Embargos Culturais

"Sessão Especial de Justiça", de Costa-Gravas

Autor

  • Arnaldo Sampaio de Moraes Godoy

    é livre-docente pela USP doutor e mestre pela PUC- SP advogado consultor e parecerista em Brasília. Foi consultor-geral da União e procurador-geral adjunto da Procuradoria-Geral da Fazenda Nacional.

6 de junho de 2021, 8h01

O estado de exceção é período de anormalidade constitucional que se pretende recorrentemente regrar, limitar e nomear, com objetivos de normalização, em termos constitucionais e, no limite, também com balizas legais e regulamentares. Essa anormalidade na conjuntura de uma pretensa normalidade é sua característica mais marcante. Tem-se um permanente problema para a teoria do direito público.

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Há um dilema regulamentador, uma aporia, que acompanha a conceituação e a prática do estado de exceção, que de algum modo encontra-se confinado a fronteiras que supostamente abstrairiam a vontade política da vontade normativa, isto é, a ação política propriamente dita razão normativa. Além do que, como a experiência histórica tem apontado, o estado de exceção deslumbra aqueles que o decretam, e que o pretendem definitivo. As experiências da Alemanha nazista, do franquismo, do salazarismo, do fascismo, da França de Vichy e do Estado Novo, para nomear apenas alguns, são exemplos emblemáticos dessa assertiva.

Historicamente, o papel do poder judiciário no estado de exceção é relegado à mera repetição de fórmulas supostamente legais. O funcionamento da justiça (sic) na Alemanha Nazista, e a atuação de um juiz celerado, Roland Freisler, ilustram bem a assertiva. O tema é recorrentemente tratado no cinema. Costa-Gravas, cineasta grego naturalizado francês, enfrentou a questão em vários filmes, a exemplo de "Z", de "Estado de Sítio", bem como de "Sessão Especial de Justiça".

Este último, rodado em 1975, é especialmente intrigante, justamente porque revela a concepção de um sistema judiciário que em nome de uma imaginária razão de estado deixa de lado os princípios mais elementares da tradição jurídica ocidental. Refiro-me, mais objetivamente, ao fato de que o tribunal retratado no filme aplicou uma lei retroativa em matéria penal.

Os fatos teriam ocorrido durante a República de Vichy. Trata-se do Estado Francês, de 1940 a 1942, liderado pelo Marechal Philippe Pétain. Montou-se um modelo de colaboração com os invasores da Alemanha nazista, de triste memória. No sentido oposto, a Resistência Francesa, que inclusive contou com importantíssima participação popular. É um momento marcado por intenso heroísmo. Em Vichy (uma conhecida instância hidromineral), no entanto, governava-se de acordo com as determinações de Berlim. É nesse ambiente que Costa Gravas ambientou "Sessão Especial de Justiça".

As cenas se desdobram em 1941. Um oficial alemão fora assassinado em Paris, numa estação do metrô, por combatentes da Resistência. Os insurretos eram jovens. Em represália, o governo do Reich exigiu que as autoridades locais identificassem os agressores, punindo-os com severidade. Demandaram a pena de morte. Havia uma ameaça contida na exigência, no sentido de que franceses seriam executados, como represália, caso não se alcançasse suspeitos, para execução sumária. Ao governo francês deu-se um prazo fatal de menos de uma semana. Fixou-se inclusive o número de execuções: deveria haver seis mortes.

O alto comando do governo francês precisa, primeiramente, redigir e publicar uma lei, com o objetivo de criar um tribunal de sessão, prescrevendo, inclusive, penas retroativas. Há um conflito entre o ministro da justiça e o ministro do interior. Aquele se julgava competente para tratar do assunto. Recusava a concepção dessa lei, sobremodo porque teria defendido tese acadêmica argumentando pela impossibilidade de aplicação retroativa de leis. Pressionado, cedeu ao Marechal Pétain (que de resto não aparece no filme). Convencido de que uma razão de estado justificava a medida, reelaborou sua concepção do problema, que passou a ser um falso problema. Passou a defender esse tribunal. Seduzido pelo poder, rearranjou suas convicções jurídicas. É o velho tema dos intelectuais e do poder.

No próximo passo, após redigida a lei, o ministro buscou membros da magistratura e do ministério público para o início do funcionamento do tribunal. Costa-Gravas ilustra o tema do fascínio que o poder exerce sobre a burocracia tradicional, especialmente em épocas de exceção. Houve algumas recusas. Alguns magistrados e advogados aceitam os novos papeis, sempre movidos por interesses pessoais, que denunciam uma total distância para com parâmetros de decência. Sabem que é um tribunal forjado para executar inocentes.

A busca por supostos réus é trágica. Não se tinha a mínima noção de quem cometera o assassinato. Levam para o tribunal opositores que respondiam por delitos mínimos. Escolhem as vítimas mediante um odioso modelo de triagem. Havia uma predileção no indiciamento de judeus. A cúpula do governo fez com que os membros desse tribunal se vissem como soldados, no campo de batalha. A condenação, nessa lógica, era um esforço de guerra, doloroso, porém necessário. Entre nós, no Brasil, conhecemos um infame tribunal que funcionou na primeira fase do governo de Getúlio Vargas, e que contou, entre seus julgadores, com políticos da expressão de Francisco Campos. Esse tribunal organizou-se no contexto de um decreto assinado em 28 de março de 1931.

Em "A Sessão de Justiça" as sessões do julgamento se processavam a huis clos (portas fechadas). A expressão pela qual se denominam essas sessões (huis clos) é inclusive título de uma peça de Jean-Paul Sartre, escrita em 1944; refere-se a toda fórmula judicial que não passa de uma paródia. Tudo às escondidas. Havia réus que respondiam pela simples distribuição de panfletos, acusações que eram desprovidas de qualquer tipo de prova.

Costa-Gravas fotografou a montagem de uma guilhotina, o instrumento de morte que seria utilizado. Há nessa sequência uma referência muito nítida a procedimento historiográfico de retrocesso. O símbolo de uma resistência gloriosa, a guilhotina, que remete o intérprete à experiência dos jacobinos, torna-se também o símbolo de uma aquiescência reacionária infame, que remete o espectador às incongruências do tempo histórico.

"Sessão Especial de Justiça" é um filme atemporal, colocando problemas e dilemas civilizacionais que transcendem o tempo e o espaço geográfico do enredo. A República de Vichy é um momento histórico emblemático, no sentido de que permite que se denuncie a violência de regimes subservientes a opressores, e que justificam a servilidade no velho mantra da razão de estado.

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