Opinião

Anulação do lançamento por erro no regime de tributação afasta regra do CTN

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5 de junho de 2021, 6h09

De acordo com o artigo 173, II, do Código Tributário Nacional, "o direito de a Fazenda Pública constituir o crédito tributário extingue-se após 5 (cinco) anos, contados: […] II – da data em que se tornar definitiva a decisão que houver anulado, por vício formal, o lançamento anteriormente efetuado".

A leitura do referido dispositivo legal autoriza a interpretação literal de que, se a causa de anulação do ato de lançamento por decisão (judicial ou administrativa) for considerada um vício formal, a autoridade tributária poderá efetuar nova tributação a qualquer momento, independentemente do prazo já transcorrido desde os fatos geradores, pois o prazo decadencial somente seria contado após a data em que se tornar definitiva a decisão (no caso de processo judicial, da data do trânsito em julgado da sentença).

A contrario sensu, quando o vício que deu causa à anulação do ato de lançamento tributário não puder se enquadrar como vício formal, a regra do artigo 173, II, do CTN não se aplica e o prazo decadencial passa a ser contado pela regra do artigo 173, I, do CTN segundo o qual "o direito de a Fazenda Pública constituir o crédito tributário extingue-se após cinco anos, contados: I – do primeiro dia do exercício seguinte àquele em que o lançamento poderia ter sido efetuado".

No presente artigo, o estudo se dirige a caracterizar o tipo de vício que resulta na anulação do ato de lançamento quando decorra de erro na determinação do regime de tributação/apuração do IRPJ e da CSLL, como nos casos em que a Receita deveria ter praticado uma autuação pelo Regime do Lucro Arbitrado, mas o faz pelo Regime do Lucro Real.

Para ficar mais claro, o regime de tributação é a forma pela qual será enquadrada legalmente a apuração da base de cálculo e da alíquota do IRPJ, CSLL e demais tributos, no caso deste estudo.

Com efeito, se o ato de lançamento foi efetuado com base em regime diverso do que impunha a legislação tributária, na prática isso ocasiona a tributação indevida do contribuinte em bases de cálculo e alíquotas incorretas, elementos essenciais do ato de lançamento, nos termos do artigo 142, do Código Tributário Nacional.

No caso em estudo, a fiscalização efetuou o lançamento com base no regime tributário do lucro real, definindo as bases de cálculo e alíquotas, conforme a fundamentação que constou no Auto de Infração, conforme se verifica abaixo em relação ao IRPJ e à CSLL:

"IRPJ: artigo 24 e seu § 2º, da Lei nº. 9.249/95 e artigos 249, inciso II, 251 e parágrafo único, 278, 279, 280 e 288, e do RIR/99.

CSLL: artigo 2º e §§, da Lei nº 7.689/88; artigos 19 e 24, da Lei nº 9.249/95; artigo 1º da Lei nº 9.316/96 e artigo 28 da Lei nº 9.430/96; artigo 6º da Medida Provisória nº 1.8598/99 e reedições; e artigo 37 da Lei nº 10.637/02."

O correto, todavia, seria a tributação pelo lucro arbitrado, com fundamento no artigo 47 e seguintes da Lei 8.981/95; artigo 530, incisos I, III e VI, do Decreto 3.000/99; e artigo 44 da IN SRF 11/96, cujas bases de cálculo e alíquotas são específicas, conforme a seguir:

"IRPJ: artigo16, da lei 9.249/95, artigos 518, 532 e 537 do Decreto 3000/99, artigo 541 (alíquota de 15%) e artigo 542 (alíquota de 10% sobre BC – 60.000,00) do decreto 3000/99 (RIR/99).
CSLL: artigo 20, inciso III, da Lei nº 9.249/95, artigo 53, IN SRF nº11/96, artigo 57, da lei 8.981/95 e artigo 3º, da lei 7.689/88."

Nesse caso, a consequência da indevida aplicação do regime de tributação é que o tributo teria sido lançado em vista de base de cálculo e alíquota previstas na legislação do lucro real, quando na verdade deveria ter sido apurado em conformidade com as normas do lucro arbitrado.

Por outro lado, é de se perceber que o vício no ato de lançamento por erro no regime de tributação diz respeito à própria quantificação da tributação (base de cálculo e alíquota), o que é essencial à validade da exação, nos termos do artigo 142, do CTN.

Partindo desta irrefutável premissa, é preciso trazer ao debate o que efetivamente se considera na legislação tributária vício formal e vício material (substancial ou essencial).

Na doutrina, encontramos o escólio de Renata Elaine da Silva (In Curso de Decadência e de Prescrição no Direito Tributário. São Paulo: Noeses, 2013, p. 194-195), para quem:

"Uma vez que se referem à conformação do crédito, os vícios materiais dizem respeito à essência do lançamento, melhor dizendo, aos elementos que compõem o fato jurídico e a relação jurídica. Os quais são especialmente:

1) Ausência de hipótese de incidência, que corresponde a não comprovação de ocorrência de fato, considerando seus critérios material, espacial e temporal, em conformidade com as provas apresentadas;

2) Erro na formação da base de cálculo;

3) Erro na composição da alíquota aplicável;

4) Erro na composição do valor devido e de penalidade aplicada;

5) Erro na composição do sujeito passivo, incluindo a atribuição de responsabilidade" (grifos do autor)."

Por outro lado, também é necessário trazer à colação as definições adotadas nos julgamentos pelo Conselho Administrativo de Recursos Fiscais (Carf), senão vejamos:

Vício formal (artigo 173, II, CTN) Vício material (artigo 142, CTN)
Vício formal a que se refere o artigo 173, II do CTN é aquele verificado de plano, no próprio instrumento de formalização do crédito, que diz respeito a erros quanto à caracterização do auto de infração, relacionados a aspectos extrínsecos, como por exemplo: inexistência de data, nome da autoridade competente, matrícula, local de lavratura do auto, assinatura do autuante, autorização para nova lavratura de auto de infração, ou quaisquer outros erros que comprometam a forma do ato do lançamento (Proc. 10580.721374/2016-16, Ac. 1301002.975, Rec. de Ofício, Carf, 1ª S, 3ª C, 1ª TO, j. 11/4/2018). Se o defeito no lançamento disser respeito a requisitos fundamentais, se está diante de vício substancial ou vício essencial, que macula o lançamento, ferindo-o de morte, pois impede a concretização da formalização do vínculo obrigacional entre o sujeito ativo e o sujeito passivo. Os requisitos fundamentais são aqueles intrínsecos ao lançamento e dizem respeito à própria conceituação do lançamento insculpida no artigo 142 do Código Tributário Nacional, qual seja, a valoração jurídica dos fatos tributários pela autoridade competente, mediante a verificação da ocorrência do fato gerador da obrigação, a determinação da matéria tributável, o cálculo do tributo e a identificação do sujeito passivo (Proc. 10580.721374/2016-16, Ac. 1301002.975, Rec. de Ofício, Carf, 1ª S, 3ª C, 1ª TO, j. 11/4/2018).

O ministro Gurgel de Faria, do Superior Tribunal de Justiça, já decidiu monocraticamente, inclusive reconsiderando decisão anterior, em caso no qual se discutia a aplicação do artigo 173, II, CTN a uma situação de anulação do ato de lançamento por vício em seu fundamento, sendo afastada a incidência do dispositivo legal, por não cuidar de erro formal, senão vejamos:

"Trata-se de agravo interno de Parapanema S.A. contra decisão que, ao conhecer do agravo, com apoio em pacífico entendimento jurisprudencial, deu provimento do recurso especial da Fazenda Nacional, por violação do artigo 173 do CTN, para reconhecer a não ocorrência de decadência tributária.

[…]

O histórico processual revela erro quanto à invocação do artigo 173, II, do CTN, razão pela qual a decisão agravada deve ser reconsiderada e o recurso especial fazendária não conhecido.

[…]

Da tese de violação do artigo 173, II, do CTN

[…]

O lançamento, nos termos do artigo 142 do CTN, é atividade vinculada necessária à constituição do crédito tributário, consistente no 'procedimento administrativo tendente a verificar a ocorrência do fato gerador da obrigação correspondente, determinar a matéria tributável, calcular o montante do tributo devido, identificar o sujeito passivo e, sendo caso, propor a aplicação da penalidade cabível'.

Possível concluir, no contexto, que o vício formal, apto à anulação do lançamento, não pode estar relacionado com os elementos constitutivos do crédito tributário: fato gerador; matéria tributável; montante do tributo devido; identificação do sujeito passivo.

[…]

A título de esclarecimento, considerando as disposições dos artigos 9º e 10 do Decreto nº 70.235/1972, que dispõe sobre o processo administrativo fiscal, deve-se entender por vício formal o defeito verificado no auto de infração ou notificação de lançamento não relacionado à própria constituição do crédito tributário, como, por exemplo, erros referentes à localidade ou ao momento da autuação (inciso II do artigo 10), à correção do prazo oportunizado para impugnação (inciso V do artigo 10) ou quanto à indicação da matrícula do agente fiscalizador (inciso VI do artigo 10).

Assim, o vício de motivação do ato de lançamento, relacionado a erro na descrição do fato ou quanto à referência expressa da disposição legal infringida (matéria tributável), não autoriza a incidência da regra excepcional do inciso II do artigo 173 do CTN, porquanto trata de vício material do lançamento.

[…]

Ante o exposto, reconsidero a decisão agravada, e, com base no artigo 253, parágrafo único, II, 'a', do RISTJ, conheço do agravo para não conhecer do recurso especial da Fazenda Nacional" (AgInt nos EDcl no agravo em Recurso Especial nº 1.228.145 – SP, relator ministro Gurgel de Faria, 6/11/2018, grifos do autor)

Como se percebe, o vício na definição do regime de tributação por parte do Fisco é erro material grave, porque demonstra erro na aplicação da legislação tributária pertinente e impõe a apuração do tributo em nova base de cálculo e alíquota, o que poderia facilmente ser enquadrado também como um erro de direito, situação que inclusive impediria a revisão do ato de lançamento, conforme decidido em Recurso Especial Repetitivo pelo Superior Tribunal de Justiça, no qual bem ponderou sobre a diferença entre erro de fato e erro de direito, in verbis:

"Processo civil. Recurso especial representativo de controvérsia. Artigo 543-c, do CPC. Tributário e processo administrativo fiscal. Lançamento tributário. IPTU. Retificação dos dados cadastrais do imóvel. Fato não conhecido por ocasião do lançamento anterior (diferença da metragem do imóvel constante do cadastro). Recadastramento. Não caracterização. Revisão do lançamento. Possibilidade. Erro de fato. Caracterização.

(…)

6. Ao revés, nas hipóteses de erro de direito (equívoco na valoração jurídica dos fatos), o ato administrativo de lançamento tributário revela-se imodificável, máxime em virtude do princípio da proteção à confiança, encartado no artigo 146, do CTN […].

[…]

8. A distinção entre o 'erro de fato' (que autoriza a revisão do lançamento) e o 'erro de direito' (hipótese que inviabiliza a revisão) é enfrentada pela doutrina, verbis: "Enquanto o 'erro de fato' é um problema intranormativo, um desajuste interno na estrutura do enunciado, o 'erro de direito' é vício de feição internormativa, um descompasso entre a norma geral e abstrata e a individual e concreta.

[…]

'Erro de direito', por sua vez, está configurado, exemplificativamente, quando a autoridade administrativa, em vez de exigir o ITR do proprietário do imóvel rural, entende que o sujeito passivo pode ser o arrendatário, ou quando, ao lavrar o lançamento relativo à contribuição social incidente sobre o lucro, mal interpreta a lei, elaborando seus cálculos com base no faturamento da empresa, ou, ainda, quando a base de cálculo de certo imposto é o valor da operação, acrescido do frete, mas o agente, ao lavrar o ato de lançamento, registra apenas o valor da operação, por assim entender a previsão legal. A distinção entre ambos é sutil, mas incisiva.' (Paulo de Barros Carvalho, in 'Direito Tributário – Linguagem e Método", 2ª Ed., Ed. Noeses, São Paulo, 2008, págs. 445/446)

(…)

O erro de direito seria, à sua vez, decorrente da escolha equivocada de um módulo normativo inservível ou não mais aplicável à regência da questão que estivesse sendo juridicamente considerada (…)

(…) 10. Recurso especial provido. Acórdão submetido ao regime do artigo 543-C, do CPC, e da Resolução STJ 08/2008" (REsp 1130545/RJ, relator ministro Luiz Fux, Primeira Seção, julgado em 9/8/2010, DJe 22/02/2011, grifos do autor)."

Logo, a aplicação indevida de legislação tributária que gera o erro na adoção do regime tributário não se trata de vício formal, mas de erro material (substancial ou essencial).

Nessas circunstâncias, após a anulação, nova cobrança ocorreria apenas e tão somente se o agente fiscal procedesse com novo lançamento, nos moldes previstos em lei, desde que não decaído o direito da Fazenda, mesmo considerado todo o lapso temporal transcorrido na solução do processo, não sendo possível, assim, a aplicabilidade do artigo 173, II, do CTN.

 

Referências bibliográficas
MACHADO, Hugo de Brito. Curso de Direito Tributário. 26. ed. rev., atual. e ampl. São Paulo: Malheiros, 2005.

MELO, José Eduardo Soares de. Curso de Direito Tributário. 6. ed. rev. atual. São Paulo: Dialética, 2005.

MUSSOLINI JÚNIOR, Luiz Fernando. Processo Administrativo Tributário. Das decisões terminativas contrárias à Fazenda Pública. Baureri – SP: Manole, 2004.

PAULSEN, Leandro. Direito Tributário: Constituição e Código Tributário à luz da doutrina e da jurisprudência. 8. ed. rev. e atual. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2006.

SILVA, Renata Elaine da. Curso de Decadência e de Prescrição no Direito Tributário. São Paulo: Noeses, 2013.

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