiros em operações de importação ou exportação. A questão, todavia, é que a legislação estabeleceu dois métodos para se provar a existência da fraude ou da simulação e, por conseguinte, para se comprovar a conduta dolosa do agente infrator. Um dos métodos normativos delineado para esse fim é amparado pela figura da presunção, nos termos do art. 3º, inciso VII e VIII da IN RFB 1986/2020[8] (antigo art. 4º, incisos I e II da IN 228/02).

Se não comprovada a origem lícita, a disponibilidade e a efetiva transferência dos recursos empregados na operação fiscalizada, o sujeito ostensivamente apresentado na operação de comércio exterior será, por presunção, qualificado como interposta pessoa, ainda que não se identifique quem é o real sujeito oculto na operação.

Percebe-se, portanto, que em verdade, o que o dispositivo normativo faz nesse tipo de situação é flexibilizar o ônus probatório da fiscalização mediante o recurso metodológico da presunção. A dispensa de comprovação do dolo quando da aplicação da presunção não implica, por sua vez, a sua inexistência. Permanece presente, ainda que de forma presumida, a intenção de burlar o controle aduaneiro, mediante fraude ou simulação.

Em contrapartida, em se tratando de interposição fraudulenta comprovada, o ônus probatório da fiscalização é maior, pois nesse caso, além de ter a responsabilidade de provar os ardis empregados para a configuração da fraude ou da simulação, também compete à fiscalização aduaneira indicar, precisamente, quem é o terceiro oculto na operação de comércio exterior objeto da fiscalização.

Portanto, há que se ter cautela na leitura da frase “a infração por interposição fraudulenta independe da intenção do agente” para que não se confunda uma hipótese legal de presunção na aplicação da sanção com o regime jurídico ordinário de comprovação da interposição fraudulenta, sob pena de se concluir, equivocadamente, que essa seria uma infração cuja responsabilidade poderia ser considerada “objetiva”.

Rememore-se que o Acórdão nº 9303-008.721 analisou hipótese de interposição presumida, cuja dolo do agente é presumido em face da investigação quanto à origem, disponibilidade e emprego dos recursos.

Por fim, em se tratando interposição fraudulenta comprovada, a desnecessidade de comprovação de um dolo específico de sonegação ou fraude fiscal não implica a irrelevância do elemento subjetivo na apuração da infração (e a necessidade da sua prova), elemento esse que necessariamente se encontrará presente nas dobras da configuração da simulação e fraude, requisitos necessários para a tipicidade infracional.

 


[2] Art. 23. Consideram-se dano ao Erário as infrações relativas às mercadorias:

(…).

V – estrangeiras ou nacionais, na importação ou na exportação, na hipótese de ocultação do sujeito passivo, do real vendedor, comprador ou de responsável pela operação, mediante fraude ou simulação, inclusive a interposição fraudulenta de terceiros.

(…).

§ 1o O dano ao erário decorrente das infrações previstas no caput deste artigo será punido com a pena de perdimento das mercadorias.

(…).

§ 3o As infrações previstas no caput serão punidas com multa equivalente ao valor aduaneiro da mercadoria, na importação, ou ao preço constante da respectiva nota fiscal ou documento equivalente, na exportação, quando a mercadoria não for localizada, ou tiver sido consumida ou revendida, observados o rito e as competências estabelecidos no Decreto no 70.235, de 6 de março de 1972.

[3] No âmbito Doutrinário: MINEIRO, Rodrigo. Introdução ao direito aduaneiro. São Paulo: Intelecto, 2018. p. 160.

[4] A título de exemplo, convém destacar o disposto no art. 72 da Lei n. 4502/1974, in verbis:

Art.72. Fraude é tôda ação ou omissão dolosa tendente a impedir ou retardar, total ou parcialmente, a ocorrência do fato gerador da obrigação tributária principal, ou a excluir ou modificar as suas características essenciais, de modo a reduzir o montante do impôsto devido a evitar ou diferir o seu pagamento. (grifos nosso)

[5] De autoria do Conselheiro Andrada Márcio Canuto Natal.

[6] Conselheira Tatiana Midori Migiyama.

[7] Acontece que, segundo o voto vencido, haveria prova da capacidade financeira do importador, o que, por sua vez, afastaria a acusação de interposição presumida. Nesse sentido, destaca-se o seguinte trecho do voto vencido:

Sendo assim, depreendendo-se da análise dos autos, entendo que restou comprovada a origem dos recursos para a operação, disponibilidade e transferência dos recursos empregados, inclusive pela leitura dos contratos de mútuo efetuados.

[8] Art. 3º O Auditor-Fiscal da Receita Federal do Brasil responsável pela execução do Procedimento de Fiscalização de Combate às Fraudes Aduaneiras poderá adotar, dentre outras que considerar necessárias, as seguintes providências, nos termos da legislação em vigor:

(…).

VII – intimar a empresa a comprovar seu efetivo funcionamento e sua condição de real adquirente, encomendante ou vendedor das mercadorias, inclusive mediante o comparecimento de sócio com poder de gerência ou diretor, acompanhado, se for o caso, da pessoa responsável pelas transações internacionais e comerciais;

VIII – intimar a empresa a comprovar a origem, a disponibilidade e a efetiva transferência, se for o caso, dos recursos necessários à prática das operações; e

(…).

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    é advogado tributarista, sócio do Daniel & Diniz Advocacia e Consultoria Tributária, ex-conselheiro titular do Carf na 3ª Seção de Julgamento, professor de Direito Tributário, Processo Tributário e Processo Civil. Doutorando em Processo Civil pela USP e Mestre em Direito Tributário pela PUC-SP e pós-graduado em Direito Tributário pelo Ibet.

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