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Marighetto: O debate italiano sobre a obrigatoriedade da ação penal

7 de junho de 2021, 18h19

Por Andrea Marighetto

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Os princípios em matéria penal contidos na Constituição da Itália concretizam a continuidade com os tradicionais postulados do pensamento liberal, embora com uma eficácia normativa diferente, no sentido de que, antes da adoção da Carta Constitucional, eram destinados a serem "desaplicados" em caso de conflito com as disposições contidas na parte especial do Código (pelo princípio da lex specialis derogat generali).

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Hoje, com a entrada em vigor da Constituição, a legislação penal deve se adequar não unicamente aos princípios constitucionais de natureza estritamente penal, mas ao complexo dos direitos ligados aos princípios da dignidade, igualdade e liberdade afirmados pela própria Carta Constitucional. Isso se refletiu e se reflete na própria atividade do juiz, que é, até na aplicação pura do Direito Penal, também garante e executor do princípio da liberdade e dos outros direito constitucionais de importante relevância social[1].

O princípio da obrigatoriedade da ação penal, na Itália, está previsto e definido pelo artigo 112 da própria Carta Constitucional, que literalmente dispõe que "o Ministério Público tem a obrigação de exercitar a ação penal". A Corte Constitucional Italiana reconhece que o princípio da obrigatoriedade da ação penal é de fato o "ponto de convergência" entre outros três importantes princípios e valores do ordenamento italiano: (i) o princípio de igualdade (artigo 3º da Constituição); (ii) o princípio da legalidade (artigo 25, § 2º da Constituição); (iii) o princípio da independência dos poderes ou independência institucional.

Em particular, parte da doutrina sustenta que a constitucionalização do princípio da obrigatoriedade da ação penal foi pensada exatamente para permitir a concretização do princípio da igualdade no sentido formal e substancial, assim como previsto pelo artigo 3º da  Constituição[2]. A justificativa histórica de manter a obrigatoriedade do exercício da ação penal deriva, portanto, da justificações de natureza jurídico-sociais como: a) a escolha de querer reforçar a independência do Ministério Público em relação ao possível "controle" por parte do ministro da Justiça; b) a de inserir uma forma de limite legal a toda essa independência — ou seja, inserindo a provisão sobre a obrigatoriedade da ação penal nos casos expressamente previstos pela lei[3].       

Calamandrei observa que o Ministério Público, na sua função preeminente de acusação no processo penal, deve observar o princípio da legalidade, concretizado nos brocardos latinos nullum crimen sine lege poenali e nulla poena sine iudicio. Assim como o juiz é vinculado à lei — e na argumentação da própria decisão deve seguir os ditados da lei, dentro dos limites da lei —, também o Ministério Público é sujeito ao mesmo princípio: no caso dos juízes, evidentemente para evitar o exercício abusivo da justiça; no caso do Ministério Público, para evitar a arbitrariedade da ação penal. O respeito ao princípio da legalidade é, consequentemente — continua Calamandrei —, diretamente conexo ao respeito ao princípio da igualdade,  e conclui ele  a lei deve ser igual para todos, precisando ser aplicada de forma legal e igualitária, inclusive pelas próprias autoridades que operam e fazem a aplicação do Direito[4].

O princípio da obrigatoriedade da ação penal representa, portanto, de um lado, a garantia direta pela coletividade sob o perfil do tratamento do indivíduo; e, doutro, a garantia indireta para os cidadãos enquanto juntamente ao princípio da independência do Ministério Público[5] concretiza a limitação da eventual ingerência dos outros poderes, em particular daquela do Poder Executivo. A ulterior garantia é de qualquer forma representada pela aplicação do princípio da legalidade, que impõe o controle formal e substancial da ação penal pelo próprio juiz. O respeito ao princípio da legalidade permite, portanto, a aplicação correta e igualitária gestão da tutela da obrigatoriedade da ação penal e da concretização do princípio da igualdade de tratamento e do acesso à Justiça, princípios cardeais do sistema democrático de direito (a tutela da pessoa e da coletividade).

Consequentemente, pelos altos valores que contêm, a previsão constitucional do princípio da obrigatoriedade da ação penal foi considerado desde sempre como um exemplo de sucesso, enquanto a sua presencia representou e representa a superação formal da concepção potestativa da Justiça. Todavia, principalmente, a partir da década dos anos 90, a aplicação deste princípio deu origem a um longo e profundo debate ainda atual  principalmente entre Magistratura e Política, sobre, de um lado, (i) a própria oportunidade de continuar a mantê-lo na Carta Constitucional; de outro, (ii) a necessidade de reconhecer e estabelecer "critérios de prioridade" na regulamentação da discrição do poder de exercício da ação penal.

O motivo deste debate surgiu para verificar se a previsão constitucional da obrigatoriedade da ação penal foi e é aplicada de forma efetiva e eficaz.  Em particular, a própria Magistratura lamenta que a "perfeição" da fórmula constitucional não foi sempre atendida, ao ponto que existem vários exemplos de arbitrariedade na aplicação deste princípio[6]. É exatamente esta "não efetividade" concreta acerca da aplicação do princípio da obrigatoriedade que levou à criação de uma comissão específica e extraordinária para a reforma do Ordenamento Judiciário.

A Comissão de reforma do Ordenamento Judiciário (cujo presidente foi o ministro Conso), por meio do Decreto Ministerial de 8 de fevereiro de 1993, reconheceu, e até declarou expressamente confirmando quanto já levantado pelo Prof. Zagrebelsky a objetiva impossibilidade de acionar e perseguir todos os crimes mesmo se determinadas fattispecie criminais fossem comutadas em simples ilícitos administrativos  em outra palavras, descriminalizando. É dizer: a impossibilidade de garantir a todos igual tratamento no exercício da ação penal pela Comissão foi sinônimo de arbitrariedade e de ineficiência da previsão constitucional[7].      

A famosa "Circolare Zagrebelsky de 1990"[8], de fato, concretizou a preocupação sobre esta impossibilidade e auspicou a necessidade de criar critérios de prioridade para a regulamentação do próprio exercício da ação penal, sempre no respeito do ditado constitucional estabelecido pelo artigo 112 da Constituição e da sua construção sistêmica no respeito dos outros princípios constitucionais da legalidade e da igualdade. Evidentemente, a preocupação da citada Circolare quis evidenciar a concreta incapacidade e impossibilidade (e isso é a causa do alto número de notícias de crime, das carências no organograma e na estrutura do Ministério Publico etc.) acerca do efetivo e eficaz exercício da ação penal.

Portanto, especialmente a partir da "Circolare Zagrebelsky" foram geradas várias discussões, também envolvendo a opinião pública, sobre (i) a efetiva capacidade do sistema a garantir e executar a efetiva obrigatoriedade da ação penal; e (ii) a capacidade da estrutura das autoridades de Justiça em definir as notícias de crime a serem perseguidas de forma prioritária, considerado o grau de gravidade e/ou ofensividade social de cada espécie de crime.

Outra importante discussão sobre a reorganização da capacidade e dos critérios das autoridades de Justiça em garantir e executar a efetiva obrigatoriedade da ação penal se concretizou na assim chamada "reforma do juiz único", de 1999[9], quando o Conselho Superior da Magistratura (CSM), em apurada situação de falta de recursos econômicos e estruturais, consolidou a sua posição em definir a importância de ter critérios de prioridade no exercício da administração da Justiça, mas sempre no respeito e na compatibilidade do geral princípio constitucional da obrigatoriedade da ação penal[10].

Essa posição foi também confirmada pela assim chamada "Circolare Maddalena", de 2007, que, evidenciando a carência de recursos econômicos e de estrutura na administração da Justiça, autorizou a não procedência da ação criminal contra determinadas fattispecie criminais, chegando em determinados casos até ao próprio arquivamento dos processos (quando, por exemplo, se procedeu com indulto).

A Circolare chegou até a ser definida como a Circolare do "indeferimento ou arquivamento generoso[11]". Em outras palavras, o critério expressou a vontade de promover uma forma de economicidade judiciária entre os critérios de prioridade no exercício da ação penal, mediante a adoção de modelos organizativos racionalizados dos casos.

Fora da pretensão de querer analisar todo o debate histórico italiano sobre a obrigatoriedade da ação penal e a aplicação dos critérios de prioridade no seu exercício, entendemos ser importante lembrar a discussão que surgiu subsequentemente ao Decreto do Presidente do Tribunal de Roma de 2013 e ao Decreto do Tribunal de Brescia de 2014, por meio dos quais de fato  foi constatada a necessidade de integrar urgente e significativamente o órgão dos Magistrados, além de individualizar critérios de determinação das prioridades na gestão da administração da Justiça.

É, consequentemente, opinião difundida por acadêmicos, juízes e advogados a necessidade de repensar o princípio da obrigatoriedade da ação penal, sendo que a adoção de quaisquer critérios de prioridade (discricionariedade, ainda que controlada ou limitada por lei) deveria de qualquer forma considerar as diversidades jurisdicionais, territoriais, sociais e econômicas de forma a garantir a igualdade substancial dos cidadãos em face da lei e do direito de acesso à Justiça[12].    

Clique aqui para ler a íntegra do artigo


[1] GROSSO, Carlo, Federico. Le grandi correnti del pensiero penalistico italiano, em Storia d’Italia, Annali 12. La Criminalità, Torino, 1997.

[2] PIZZORUSSO, Alessandro. L’organizzazione della giustizia in Italia. La Magistratura nel sistema politico e istituzionale, Torino, Einaudi, 1982.

[3] PIZZORUSSO, Alessandro. Op. Cit.

[4] CALAMANDREI, Pietro. Commissione per la Costituzione, em La Costituzione della Repubblica nei lavori preparatori dell’Assemblea Costituente, Segretariato Generale, VIII, Roma 1971, 1993.

[5]  KOSTORIS, Roberto. Processo penale e paradigmi europei. Torino, Giappichelli, 2018.

[6] PERI, Antonella. Obbligatorietà dell’azione penale e criteri di priorità. La modellistica delle fonti tra esperienze recenti e prospettive de iure condendo: un quadro ricognitivo. Forum di Quaderni Costituzionali, 2010.

[7] Veja-se, para um excursus na historia entre magistratura e politica, em particular durante os anos da década de 1990, se destaca BRUTI LIBERATI, Edmondo. Magistratura e società nell’Italia Repubblicana. Bari-Roma, Laterza, 2018.

[8] “Circolare Zagrebelsky” de 16 de novembre de 1990.

[9]  Cf. Decreto Legislativo n. 51 de 1998.

[10] PIZZORUSSO, Alessandro. Op. Cit.

[11] “Circolare Maddalena” de 15 de maio de 2007.

[12]  DI FEDERICO, Giuseppe. L’indipendenza e responsabilità del pubblico ministero italiano in prospettiva comparata, em Giurisprudenza Italiana, 2009.

[13] Na Itália, a carreira para a Magistratura é através de um único concurso publico, seja que o magistrado escolha de agir como ministério publico, seja que escolha de agir como órgão que julga, ou seja Juiz: ou seja, nos dois casos, se trata de funcionários pertencentes sempre à Magistratura, mas com funções diferentes, de um lado acusatória, doutro judicante. 

[14] DI FEDERICO, Giuseppe. Op Cit.

[15]  ZAGREBELSKY, Gustavo. Direttiva concernente criteri di priorità̀ nella conduzione delle indagini preliminari, pubblicata in Cass. Pen., 1991, 362 e ss.

[16] Art. 405 C.P.P. Italiano. (Trad. livre) “o Ministério Publico, quando não deve querer o arquivamento, exercita a ação penal, formulando a imputação […] através do pedido de reenvio a Juízo”  

[17] Art. 60 C.P.P. Italiano. (Trad. livre)  “Assume a qualificação de imputado a pessoa à qual é atribuído o crime no pedido de reenvio a Juízo […]”.   

[18] PERI, Antonella. Op. Cit.