Opinião

Master Chef: entenda a receita para um sarapatel jus jornalístico

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7 de junho de 2021, 10h20

Spacca
Li e vi o "espetáculo" que um jovem apresentador da TV Record (ver aqui) fez ao vivo. A notícia é autoexplicativa. Em nome do "ibope" e da espetacularização, informou ao vivo, com fones no ouvido e tudo, que a filha da senhora havia sido assassinada. Sim, ele fez isso.

A luz se apaga.

É claro que isso tudo tem explicação. Vejamos. Já em 1967, o francês Guy Debord escreveu La Societé du Spectacule (A sociedade do Espetáculo), antecipando as mazelas da fragmentação da cultura ocorrida nas últimas duas décadas. Como bem lembra Vargas Llosa — que, de certo modo, "revisita" a temática 45 anos depois, em seu La Civilización del Espetáculo —, Debord qualifica de espetáculo o que Marx chamou de alienação decorrente do fetichismo da mercadoria.

Debord dizia que, na sociedade do espetáculo, a vida deixa de ser vivida para ser representada. Espécie de vida de segunda mão. Vive-se "por procuração", como os atores da vida fingida que encarnam uma peça: "O consumidor real se torna um consumidor de ilusões."

Llosa chama de "civilização do espetáculo" ou de um mundo em que o primeiro lugar na tábua de valores vigente é ocupado pelo entretenimento e em que se divertir, fugir do aborrecimento, é a paixão universal.

Eis o "cara" da Record. Voilá! Bom… vejamos a seguir.

Com efeito. Não faz muito li notícia "bombástica" sobre "delação" de Sérgio Cabral atingindo o ministro Toffoli. Agora vai. O mundo vai acabar. Ora, há no mínimo seis erros nos textos jornalísticos, por falta de checagem básica de fatos e do aspecto jurídico da "denúncia". É como confundir vírus com protozoário. Cadê o rigor jornalístico? Textos que, no RS, chamamos de "Tosa de Porco" — muito grito e pouca (ou nenhuma) lã. Mas os repórteres foram para a arquibancada. Já ninguém se lembra deles. Mas os textos ficam por aí, arrastando correntes pelos corredores da rede.

Sigo. Não faz muito vimos notícias sobre vazamentos de dados da Receita Federal atingindo ministros do STF. Fora as delações vazadas antes de eleições, como no Paraná (a vítima foi Beto Richa, que viu sua vaga certa no Senado se esfumaçar), no Rio de Janeiro (beneficiou Witzel e prejudicou Paes) e o "caso Palloci" vazado exatamente por Moro, para sacramentar a vitória de Bolsonaro.

Todos lembram dos prejudicados; já ninguém lembra dos repórteres-jornalistas que publicaram as "bombas", todas falsas. Muita tosa de porco.

Bem agora, leio a "revelação bombástica" da revista Crusoé. Trata a pretensa reportagem de uma grande Operação, cujo nome curiosamente é "Faroeste", que já tem dezenas de pessoas denunciadas-processadas (trata do Tribunal de Justiça da Bahia). Pois agora a Operação sofre um "abalo", a partir de uma missiva escrita por uma desembargadora, de dentro da prisão, com "denúncias" que envolveriam o Procurador-Geral da República, Augusto Aras, seu pai de 89 anos, um advogado que nega tudo o que a juíza diz e a subprocuradora-geral, Lindôra Araújo.

Como estamos na sociedade do espetáculo — e o exemplo maior vem da "lava jato", em que parte da imprensa tinha "canal direto" (mas direto mesmo) com o juiz e os procuradores — mais uma vez essa ligação direta "funcionou". Uma carta de dezenas de laudas, escrita à mão (esse é o charme da coisa) traça uma autêntica conspiração. O relato é confuso e contraditório, como qualquer teoria conspiratória.

Rolaria R$ 1 milhão de propina e, para a concretização, o advogado já saiu pedindo a "fortuna" de R$ 6 mil para as despesas para voar da Bahia à Brasília. E assim a coisa vai.

O relato não tem pé nem cabeça. Mas, por que é publicada? Guy Debord explicaria. Vargas Llosa também. O que vale é o espetáculo. É o repórter deixar o microfone na "cara" da velha senhora, depois de a enchente levar a sua casa e a família, e perguntar: "— E agora, como a senhora está se sentindo?" E fixar o microfone em close até que o troféu exsurja: uma lágrima.

Voltando ao faroeste. O que salta aos olhos é que se trata, com fortes evidências, de alegações de uma ré que são vazias de comprovação idônea. Ela simplesmente disse o que disse sem, porém, trazer qualquer indicação material que demonstre nexo com a cúpula da PGR.

Veja-se. Não se discute o direito de qualquer acusado exercer sua ampla defesa. Ou seja, até aí, como ela é acusada em processo penal, digamos assim que seja válido. Porque, afinal, o réu pode falar o que entender conveniente em nome de sua defesa. Em longo relato, a ré cria uma narrativa… por carta. Só que estamos diante de um processo judicial. Com defesa estabelecida. Ao que consta da reportagem, a missiva é feita sem o advogado da ré.

Ora, hoje em dia, até a palavra do delator, se for isolada, vale tanto quanto uma nota de 3 reais. Nada. O STF está careca de assim dizer. O ponto preocupante é a revista divulgar um estrupício, como se verdade absoluta fosse.

De novo, o fato aqui vale mais por sua simbologia. Representa o que ocorre cotidianamente. Id quod plerumque accidit, diziam os romanos. De um lado, não surpreende ninguém a Crusoé divulgar "com exclusividade" a notícia: ela é mais um episódio que representa a espetacularização do Direito Penal.

Dar voz a alguém que tece ilações desacompanhadas de provas é absolutamente inaceitável. Imaginemos se a "moda pega". Em vez de os advogados fazerem a defesa, os réus escrevem missivas. Longas missivas. E publicar coisas assim sem filtros é como dar voz a Sérgio Cabral. E Palloci. Isso é deletério em todos os aspectos. O efeito, todos sabemos, é político. A intenção é política.

O que esses episódios todos têm em comum? Simples. Trata-se de mais um tempero para desacreditar Instituições. E, é claro, mostrar o quanto determinados setores da imprensa "combatem a impunidade". Na "lava jato" se viu bem isso. Aliás, todos os dias havia "bombas". Ao final, viu-se que o juiz era incompetente e ainda por cima suspeito. O réu ficou quase 600 dias por um juiz suspeito e que violou o princípio do juiz natural. E o que fizeram os mesmos setores da imprensa? Simples: botaram a culpa no STF. Quer dizer: o juiz pinta e borda e, aplicado o devido processo pela Suprema Corte, a culpa é da Constituição…!

Mas numa coisa a Crusoé acerta. O título é "Sarapatel com Aras". Bingo. Dá um bom máster chef jus jornalístico. Afinal, o conceito de sarapatel é, justamente, um guisado, uma "mistura de coisas sem ordem; confusão, balbúrdia". Pronto. Eis exatamente a notícia e a carta da desembargadora: uma mistura de coisas, uma balbúrdia. Um sarapatel. Como foi no caso da "delação" de Palloci. E o número de casos é infindável.

A imprensa precisa melhorar suas práticas. Lembro de Merval Pereira dizer, com semblante sisudo, nos poderosos espaços de mídia que ocupa, que caso o STF julgasse as ADCs 43, 44 e 45 procedentes (presunção da inocência), ocorreria uma balbúrdia (um sarapatel?), com a soltura de mais de 160 mil estupradores, corruptos, assassinos e quejandos. Mais de 160 mil. E isso foi repetido ad nauseam.

Eu mesmo tive que responder em várias entrevistas a perguntas como "o senhor não tem vergonha em defender uma ação (ADC) que vai soltar mais de 160 mil bandidos?" E não foi uma nem duas vezes. Por que se fez isso? Por que a imprensa assim agiu? Simples: para assustar a malta. E pressionar o STF.

Até hoje não pediram desculpas. Nem os repórteres me ligaram para dizer "Poxa, professor Streck, desculpe-me; o senhor tinha razão". Ainda vou nominar os repórteres…

E nessa matéria "sarapatelada" sobre a Operação Faroeste?

Parafraseando Lionel Schriver no livro Precisamos Falar sobre o Kevin (o menino que matou coleguinhas na escola com arco e flecha), penso que Precisamos Falar Sobre o Papel da Imprensa. Urgente. Se alguém tem dúvidas, pergunte a pessoas como Beto Richa, talvez a vítima que simboliza as "tosas de porco" da República.

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