Opinião

Cena e contracena
(em memória de Camila Amado)

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8 de junho de 2021, 15h06

Na década de 70[1], era comum nos teatros, ao final do espetáculo, um ator vir para a boca de cena pedir a atenção dos espectadores antes de se retirar. Em seguida, lia um manifesto de protesto que invariavelmente terminava com o brado: “Abaixo a ditadura!” No dia seguinte, o ator recebia uma intimação da Polícia Federal para prestar esclarecimentos na Censura ou no Sops, que era o Dops federal.

Spacca
Acompanhei muitos atores e atrizes chamados para depor. Uma vez fui chamado para acompanhar Camila Amado[2] numa dessas investidas da censura. Ela criticara a censura numa entrevista que dera na mesma época em que atuava numa novela de sucesso da Rede Globo.

Camila é filha da grande educadora Henriette Amado e de Gilson Amado que, entre outras atividades intelectuais, presidiu a TVE nos primórdios da sua implantação. Produto, portanto, de duas inteligências rebeldes. A atriz tinha um temperamento forte e não era muito de seu feitio conciliar com essa gente que estava patrulhando os artistas. Mas era preciso ter um certo jogo de cintura para fazer encerrar aquele expediente que era tão-somente para intimidar. Só teria consequências se o depoente desse margem a isso. Portanto, a bola estava conosco.

Eu não tinha nenhuma intimidade com Camila, embora conhecesse o seu trabalho e mais ou menos o seu temperamento. Fomos para o Setor de Censura da polícia que, naquele tempo, funcionava no velho prédio do Ministério da Justiça, na rua Senador Dantas, esquina com a rua Evaristo da Veiga. Logo na chegada, percebi que o clima era favorável. A escrivã era assídua telespectadora da novela e simpatizava com a personagem de Camila. O delegado também era francamente simpático, pelas mesmas razões.

Mas Camila não estava muito conformada com a necessidade de conciliar e por não poder repetir as opiniões que expressara na entrevista. O depoimento seguiu tenso, e eu intercedia discretamente para corrigir uma ou outra imprecisão. À medida que o tempo e o assunto avançavam, Camila ia se soltando e às vezes escorregava em afirmações, digamos, perigosas para o fim a que nos propúnhamos naquele cenário, o que, evidentemente, aumentava a minha tensão e a obrigação de interceder mais fortemente, correndo o risco até de ser advertido.

O clima, porém, era muito favorável e, definitivamente, os dois policiais queriam ajudar. Assim, a tarefa foi cumprida e o depoimento, lido e assinado. Camila ainda deu autógrafos para os policiais e seus familiares.

Em seguida, descemos. Já estava escuro e acompanhei minha cliente até um táxi. Com a porta aberta, antes de entrar, Camila Amado me olhou e disse: “Obrigada, doutor. Gostei muito de contracenar com você.” E entrou no táxi, deixando-me perplexo e exausto. Tempos mais tarde nos tornamos amigos para o resto da vida.

 


[1] Trecho do livro O que é ser advogado, de Técio Lins e Silva (ed. Record, p. 137).

[2] A atriz morreu no último domingo (6/6), aos 82 anos.

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