Tribuna da defensoria

Da prerrogativa de requisição do defensor público como instrumento de acesso

Autor

  • Renata Martins de Souza

    é defensora pública do estado de Minas doutora em Direito Público e mestre em Teoria do Direito pela PUC-MG e professora de graduação do curso de Direito.

8 de junho de 2021, 8h02

No intuito de franquear o acesso à justiça a todos, o artigo 134 da Constituição de 1988 (CF/88), concede à Defensoria Pública status de instituição essencial à função jurisdicional do Estado, incumbindo-lhe, como expressão e instrumento do regime democrático, fundamentalmente, a orientação jurídica, a promoção dos direitos humanos e a defesa, em todos os graus, judicial e extrajudicial, dos direitos individuais e coletivos, de forma integral e gratuita, aos hipossuficientes e socialmente vulneráveis.

Com vista à regulamentação do disposto no artigo 134 da Constituição, foi introduzida no ordenamento jurídico pátrio a Lei Complementar n° 80/1994, que organiza a Defensoria Pública da União, do Distrito Federal e dos Territórios e prescreve normas gerais para sua organização nos Estados, e dá outras providências. Em conformidade com o artigo 128 da citada legislação — que sofreu significativas alterações por meio da Lei Complementar n° 132/2009, constitui prerrogativa da Defensoria, dentre outras, a de requisitar, de autoridade pública ou de seus agentes, exames, certidões, perícias, vistorias, diligências, processos, documentos, informações, esclarecimentos e providências necessárias ao exercício de suas atribuições. Importante destacar que várias legislações estaduais pertinentes à Defensoria Pública reproduzem tal prerrogativa, no intuito de possibilitar atuação mais dinâmica e efetiva por parte de seus agentes.

Válido, por oportuno, nesse sentido, mencionar que o poder requisitório dos Defensores Públicos torna-se imprescindível, no sentido de propiciar o devido cumprimento da missão constitucional da instituição e o exercício das atribuições funcionais de seus membros; sendo certo que, não raras vezes, é avaliada a necessidade ou não de protocolar uma ação judicial através dos dados e informações obtidas por meio dos ofícios expedidos pela instituição, os quais poderão, por óbvio, subsidiar as ações individuais e coletivas intentadas em prol dos mais alijados da sociedade. Além disso, cumpre lembrar que, com frequência, a Defensoria logra êxito em alcançar a resolução de conflitos de forma extrajudicial, através da requisição de providências junto aos órgãos públicos, sobretudo no tocante às demandas de saúde e contestação de políticas públicas, propiciando, com isso, a satisfação imediata do assistido e a consequente diminuição da sobrecarga do Poder Judiciário.

A despeito disso, no curso do mês de maio deste ano, o procurador-geral da República (PGR), Augusto Aras, ajuizou no Supremo Tribunal Federal (STF) 22 ações diretas de inconstitucionalidade questionando dispositivos de leis estaduais e do Distrito Federal que garantem poder de requisição às Defensorias Públicas. Segundo o PGR, tais normas violam os princípios da isonomia, da inafastabilidade da jurisdição, do contraditório e do devido processo legal, previstos no artigo 5º, caput e incisos XXXV, LIV e LV, da Constituição Federal.

Alega, em síntese, o presentante do Ministério Público, que a prerrogativa confere à categoria dos defensores um atributo que os advogados particulares não têm: o de ordenar que autoridades e agentes de quaisquer órgãos públicos  federais, estaduais ou municipais  expeçam documentos, certidões, perícias, vistorias e quaisquer providências necessárias ao exercício de seu mister. Segundo Aras, a possibilidade desequilibra a relação processual, "notadamente na produção de provas, ao conferirem poderes exacerbados a apenas uma das partes, o que ofende o princípio da isonomia, do qual decorre o preceito da paridade de armas". Argumenta, ainda, o órgão ministerial, que no caso de defensores, o poder de requisição, por prescindir de autorização prévia, acaba por "subtrair determinados atos à apreciação judicial, o que contraria o princípio da inafastabilidade da jurisdição" (MPF, 2021).

Tais argumentos, contudo, não merecem prosperar, vez que conforme será visto a seguir, para que a Defensoria Pública possa honrar a característica que lhe foi atribuída pelo legislador (o infraconstitucional e o constitucional), imprescindível o exercício do seu poder requisitório.

Deveras, analisando a legislação pertinente à instituição, constata-se que constituem objetivos da Defensoria Pública: a primazia da dignidade da pessoa humana e a redução das desigualdades sociais; a afirmação do Estado democrático de Direito; a prevalência e efetividade dos direitos humanos; e a garantia dos princípios constitucionais da ampla defesa e do contraditório.

Assim, calcada na expansão da cidadania, além de prestar o serviço de assistência jurídica integral aos vulneráveis, o papel da Defensoria envolve, também, a conscientização e educação de seus assistidos em direitos e deveres, dando-lhes conhecimento acerca dos processos históricos, sociais e políticos de dominação que caracterizam a sociedade brasileira, assegurando-lhes condições de poderem se expressar, inclusive juridicamente, com base em mecanismos postos à disposição deles para combater essa desigualdade.

Com efeito, da análise da legislação extrai-se o imprescindível caráter transformador social da Defensoria, instituição responsável por garantir direitos e o próprio empoderamento de pessoas comuns, notadamente em virtude da possibilidade de fazer uso dos meios extrajudiciais de solução amistosa de conflitos. Semelhante é a leitura de Sadek (2014, p. 2), a qual assevera que:

"Não se trata apenas de um organismo incumbido de defender aqueles que não têm meios materiais de se fazer representar junto à Justiça estatal, mas de instituição com potencial de atuar em todo processo de construção da cidadania: da concretização de direitos até a busca de soluções, quer sejam judiciais ou extrajudiciais".

A propósito, no que concerne às significativas transformações operadas ao longo dos últimos anos sobre a matéria, preceituam Roger e Esteves (2018, p. 154) que, com o advento da Lei Complementar n° 132/2009, além de restar ainda mais evidenciada a separação ontológica entre advogados e defensores públicos, também foram ampliadas, significativamente, as funções institucionais de caráter eminentemente coletivo da Defensoria Pública. Afirmam os autores:

"A reafirmação da legitimidade para a propositura de demandas coletivas (artigo 4º, VII, VIII, X e XI), a autorização legal para convocar audiências públicas (artigo 4º, XXII) e para participar dos conselhos de direitos (artigo 4º, XX) demonstram que a atuação funcional da Defensoria Pública não mais se encontra adstrita à defesa dos direitos subjetivos individuais das pessoas economicamente necessitadas. Com essa nova racionalidade funcional, a ideia simplória de que os defensores públicos seriam simples advogados dos pobres restou definitivamente soterrada". (SILVA; ESTEVES, 2018, p. 154)

À vista do exposto, percebe-se ser totalmente descabida a comparação entre as funções desempenhadas pela Advocacia privada e a Defensoria Pública  as quais exercem atividades distintas, sendo, inclusive, tratadas de maneira diversa pela Constituição Federal , não havendo que se falar, pois, em violação à isonomia. Convém mencionar, ainda, que a Defensoria também dispõe de legitimidade para atuar como custos vulnerabilis — guardião da vulnerabilidade —, complementarmente à atuação da advocacia privada, intervindo em ações que produzam efeitos em grupos de necessitados (CASAS MAIA, 2014); o que denota o caráter mais abrangente de suas atribuições.

Do mesmo modo, também não há que se falar em violação ao princípio da inafastabilidade da jurisdição, como afirma Aras, dada a abrangência do conteúdo de tal direito, bem como pelo fato de a Constituição atribuir à Defensoria a natureza de instância de resolução de conflitos sociais, quer seja no âmbito judicial ou mesmo na esfera administrativa. Ou seja, a função de assistência jurídica integral atribuída à Defensoria não encontra-se restrita ao plano judiciário, compreendendo também a prestação de serviços jurídicos extrajudiciais; revelando-se, pois, o poder requisitório um expediente prático e necessário para que o defensor se ocupe da resolução do conflito de seu assistido. Cumpre ter presente, ainda nesse ponto, o fato de que o Judiciário não possui o monopólio da resolução de conflitos, de produção e distribuição do Direito e que o princípio da inafastabilidade da jurisdição compreende não apenas o acesso à justiça, mas também a possibilidade de o indivíduo se valer de todos os meios pelos quais possa reivindicar seus direitos e/ou resolver seus litígios.

Importante destacar, também, que o exercício da citada prerrogativa além de efetivar a assistência jurídica integral e gratuita por parte dos mais necessitados, também concretiza a garantia da razoável duração do processo, a qual também encontra amparo no texto constitucional.

Sob essa perspectiva, torna-se possível afirmar que a insurgência por parte do Ministério Público com relação à prerrogativa consistente no poder de requisição da Defensoria objetiva, ao que tudo indica, neutralizar a capacidade de atuação da instituição, apesar de a mesma figurar, no bojo da Constituição como a responsável por dar visibilidade e voz aos vulnerabilizados e excluídos do sistema. Esse é o sentido que se extrai da obra Defensoria Pública e Encriptação, por meio da qual a autora Camila Rezende Silveira Dantas, sob a ótica da teoria critica constitucional desenvolvida por Sanín Restrépo, pondera que:

"A encriptação engendrada no papel desempenhado pela Defensoria Pública revela-se como mais uma engrenagem de neutralidade do conflito (da política, da democracia) e da manutenção do sistema, contrariando os objetivos normativos propostos em contrapor à exclusão social e representar ativamente na busca por desenvolvimento social (contraponto ao desenvolvimento econômico)" (DANTAS, 2021, p. 166).

Em linhas gerais, imperioso reconhecer que a improcedência das ações que atacam a prerrogativa da Defensoria Pública é medida que se impõe, dada a constatação de que a mesma não implica violação a princípios constitucionais, sustentando-se a requisição diante da necessidade de o Defensor Público exercer seu mister com o fim de alcançar objetivos sociais que não encontram-se inseridos nas metas da advocacia privada e de promover, prioritariamente, a solução extrajudicial dos litígios.

Com efeito, sob pena de incorrer em inaceitável retrocesso, o que se espera do julgamento de tais ações é que seja acolhido o argumento de que o poder de requisição da Defensoria figura como mais um instrumento apto a permitir que o assistido supere as dificuldades e obstáculos (na maior da parte das vezes, de natureza econômica e cultural) que se apresentam no seu caminho em busca da tutela de seus direitos.

Por fim, faz-se imperioso reconhecer, ainda, que a conduta do órgão ministerial denota clara afronta à atuação defensorial, com vistas a obstaculizar que a instituição alcance seus objetivos, além de evidente inclinação pela limitação do acesso à justiça por parte de grupos mais vulneráveis da sociedade, por meio do enfraquecimento das potencialidades da atuação institucional.

Referências bibliográficas
BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil, 1988. Texto constitucional de 5 de outubro de 1988, com as alterações adotadas pelas emendas constitucionais. Brasília: Senado Federal, 1988. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicao.htm>. Acesso em: Acesso em: 2 jun. 2021.

BRASIL. Presidência da República. Lei Complementar n° 80, de 12 de janeiro de 1994. Organiza a Defensoria Pública da União, do Distrito Federal, dos Territórios e prescreve normas gerais para sua organização nos Estados, e dá outras providências. Presidência da República, Casa Civil, Subchefia para assuntos jurídicos. Diário Oficial da União, 13 jan. 1994. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/lcp/lcp80.htm>. Acesso em: 2 jun. 2021.

CASAS MAIA, Maurilio. Custos Vulnerabilis constitucional: o Estado Defensor entre o REsp nº 1.192.577-RS e a PEC nº 4/14. Revista Jurídica Consulex, Brasília, ano XVIII, nº 417, jun. 2014.

DANTAS, Camila Cortes Rezende Silva. Defensoria Pública e encriptação: a busca da democracia e os vulnerabilizados. Belo Horizonte, São Paulo: D` Plácido, 2021.

ESTEVES, Diogo; SILVA, Franklyn Roger Alves da. Princípios institucionais da defensoria pública. 3. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2018.

MINISTÉRIO PÚBLICO FEDERAL (MPF), 2021. PGR questiona leis estaduais e distrital que garantem poder de requisição às defensorias públicas, Brasília: MPF, 28 maio 2021. Disponível em: < http://www.mpf.mp.br/pgr/noticias-pgr/pgr-questiona-leis-estaduais-e-distrital-que-garantem-poder-de-requisicao-as-defensorias-publicas>. Acesso em: 2 jun. 2021.

SADEK, Maria Tereza. A Defensoria Pública no Sistema de Justiça Brasileiro. 2014. Disponível em: <https://www.defensoria.ce.def.br/wp-content/uploads/downloads/2015/02/a-defensoria-publica-no-sistema-de-justica-brasileiro.pdf>. Acesso em: 2 jun. 2021.

Autores

  • Brave

    é defensora pública do Estado de MG, doutora em Direito Público e mestre em Teoria do Direito pela PUC-Minas, professora de graduação do curso de Direito, membro da Câmara de Estudos Institucionais e Estudos de Controle de Constitucionalidade da Defensoria Pública do Estado de Minas Gerais.

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