Opinião

Remoção do machado de Xangô do logo da Fundação Palmares: laicidade para quem? 

Autores

  • Raique Lucas de J. Correia

    é mestrando em Desenvolvimento Regional e Urbano pela Universidade Salvador (UNIFACS) membro do Grupo de Pesquisa Políticas e Epistemes da Cidadania (GPPEC/UNIFACS/CNPq).

  • Marta Gama

    é doutora e mestra em Direito Estado e Constituição pela Universidade de Brasília (UnB) membro do Grupo de Pesquisa Políticas e Epistemes da Cidadania (GPPEC/CNPq) e membro da Comissão de Precatórios e da Comissão de Educação Jurídica da Ordem dos Advogados do Brasil – Seccional Bahia (OAB/BA).

8 de junho de 2021, 6h34

Recentemente, o presidente da Fundação Cultural Palmares, Sérgio Camargo, anunciou por meio das mídias sociais um concurso para alterar o logotipo da instituição. Segundo ele, o símbolo atual viola o Estado laico, vez que faz alusão ao machado de Xangô, um dos orixás do Candomblé.

A Fundação Palmares foi criada em 22 de agosto de 1988, tendo por finalidade "promover a preservação dos valores culturais, sociais e econômicos decorrentes da influência negra na formação da sociedade brasileira", conforme redação dada pelo artigo 1º da Lei Federal 7.668/88. Uma das principais manifestações dessa ancestralidade negra na cultura brasileira encontra-se exatamente no culto às divindades de religiões de matriz africana.

Após mais de três séculos de tráfico negreiro, cerca de 4,8 milhões de africanos foram trazidos ao Brasil. Entres eles, povos iorubás, quimbundos, fons, congos e diversas outras etnias, cada uma com suas práticas e rituais sagrados. Aqui, essas crenças foram se misturando dando origem a novos seguimentos de fé, como o Candomblé, Umbanda e Jurema, cada qual formando sua própria cosmogonia, entre Orixás, Inquices e Vodus.

Mas se engana quem acredita que essas influências estão restritas apenas ao campo da espiritualidade. Das liturgias e cerimônias feitas nas senzalas, surgiram uma dança, um ritmo, instrumentos percussivos e outras expressões artísticas e musicais que até hoje estão presentes na cultura brasileira. O frevo, o maracatu, o carimbó, o tambor de crioula, a capoeira. O afoxé, o berimbau, o agogô. O maxixe, o samba, o choro, a bossa-nova. Todas essas manifestações culturais estão diretamente associadas às celebrações religiosas e rituais praticados pelos africanos escravizados.

Gilberto Freyre, na obra Casa Grande & Senzala ressalta a importância da religiosidade africana como núcleo estruturador e estruturante da sociedade brasileira. Para ele, essas práticas místicas aos poucos começaram a penetrar em todos os domínios da vida nacional, desde a economia, a agricultura, a culinária e até a sexualidade do brasileiro. Conforme escreve o próprio autor: "na ternura, na mímica excessiva, no catolicismo em que se deliciam nossos sentidos, na música, no andar, na fala, no canto de ninar menino pequeno, em tudo que é expressão sincera de vida, trazemos quase todos a marca da influência negra[1].

Desse modo, o "Machado de Xangô" presente no logotipo da Fundação Palmares não só busca preservar a ancestralidade negra, como também reforça a importância da religião e cultura africanas no processo de constituição da sociedade brasileira, cumprindo, portanto, com os propósitos estabelecidos no artigo 1º da Lei Federal 7.668/88, citado anteriormente.

Outrossim, o argumento segundo o qual a presença da simbologia religiosa no logotipo da instituição violaria o princípio da laicidade estatal não se encontra respaldado no constitucionalismo brasileiro. A própria Constituição Federal de 1988, em que se está consubstanciado tal princípio, invoca "a proteção de Deus" em seu preâmbulo. Há também menção a Deus nas cédulas do real. Para não citar a presença de crucifixos em repartições públicas, inclusive no Supremo Tribunal Federal.

Antes de mais nada, é preciso deixar bem claro que laicidade não se confunde com antireligiosidade ou laicismo. Um Estado laico é aquele que se mantém neutro em relação a todas as cosmovisões de mundo, fundamentando as decisões institucionais com base em razões públicas, isto é, não confessionais. Além disso, o Estado se compromete a ser imparcial, tratando todas as religiões igualmente e também garantindo os mesmos direitos àqueles que não professam nenhuma fé. Neste caso, as religiões podem participar ativamente da vida social e são vistas como instituições relevantes da vida privada e pública do Estado e dos seus cidadãos. O laicismo, por outro lado, é uma prática radical de intolerância à presença religiosa na esfera pública, proclamando total hostilidade à influência da religião nas instituições do Estado.

O Brasil, assim como a maioria das democracias ao redor do mundo, adota o modelo de Estado laico que em nada se confunde com o modelo laicista. Sendo assim, o símbolo de Xangô no logotipo da Fundação Palmares não viola o princípio da laicidade, já que não exclui ou diminui a garantia de direitos para quem pratica outras crenças nem induz qualquer indivíduo a adotar uma religião específica, muito menos tem qualquer incidência sobre decisões que venham a ser tomadas por esse órgão. Com efeito, o machado exerce apenas uma função simbólica, sem qualquer consequência prática que infrinja a neutralidade ou a imparcialidade no que concerne ao Estado laico brasileiro.

Em verdade, o que espanta neste caso não é tanto a suposta violação do princípio da laicidade estatal, mas que se utilize desse pretexto para se propagar o preconceito e a perseguição contras as religiões de matriz africana.

O machado de Xangô parece incomodar mais do que certos "privilégios" concedidos a outras religiões, como, por exemplo, a mudança da data de concursos públicos para que não sejam feitos aos sábados, já que este é considerado um dia sagrado para os adeptos da Igreja Adventista do Sétimo Dia. Isso para ficar em apenas um exemplo, já que a presença religiosa, sobretudo das religiões hegemônicas (católicos e evangélicos), ocorre em várias instâncias da vida pública nacional, até mesmo no poder legislativo, com a existência de um Frente Parlamentar Evangélica desde 2003.

Diante desta conjuntura, é preciso questionar para que serve a laicidade no Brasil e, mais do que isso, a quem serve. Que tipo de laicidade há no Brasil? Seria uma espécie de modelo híbrido? Quer dizer: Estado laico para determinados grupos religiosos e Estado laicista para a outra parcela? Pior: diante do tratamento desproporcional que as religiões minoritárias recebem em relação às religiões majoritárias, não seria o Brasil uma espécie de Estado confessional disfarçado? O fato é que, quase sempre, os cristãos costumam gozar de certas regalias, vantagens e liberdades que não se colocam para todos os credos, ou pelo menos não com a mesma equivalência. Talvez por isso, tanta aversão ao machado de Xangô, já que ele representa a justiça, o equilíbrio e a harmonia, curiosamente, os três atributos principais que um Estado laico deve ter para que seja qualificado como tal.


[1] FREYRE, Gilberto. Casa Grande & Senzala: Formação da família brasileira sob o regime da economia patriarcal. São Paulo: Global, 2006, p. 367

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