Direito Civil Atual

A faculdade de Direito do Recife e a funcionalidade da comparação jurídica

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7 de junho de 2021, 15h31

Registra Luiz Sanchéz Agesta[1] que Aristóteles, a quem tendo sido assíduo atribuir-se a precedência no estudo do direito comparado[2], teria apontado que este se propõe a três objetivos fundamentais, a saber: a) proporcionar uma valoração empírica das constituições para deduzir desta comparação uma constituição modelo ou mais adequada; b) a análise comparativa se destina a propiciar que se induzam elementos comuns como princípios de uma teoria[3]; c) o contraste de uma ordem constitucional concreta, quando cotejada com outras, presta-se para uma compreensão melhor de suas singularidades.

Spacca
A Beviláqua[4], em sua cátedra pioneira, não restou alheia essa preocupação, tanto que, com base em Lambert, apontava para a presença de duas concepções específicas do direito comparado, consistentes na história comparativa e na legislação comparada.

Desvendando essa bipartição, há, primeiramente, a história comparativa, a qual, constituindo a ciência do Direito em seu sentido técnico, tem por missão descobrir mediante o estudo da série das relações de sucessão existentes nos fenômenos jurídicos, as causas explicativas daquelas, permitindo que se conheça as formas correspondentes das instituições nas diversas fases do desenvolvimento social e dos vários regimes econômicos. Por isso, a ciência do direito comparado não pode limitar o seu campo de investigação aos sistemas jurídicos em vigor, devendo estendê-lo para os sistemas das sociedades desaparecidas[5].

De uma outra perspectiva, tem-se a legislação comparada. Esta, por sua vez, encontra-se inclinada a um fim prático, atuando como um instrumento de revelação e aplicação do direito.

Entre nós, a questão alcançou maior desenvolvimento. Não obstante a sua gradativa substituição pela cátedra de direito internacional privado, o direito comparado volta à ribalta em 1931 com a instituição da Universidade do Rio de Janeiro pelo Decreto nº 18.952, de 11 de abril de 1931. Este diploma, no seu art. 32, dispôs, quanto à área do ensino jurídico, sobre a previsão de Curso de Doutorado, para o qual se inseriu as disciplinas de Direito Civil Comparado e de Direito Penal Comparado.

Essa inciativa — como se pode observar de Haroldo Valadão[6] — parece ter servido como leitmotiv para que o estudo do direito comparado pudesse progredir noutras instituições de ensino.

No Recife, veio a lecionar a disciplina Antônio de Andrade Bezerra, o qual, preocupado com o método de estudo do direito comparado, apontou algumas de suas funções[7], dentre as quais o conhecimento das legislações estrangeiras, a renovação dos estudos jurídicos e da influência na elaboração do direito interno.

Fê-lo não sem antes lançar uma visão crítica. Por isso, a despeito de reconhecer, na linha de uma parcela dos tratadistas do direito civil, que o método histórico-comparativo possui a função de propiciar o conhecimento das legislações estrangeiras, a este resultado não poderia ficar restrito. Melhor dizendo, seria um trabalho insuficiente o que estacionasse no exame simultâneo ou justaposto dos textos legais de diversos países.

Imprescindível ir-se além, comparando-se os princípios dominantes em cada um dos sistemas jurídicos cotejados. Dessa maneira, o estudo das leis e dos códigos não se realizaria de isoladamente, mas conectado com a percepção da doutrina e da jurisprudência e, portanto, da vida real de cada sistema jurídico[8].

Noutro passo, ressaltara o autor o escopo do estudo do direito comparado para propiciar a renovação dos estudos do ordenamento jurídico pátrio, o qual adveio na França do final do século XIX como uma reação ao método estéril da Escola da Exegese, que conduzia à uma imobilidade do direito escrito.

A ação fecunda do direito comparado seria de maneira a estimular a elaboração do direito nacional, tendo como missões naturais o renascimento do prestígio da doutrina e, igualmente, a de guiar e ativar o movimento da jurisprudência em estreitar a distância do direito estabelecido e a realidade. Essa tarefa, no dizer do autor, não poderia ser desempenhada com sucesso se o jurisconsulto não ultrapassasse o horizonte demasiadamente estreito do plano nacional[9].

Em seguida, chama atenção Andrade Bezerra para a circunstância de que, enquanto a função antes delineada assina ao direito comparado a missão de renovar direito pátrio, mediante a interpretação das normas em vigor (lex lata), não se deve desconhecer que, da mesma forma, àquele se reserva uma influência decisiva sobre as reformas legislativas (lex ferenda).

Desse modo, os estudos do direito comparado visam preparar as transformações do direito interno, servindo de bússola ao legislador nacional na sua missão política. Considerando-se que o valor dos institutos não depende somente da sabedoria e da atividade do legislador, mas sim, igual e densamente, da cultura intelectual que emana das universidades, a comparação jurídica seria um instrumento para realizar o contato entre os estudos jurídicos e os econômicos e históricos. Significa dizer que o direito comparado provê os elementos indispensáveis para o bom desempenho da tarefa de renovação formal do ordenamento jurídico.

O esforço em prol do ensino do direito comparado — e com a percepção de suas funções — prosseguiu na Faculdade de Direito do Recife, tanto que Ivo Dantas[10] destaca a existência, sob um prisma amplo, de dois grupos de objetivos ou finalidades da disciplina.

O primeiro, ao qual denomina de objetivos pessoais, projeta-se para uma satisfação intelectual do estudioso que se debruça sobre os sistemas jurídicos estrangeiros para investigar como os fatos sociais, econômicos e políticos estão sendo tratados por outros povos. Por sua vez, o segundo, que pode ser conhecido como profissional, encontra-se familiarizado à técnica e à política jurídica, dirige-se ao oferecimento dos “elementos necessários à análise, por parte dos operadores do Direito, para melhor compreensão de institutos jurídicos — sobretudo, aqueles que foram recepcionados pelo sistema nacional — existentes em outros ordenamentos, exatamente porque, queiram ou não, assistimos, nos dias atuais, a uma tendência de universalização dos conceitos no campo da Ciência jurídica”[11].

Sobreleva interessante a cautela que nos recomenda o autor, ao dizer que, no desenvolvimento dessa funcionalidade, há de se ter em conta, primeiramente, que não é o direito comparado que terá funções práticas, porém as suas conclusões, as quais serão utilizadas pelos legisladores, magistrados, advogados etc., para melhor compreender os fatos vivenciados numa determinada comunidade. Ao depois, salienta que uma referência à universalização não envolve a crença de que se possa transpor, sem mais nem mais, um instituto de uma sociedade para outra, sem considerar os condicionamentos inerentes aos diversos modelos jurídicos.

Essas conclusões — especialmente a última — são de enorme valia nestas plagas, para avivar que a adoção de um modelo estrangeiro há que pressupor, seja no plano do direito escrito quanto no da doutrina e dos tribunais, uma análise crítica, sob pena de uma tentativa de importação resultar, na prática, num contrabando jurídico, o que traz inconveniência e não benefício.

* Esta coluna é produzida pelos membros e convidados da Rede de Pesquisa de Direito Civil Contemporâneo (USP, Humboldt-Berlim, Coimbra, Lisboa, Porto, Roma II-TorVergata, Girona, UFMG, UFPR, UFRGS, UFSC, UFPE, UFF, UFC, UFMT, UFBA, UFRJ e UFam).


1]Curso de derecho constitucional comparado. 7ª ed. Madri: Universidade de Madri, 1980, p. 21.

[2] Mais uma notícia sobre a importância do estagirita para a comparação jurídica nos é fornecida por Susana de La Sierra (Límites y utilidades del derecho comparado en el derecho público. En particular, el tratamiento jurídico de la crisis económico-financeira. Revista de Administración Pública, n. 201, p. 72, setembro/dezembro de 2016), a qual salienta este haver cotejado determinadas constituições para identificar os seus elementos úteis. No entanto, observa que tanto em Aristóteles quanto em Platão se encontrava ausente o traço que caracteriza a aproximação metodológica-comparada, qual seja a argumentação racional no marco de uma aproximação sistemática real ou intelectual de diversos ordenamentos ou instituições jurídicas num contexto superior ao nacional.

[3] Os dois primeiros propósitos, na atualidade, se aproximam, ou mesmo se confundem, com a definição que nos é apresentada por García-Pelayo (Derecho constitucional comparado. 1ª ed. 3ª reimpressão. Madri: Alianza Editorial, 1993, p. 21) de direito constitucional geral, o qual vem a ser uma teoria geral do direito constitucional democrático-liberal, que se tornou possível graças à extensão do correspondente regime a todos os Estados civilizados, bem como da consequente unificação da imagem do mundo expressada numa espécie de direito constitucional comum.

[4] As funções da legislação comparada. Revista Acadêmica da Faculdade de Direito do Recife, v. 14, n. 1, p. 102-103, 1906.

[5] Nesse ponto, há uma coincidência com Angelo Piero Sereni que, escrevendo posteriormente, mas, igualmente, com base em Lambert, afirma que “a indagação histórica e o conhecimento da relatividade histórica dos fenômenos jurídicos constituem a premissa indispensável dos estudos de direito comparado. A contraposição entre sistemas jurídicos, e entre as instituições e normas particulares deles, chega a conclusões válidas e úteis somente se se funda no conhecimento e compreensão do clima histórico e social no qual cada um deles se desenvolveu, e daquele que atua em um momento determinado ” (la indagación histórica y el conocimiento de la relatividad histórica de los fenómenos jurídicos constituyen la premissa indispensable de los estudios de derecho comparado. La contraposición entre sistemas jurídicos, y entre las instituciones y normas particulares de ellos, llega a conclusiones válidas y útiles sólo si se funda en el que cada uno de ellos se ha desarrollado, y de aquél en el que opera en un momento dado. Función y método del derecho comparado. Boletín Mexicano de Derecho Comparado, n. 41, p. 334, janeiro/abril de 1961).

[6] O estudo e o ensino do direito comparado no Brasil: séculos XIX e XX. Revista de Informação Legislativa, v. 8., n. 30, p. 10, 1971. 

[7] Funções, objecto e methodo do direito comparado. Revista Acadêmica, vol. 32, ano XL, p. 32-37 e 42-45. Agradeço ao Professor Humberto Carneiro da FDR – UFPE, o qual, superando as dificuldades de pesquisa na pandemia, disponibilizou-me o texto em seu formato original.

[8] Aproximadamente duas décadas depois, esse ponto de vista repercutiu em Caio Mário da Silva Pereira (Direito comparado e o seu estudo. Revista da Faculdade de Direito da UFMG, v. 7, p. 37, 1955), ao apregoar que o direito comparado visualiza os sistemas jurídicos em sua integridade, de maneira a ter em consideração não somente a legislação, mas também a jurisprudência, o conhecimento do meio social, a prática contratual e a tendência da técnica jurídica.

[9] Explicitando o que se pode visualizar, nos tempos que correm, como uma preocupação consequencialista, acentuou o autor: “O estudo do direito comparado permitte ao jurisconsulto aproveitar as experiencias tentadas no estrangeiro; informar-se sobre o modo pelo qual ae divsrsas regulamentações dadas a uma mesma materia pelas legislações dos principaes paízes de semelhante civilização, se comportaram na prova definitiva da pratica; sobre os meritos e os defeitos que essa prova revelou; sobre os resultados economicos e sociaes de cada uma dessas regulamentações. Facilitar-lhe-á assim numa larga medida a descoberta das regras melhor adaptadas ás necessidade da sociedade contemporanea” (loc. cit., p. 35). Optou-se por manter a grafia constante e praticada ao instante no qual publicado o original.

[10] Teoria do processo e da história constitucionais. Uma análise epistemológica na perspectiva comparada. Curitiba: Instituto Memória, 2019. Vol. 1, p. 107-109. O autor – que, na docência, sempre procurou estimular o estudo do direito comparado, principalmente no Curso de Doutorado da FDR – UFPE – também escreveu o Direito Constitucional Comparado (Rio de Janeiro: Renovar), cuja primeira edição é de 2000.

[11] Loc. cit., p. 108.

Autores

  • Brave

    é desembargador do Tribunal Regional Federal da 5ª Região, professor titular da Faculdade de Direito do Recife (UFPE), doutor em Direito Público, membro do Instituto de Direito Administrativo Sancionador, sendo o coordenador da Comissão de Direito Sancionador Comparado, e realizou investigação ao nível de pós-doutoramento perante o Instituto Jurídico da Faculdade de Direito da Universidade Coimbra.

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