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Quem se lembra das discussões sobre o Plano Verão? Elas não acabaram

Autor

  • Elidie Palma Bifano

    é mestra e doutora em Direito Tributário pela PUC-SP professora no curso de mestrado profissional da Escola de Direito de São Paulo–FGV e nos cursos de especialização do Instituto Brasileiro de Estudos Tributários (Ibet) do Instituto Brasileiro de Direito Tributário (IBDT) e da Escola de Direito do CEU–IICS e advogada em São Paulo.

9 de junho de 2021, 8h01

Para quem desconhece ou não viveu esses tempos, desde a edição da Lei n° 6.404, de 15.12.1976, artigo 185, era compulsório o reconhecimento dos efeitos da inflação (modificação do poder de compra da moeda nacional) sobre os elementos do patrimônio líquido e os resultados do exercício das sociedades. A metodologia de reconhecimento da inflação se consubstanciava na chamada correção monetária das demonstrações financeiras, usualmente tratada como correção monetária de balanço, que permitia atualizar as contas do ativo permanente (imobilizado, investimentos e diferido), cuja contrapartida gerava uma despesa no resultado do exercício, e as contas de patrimônio líquido (capital, reservas e lucros acumulados), cuja contrapartida gerava uma receita no resultado do exercício. A correção monetária dos prejuízos acumulados gerava um ajuste devedor no resultado.   

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Analisada essa metodologia de ajuste das contas, conclui-se que somente a atualização do ativo permanente gerava efeitos em resultado, pois a atualização do patrimônio líquido se neutralizava, pelo débito/crédito das mesmas contas. O resultado devedor da conta de correção monetária de balanço era dedutível na apuração do lucro real das sociedades e o resultado credor era tributado como um ganho na inflação, o lucro inflacionário. O índice utilizado para se efetivar correção monetária de balanço era sempre índice oficial que representasse a modificação do poder de compra, um índice de preços.

Em 31/1/1989, a Lei n° 7.730 introduziu o chamado Plano Verão, com o propósito de instituir nova moeda, determinar o congelamento de preços e desindexar a economia e, com isso, revogou-se a correção monetária de balanço. O fato é que esse Plano não foi bem-sucedido, de tal sorte que poucos meses depois foi editada a Lei n° 7.799, de 10.07.1989, que reintroduziu a correção monetária de balanço a ser calculada com base no Bônus do Tesouro Nacional Fiscal (BTNF), cuja variação estava vinculada à Obrigação do Tesouro Nacional (OTN). 

Ocorre que por ocasião da transição entre os índices de inflação da OTN para o BTN houve um significativo expurgo de parcela real de correção monetária relativa aos meses de janeiro e fevereiro de 1989, utilizada para a fixação do valor da OTN. Em consequência, no ano-base de 1989 houve substancial aumento do valor dos tributos que incidiam sobre o lucro e o resultado, Imposto sobre a Renda da Pessoa Jurídica (IRPJ), Contribuição Social sobre o Lucro Líquido (CSLL) e, eventualmente, o extinto Imposto sobre o Lucro Líquido, por força do não reconhecimento dessa despesa necessária de correção monetária, visto que a inflação não estava contida.

Essa supressão de parcela da correção monetária ensejou uma avalanche de ações junto ao Poder Judiciário, nas quais se reivindicava diferenças de correção monetária do período (janeiro e fevereiro de 1989) com base no Índice de Preços ao Consumidor (IPC), adotado até a edição de Lei n° 7.730, por melhor representar a perda de valor da moeda. A matéria permaneceu indefinida por muito tempo, a despeito do Superior Tribunal de Justiça (STJ) haver reconhecido a procedência do pleito, admitindo a aplicação de reajustes que, entretanto, não atendiam o que os contribuintes julgavam como mais adequado.

O tema somente foi resolvido pelo Supremo Tribunal Federal (STF) quando do julgamento em Plenário, sob o rito de repercussão geral, Tema 311, dos Recursos Extraordinários n°s 208.526/RS, 256.304/RS, 215.811/SC e 221.142/RS, em 20.11.2013 [1], sob a relatoria do ministro Marco Aurélio, no qual se entendeu como inconstitucionais os artigos 30 da Lei n° 7.730 e 30 da Lei n° 7.799, concluindo que a correção monetária das demonstrações financeiras, no ano-base de 1989, deveria se pautar pela legislação revogada pelo Plano Verão. Em suma, eram aplicáveis à situação, o índice adotado anteriormente à Lei n° 7.730, o IPC, no caso de 42,72% em janeiro de 1989 com reflexo de 10,14% em fevereiro de 1989.

A partir do decidido, um sem-número de processos que tinham sua tramitação sobrestada, por força da repercussão geral, passaram a ser decididos, muitos inclusive em juízo de retratação, nos tribunais regionais federais e no STJ. Com o trânsito em julgado de suas decisões finais, as empresas que assim litigavam adquiriram o direito pleiteado nas correspondentes medidas judiciais de contabilizar essas diferenças de correção monetária verificadas no chamado Plano Verão e, via de consequência, promover os devidos ajustes nas bases de cálculo do IRPJ e da CSLL que, efetivamente, haviam sido recolhidos a maior em função desse expurgo inflacionário nos índices utilizados para fins de correção monetária do balanço.

As diferenças de tributos pagas a maior, decorrentes do inadequado índice de correção monetária, como decidido pelo Poder Judiciário, podem ser objeto de repetição, observadas as determinações legais. Para o exercício do direito de repetir não pode o contribuinte se olvidar de verificar a aplicação das seguintes regras pertinentes:

a) a correção monetária de 1989, uma vez reconhecida em sua inteireza, afeta a base de cálculo das correções monetárias de anos subsequentes, até o ano de 1995, quando essa metodologia de reconhecimento da inflação foi extinta (Lei n° 9.249, de 26.12.1995);
b) a correção monetária deve ser se efetivada, no caso do ativo imobilizado, sobre o valor de custo original de cada um dos bens, atualizado pela correção monetária de anos anteriores e ajustado por depreciações, exaustões e amortizações, também objeto de correção monetária, diminuído dos bens baixados no período e acrescido dos bens adquiridos nesse mesmo período. As contas de investimentos e diferido seguem metodologia similar;
c) a classificação dos bens em qualquer conta de ativo permanente deve considerar a intenção da empresa em relação ao destino do bem, de tal sorte que o desvirtuamento de intenção, comprovado por indicações subsequentes à contabilização, pode levar a uma glosa em relação ao tratamento dado, especialmente se o fruto da correção monetária é uma despesa;
d) o saldo devedor de correção monetária do permanente afeta o resultado do período, reduzindo-o, e assim também a base de cálculo dos tributos, por ser despesa dedutível, com reflexos não só no primeiro ano de sua contabilização, mas em anos subsequentes, até o ano de 1995.

A correção monetária era demonstrada em livro próprio, livro razão auxiliar, item a item, afora documentos confirmatórios de compras, vendas e baixas de bens e similares. Esse livro não se submetia a qualquer especial formalidade no registro de comércio. No caso de investimentos e ativo diferido os elementos comprobatórios deviam ser os adequados ao tipo do bem.

O primeiro fato relevante a se comentar sobre o tema Plano Verão diz respeito à demora no reconhecimento do direito dos contribuintes, pelo Poder Judiciário, pois entre os anos de 1989 e 2013, ano da decisão em repercussão geral, 24 anos se passaram. A despeito de se terem introduzido no Direito Brasileiro instrumentos que objetivam unificar entendimentos, assim agilizando as decisões judiciais, como é o caso do recurso repetitivo e da repercussão geral, na hipótese sob análise, nada disso ocorreu, pelo que se observa. Afora isso, os contribuintes que tiveram seus processos sobrestados aguardaram/aguardam o trânsito em julgado para só então estarem investidos da condição de reconhecer tais perdas sob a forma de direitos de crédito, portanto, até este momento, exatos 29 anos!!!

Mal comparando, ao longo dos últimos trinta anos tivemos oito presidentes da República e 19 presidentes do STF, um cidadão pode ter começado a trabalhar e se aposentado, além desse prazo corresponder a três vezes o maior prazo de prescrição, expresso no artigo 205, do Código Civil, ou seja, 10 anos!!! Em termos de mudança de hábitos, hoje, diferentemente do ano de 1989, prescinde-se do lápis e da caneta para escrever e a escrituração mercantil e fiscal transformou-se em escrituração digital, sem falar que tempo, na atividade econômica, é peça chave do sucesso. Tudo isso a demonstrar que nenhuma justiça se fez, até agora, para muitos daqueles que buscaram amparo no Judiciário reivindicando o que indevidamente o poder público lhes retirara.

O segundo fato de relevo é que após, aproximadamente, 30 anos da proposição da medida judicial os contribuintes começam a habilitar-se à repetição do indébito e só a partir desse momento o Fisco irá se pronunciar sobre a adequação dos montantes pleiteados, seja através de precatório, seja através de compensação, esta última hipótese, certamente, a mais frequente. No caso a Secretaria da Receita Federal do Brasil (RFB) disporá de mais cinco anos para questionar essa compensação feita sob condição resolutória de posterior homologação. Se não houver concordância, por parte da autoridade, quanto a valores ou documentos, novo contencioso poderá nascer.

É certo que nem sempre os documentos que foram aportados no processo são esclarecedores para a RFB, quando se fala da comprovação de valores, restringindo-se os patronos das causas, em geral, a juntarem cálculos globais da correção monetária que se limitam a identificar montantes de correção monetária, muitas vezes sem suporte detalhado, por exemplo, das contas de ativo permanente e de patrimônio líquido. Não nos parece que o Fisco vá se contentar com tais provas e isso se verifica em outras situações similares de compensação em que são solicitados muitos documentos alguns, até mesmo, sem muita razoabilidade.

 De outro lado, por força do artigo 195, do Código Tributário Nacional, para os efeitos da legislação tributária os livros obrigatórios de escrituração comercial e fiscal e os comprovantes dos lançamentos neles efetuados devem ser conservados até que ocorra a prescrição dos créditos tributários decorrentes das operações a que se refiram. Com isso, é certo que os contribuintes que pleiteiam indébitos devem manter os documentos a eles referentes em sua integralidade, mas essa premissa pode tornar-se de difícil aplicação, do ponto de vista prático, à presente situação.

Esclarecendo, de forma geral é necessário que os contribuintes disponham, em eventuais fiscalizações voltadas a compensações efetivadas no âmbito do Plano Verão, no mínimo da demonstração da composição dos créditos pleiteados, bem como da comprovação dos valores que a compõe. Devem ser mantidos documentos contábeis referentes à correção monetária de balanço do ano de 1989 e subsequentes, até 1995, e aberturas de todas as contas de correção monetária. No que se refere aos tributos pagos nesse período, devem ser mantidas cópias de correspondentes declarações de rendimentos, valores pagos a maior em virtude da mudança de critério na apuração da correção monetária do balanço e documentos de arrecadação.

Esses detalhes e elementos que podem ser solicitados, tornam a tarefa de compensar mais preocupante, especialmente se ao longo desses últimos 30 anos:

a) o contribuinte teve dificuldades de manter arquivos centralizados nas próprias dependências, dado o seu volume, e os enviou para depósitos, às vezes mais de um, e as remessas não permitem perfeita rastreabilidade dos documentos enviados;
b) a pesquisa e consulta a esses arquivos vem sendo feita sem muito método e, não raramente, de forma desorganizada, o que pode afetar a ordem pela qual são armazenados e dificultar ou até impedir seu uso futuro;
c) o efeito do tempo sobre documentos e a ausência de adequada preservação do papel ou, no caso de uso de informática, o emprego de linguagens hoje totalmente abandonadas, especialmente no que ser refere aos controles de ativo imobilizado [2];
d) o fato de já terem se passado mais de cinco anos dos acontecimentos e a convicção, equivocada, de que tais materiais poderiam ser destruídos;
e) a dinâmica das reorganizações societárias e das compras e vendas de sociedades no mercado, o que pode ter permitido que tais documentos sejam vistos, sob a ótica de novos administradores, como destituídos de importância e abandonados;
f) a variedade de moedas pelas quais os itens de balanço devem ser convertidos, no tempo: cruzado, cruzado novo, cruzeiro, Unidade Real de Valor (URV) e Real.  

Dadas as dificuldades aqui apontadas, é de se destacar que os contribuintes, na ausência dos elementos que venham a ser exigidos pela fiscalização, podem louvar-se em outras provas, desde que admitidas em direito, como documentos encaminhados a bancos, clientes, fornecedores, consultores e, inclusive, documentação contábil enviada  a controladores no exterior. O mais certo é que todos se acautelem, pois já há notícias de glosas de compensação.

Deve-se ter em vista que a decisão da matéria, Plano Verão, em rito de repercussão geral, exigiu do STF o exame da existência de questão relevante "do ponto de vista econômico, político, social ou jurídico" e que  ultrapassava os interesses subjetivos do processo, nos termos do artigo 1035, §1°, do Código de Processo Civil. Ora, permitir que esse objetivo seja perdido por conta de exigências de difícil ou impossível consecução pelos contribuintes, implica afastar a segurança jurídica que ele buscou ao recorrer ao Poder Judiciário. Seria de extrema importância, dado o tempo passado, que as autoridades olhassem para essa situação com maior compreensão e razoabilidade sem, é claro, descumprir a lei, admitindo provas alternativas.

Do ponto de vista prático e pelo que já se pode ver, no caso das disputas acerca do reconhecimento da correção monetária envolvendo o Plano Verão, é que os contribuintes podem ter ganho a batalha no Judiciário, quanto ao seu direito, mas que certamente pode ser aberta uma nova batalha que se iniciará junto às autoridades fiscais por conta de apresentação de provas e de documentos, a qual, novamente, levará o Plano Verão aos tribunais. É dizer, a vitória obtida junto ao STF pode se tornar um nada para o contribuinte uma vez que ele não logrou recuperar os recursos financeiros que lhe foram subtraídos pelo poder público, por falta de atendimento às exigências da fiscalização.


[2] À época era comum a aquisição de programas de controle da correção monetária do imobilizado, dadas suas dificuldades.

Autores

  • é mestra e doutora em Direito Tributário pela PUC/SP, professora no Curso de Mestrado Profissional da Escola de Direito de São Paulo–FGV e nos Cursos de Especialização do Instituto Brasileiro de Estudos Tributários–IBET, do Instituto Brasileiro de Direito Tributário–IBDT e da Escola de Direito do CEU – IICS.

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