Opinião

Os direitos indígenas nas mãos do Supremo Tribunal Federal

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7 de junho de 2021, 17h42

O Supremo Tribunal Federal está por julgar tema da maior importância para os direitos indígenas. Entre 11 e 18 de junho, seu Plenário virtual debaterá o estatuto jurídico-constitucional das relações de posse das áreas de tradicional ocupação indígena à luz das regras dispostas no artigo 231 da Constituição. Trata-se do julgamento do mérito do recurso extraordinário 1.017.365 (Tema 1.031), caso que envolve diretamente terra disputada pelo governo de Santa Catarina com uma comunidade indígena, mas terá efeito vinculante, com repercussão geral sobre a temática das terras indígenas (TIs) no Brasil.

Os povos indígenas e seus aliados defendem a integridade dos direitos originários. Seus adversários, capitaneados por governos estaduais e a classe ruralista, atacam com a tese do marco temporal: indígenas só poderiam reivindicar terras que ocupavam em 5 de outubro de 1988, data da promulgação da Constituição. O julgamento é decisivo para o rumo da matéria indígena nas próximas décadas, num contexto de sistemática violação dos direitos fundamentais desses povos, em que a paralisação das demarcações se soma à grave deterioração da fiscalização ambiental e das normas de proteção dos recursos naturais, e ao avanço concreto, predatório e violento de garimpeiros, madeireiros e grileiros sobre as terras indígenas.

A Indigenistas Associados (INA), associação independente de servidores da Fundação Nacional do Índio (Funai), foi admitida pelo STF como amicus curiae neste julgamento. Reunindo estudos de casos concretos e diversos exemplos etnográficos, a INA sustenta que a tese do marco temporal é um critério fictício e artificial, incapaz de abranger toda a complexidade da matéria. O estudo da INA demonstra a necessidade de submeter a hermenêutica jurídica ao escrutínio de casos singularmente considerados.

O caso-paradigma do RE, da TI Ibirama Laklãno (SC), de ocupação tradicional dos Xokleng, Kaingang e Guarani, estampa de maneira robusta e inequívoca uma sucessão de violências: usurpação do patrimônio indígena, diminuições do território indígena, vendas de parte dele, chacinas, remoções forçadas etc. Os estudos de casos apresentados pela INA são igualmente emblemáticos das diversas formas de violência que submetem os povos indígenas, afetando e moldando sua relação com as terras que ocupam, ou das quais foram desalojados.

Não deve o Poder Público proceder a interpretações restritivas, sem aferir as circunstâncias de interdição da fruição dos direitos originários, conforme o caso concreto. Para tanto, deve recorrer a perícias técnicas capazes de vasculhar fontes escritas e não escritas para elucidar o histórico de expulsões, massacres, confinamentos e remoções que costuma caracterizar a violência fundiária sofrida pelos povos indígenas.

Deve, também, atentar para históricos de depopulação causado por matanças e epidemias advindas da pressão colonizadora — como fatores que restringiram a circulação dos povos indígenas pelas terras —, obstaculizando fortemente sua reprodução física e cultural. É imprescindível, ademais, considerar a violência socioambiental, por meio do levantamento de episódios de desmatamento e degradação ambiental, identificando seus impactos para as presentes e futuras gerações. Estudos sérios desses tipos permitem identificar a reverberação das citadas formas de violência sobre dinâmicas sociocosmológicas, etnoambientais e econômicas de grupos indígenas: desarranjos, por um lado; estratégias de resistência e sobrevivência, por outro. Tudo etnograficamente detectável, na contramão de generalizações jurídicas à moda do "acabaremos tendo de demarcar Copacabana como terra indígena".

Nunca se viu algum grupo indígena estar vinte, trinta anos a reivindicar que se lhe demarque Copacabana, ou alguma outra área-símbolo da urbanidade brasileira. Sustentar uma reivindicação através das gerações não é algo que se faça sob o regime da brincadeira, da farsa, da fraude. O marco temporal, o "não demarcar nem mais um centímetro" não se ocupa dessa quimera. Muito noutra direção, ele é a expressão retórica de um avanço de fato sobre as terras indígenas.

Nos últimos anos, judicializações objetivando anular demarcações com base na tese do marco temporal viveram um boom, que veio acompanhado de um novo ciclo de violências fundiária, física e socioambiental. Interesses econômicos pressionam o conjunto inteiro de procedimentos demarcatórios, inclusive os mais antigos. Vejam-se as TIs Parabubure (MT), homologada em 1991; Apiaká/ Kayabi (MT), regularizada em 1991; Ribeirão Silveira (SP), homologada em 1987; e Karajá de Aruanã (GO), declarada em 1996. Não são poupadas nem mesmo as TIs destinadas à proteção de índios isolados, como nos casos Kawahiva do Rio Pardo (MT), Piripkura (MT) e Ituna/Itatá (PA).

Sobre isolados, a exigência de comprovação da presença física na data da promulgação da Constituição é particularmente absurda e grave. Há grupos de cuja localização o Estado brasileiro veio a tomar ciência após 1988, e outros que ainda carecem de confirmação. Para os isolados, a tese do marco temporal significa o fim da política de respeito ao isolamento voluntário, e uma sentença de, no mínimo, morte cultural.

Para além do caso dos isolados, deve-se reconhecer aqueles em que os modos de ocupação indígena diferem bastante do tipicamente civilista, envolvendo alternâncias, longas expedições, rotatividades  o que, no entanto, não retira o caráter da presença permanente numa determinada região. É imprescindível um diagnóstico que vá além dos recortes fotográficos em data determinada.

Como servidores da Funai, nos alinhamos firmemente com a defesa da Constituição Federal e dos direitos originários dos povos indígenas sobre as terras que tradicionalmente ocupam. Fundamental fazê-lo, sobretudo no quadro atual, em que o órgão indigenista tem se distanciado da sua missão constitucional, defendendo mais os interesses de proprietários rurais do que os direitos indígenas. A sociedade brasileira precisa saber que a Funai não tem a cara apenas do delegado da Polícia Federal que hoje a preside, desavergonhado em solicitar inquéritos criminais contra lideranças indígenas e, agora, também servidores do próprio órgão. Respiramos fundo e seguimos, com confiança na Justiça, na Constituição e, em particular, neste momento, no que sairá do Plenário virtual do STF.

* Este artigo expressa a opinião coletiva dos servidores da Funai associados à INA, que pediram para não serem identificados por temor de retaliações individuais por parte da direção da Funai.

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