Opinião

Posição da Anvisa sobre farinha à base de cânhamo (por que figos não são unicórnios)

Autores

  • Rafael Arcuri

    é advogado consultor na Madruga BTW diretor executivo da ANC (Associação Nacional do Cânhamo Industrial) especialista em Direito Regulatório mestre em Direito e Políticas Públicas pelo UniCeub doutorando em direito pela UnB e secretário-geral da Comissão do Direito à Cannabis Medicinal e ao Cânhamo Industrial da OAB-DF.

  • Henrique Coelho

    é bacharel em Direito pela Universidade Federal de Ouro Preto sócio no escritório AFCTF Advogados especialista em Direito Processual Civil pela Universidade Anhanguera-Uniderp pós-graduado em Direito Público Global pela Universidad de Castilla - La Mancha (Espanha) doutorando e mestre em Direito pelo Centro Universitário de Brasília (UniCEUB) e diretor jurídico na Associação Nacional do Cânhamo Industrial (ANC).

8 de junho de 2021, 20h02

Uma incógnita no Brasil era por que temos roupas à base de cânhamo (planta do gênero Cannabis) sendo vendidas no mercado, mas não temos alimentos. Sementes, farinhas ou azeites sem canabinoides são comuns no exterior — inclusive na América Latina — e têm a mesma planta como origem. Ainda que o cultivo da planta permanecesse proibido, nada impediria sua importação, registro e comercialização no país.

Mas a resposta a essa incógnita ficou clara: a Anvisa entende que as suas próprias regras têm uma abrangência maior do que elas realmente têm.

A consequência disso é que o registro e comercialização de uma série de produtos ficam prejudicados. O mercado brasileiro fica menor, o consumidor tem menos opções, menos empregos são gerados e os investimentos interno e externo são impossíveis.

Em 2/5/2021, a Anvisa foi consultada sobre a possibilidade de registro de "farinha à base de cânhamo" que não contenha canabinoides ou que contenha canabinoides na quantidade de um a dez partes por milhão.

Essa pergunta foi realizada porque as normas específicas que regulam o registro de farinhas, na Anvisa, não vedam produtos à base de cânhamo. Ao mesmo tempo, não são encontrados, nos mercados, esses produtos. A hipótese era que alguma norma proibiria esse registro.

Contudo, o que foi constatado é que a agência extrapola os limites semânticos dos textos de suas regas para afirmar que esse tipo de registro seria impossível.

A consulta feita pressupunha duas situações diferentes: o registro de uma farinha de cânhamo sem canabinoides e outra, na qual a farinha conteria de um a dez partes por milhão.

A resposta da Anvisa, contudo, ignorou essa diferença. Afirmou apenas que, por ser uma espécie de Cannabis sativa L., o cânhamo sofrerias as restrições da "Lista E", da Portaria SVS/MS 344/98. De acordo com a portaria, uma vez que cânhamo é Cannabis sativa e esta está na "Lista E", são proibidos "no Brasil seu comércio, importação, exportação, manipulação e o uso, assim como de todas as substâncias obtidas dessa planta".

A existência de canabinoides não foi relevante para a proibição do registro da farinha.

A consequência prática disso mina qualquer justificação racional para a proibição do registro de alimentos à base de cânhamo.

Não foi considerada a comercialização da planta, mas de uma farinha. Assim, a parte da regra que fala de "comércio, importação, exportação, manipulação e o uso" da planta não se aplica. Farinha não é planta ou parte de planta.

Por outro lado, a regra tem um outro elemento em seu suporte fático hipotético, que são as "substâncias", que também teriam seu "comércio, importação, exportação, manipulação e o uso" proibidos. Contudo, não se trata de substâncias, uma vez que uma das hipóteses do questionamento apresenta uma farinha sem canabinoides.

Poder-se-ia argumentar que todas as substâncias da farinha de cânhamo seriam derivadas da Cannabis sativa e que por isso estariam proibidas. Mas isso geraria uma situação de completo caos regulatório, já que as proteínas do cânhamo podem ser isoladas, assim como as gorduras, por exemplo. Isso geraria uma proibição absurda, que se estenderia a todos os alimentos.

Quando falamos do registro de uma farinha, não estamos falando da planta. Quando falamos das substâncias, não estamos falando dos macronutrientes da planta, como os carboidratos, proteínas e gorduras.

Percebemos que, a partir de lastros semânticos e de coerência, a interpretação da Anvisa ou não faz sentido (vazia de significado) ou extrapola os limites das palavras contidas na regra, criando, por meio de uma interpretação equivocada, uma regra nova — o que é vedado pelo princípio da legalidade.

A partir da resposta da Anvisa, ficou claro que a abrangência semântica dos termos da regra aplicada pela agência não se sustenta quando tiramos o texto do caso apresentado e usamos o mesmo raciocínio para outros exemplos. Esses exemplos servem de lastros lógicos que limitam o significado das palavras contidas nas regras e, consequentemente, limitam a interpretação da agência.

Se argumentarmos que a aplicação da regra da Anvisa está correta, devemos também aceitar as consequências dessa aplicação. Na prática, isso significaria uma situação de ilegalidade de marcas grandes e consagradas que já trabalham com tecidos de cânhamo no Brasil, como a Levi’s, Osklen e Reserva, para citar apenas algumas.

Contudo, o cânhamo têxtil nunca foi, de fato, proibido no país. E isso serve de lastro para afirmar quais são limites da interpretação feita pela Anvisa e afirmar que ela está equivocada — já que a fibra seria, também, "planta" ou "parte da planta", pela interpretação da agência.

A superinterpretação é uma alusão ao livro do Umberto Eco, que afirma que, por mais que um determinado texto possa gerar dúvidas interpretativas, figos não são unicórnios. Trazendo para os trópicos, podemos afirmar que farinha não é planta.

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    é advogado, diretor executivo da Associação Nacional do Cânhamo Industrial (ANC), especialista em Direito Regulatório, mestre em Direito e Políticas Públicas e membro da comissão de Assuntos Regulatórios da OAB-DF.

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    é bacharel em Direito pela Universidade Federal de Ouro Preto, sócio no escritório AFCTF Advogados, especialista em Direito Processual Civil pela Universidade Anhanguera-Uniderp, pós-graduado em Direito Público Global pela Universidad de Castilla - La Mancha (Espanha), mestre em Direito pelo Centro Universitário de Brasília (UniCEUB) e diretor jurídico na Associação Nacional do Cânhamo Industrial(ANC).

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