Opinião

Litigância abusiva em ações de família: processos a serviço da violência de gênero

Autor

  • Lize Borges

    é advogada professora de Direito Civil de graduação e pós graduação especialista em Direito Civil pela Faculdade Baiana de Direito mestra em Família na Sociedade Contemporânea pela Universidade Católica do Salvador doutoranda em direito pela Universidade Federal da Bahia presidente da Comissão de Direito Internacional do IBDFAM/BA e presidente do Instituto Baiano de Direito e Feminismos (IBADFEM).

5 de junho de 2021, 6h34

Ofensas pessoais, ajuizamento de ações desnecessárias, disputa por guarda unilateral, ocultação de patrimônio, ameaças e intimidações são comportamentos comuns nos processos judiciais de família. Tais comportamentos constituem a prática da litigância abusiva, conduta atrelada à má-fé processual e com enfoque em questões de gênero — o que ainda é pouco debatido pelo judiciário brasileiro, mas bastante reconhecido no cenário internacional, sobretudo quando se trata de casos de violência contra as mulheres.

Em uma pesquisa feita nos Estados Unidos foram entrevistados diversos profissionais da área jurídica, bem como dez sobreviventes de violência doméstica [1] a fim de desenvolver materiais sobre litígios abusivos para a Suprema Corte de Washington [2].

Durante a mencionada pesquisa, foram feitas diversas perguntas aos entrevistados, dentre elas as possíveis táticas de litigância abusiva, tendo sido encontrados os seguintes resultados:

a) Busca pela guarda unilateral: parte dos advogados entrevistados destacou que a ameaça de busca da custódia dos filhos é uma estratégia comum e eficaz, que visa coagir e aterrorizar as sobreviventes em litígios;

b) Vitimismo do abusador: trata-se de um ataque preventivo, em que o abusador se coloca como vítima da situação e pode conseguir desviar a atenção de seu padrão de abuso. Segundo a pesquisa, várias sobreviventes notaram que seus agressores afirmam que elas promoviam falsas alegações de violência doméstica a fim de obter uma vantagem na disputa da guarda. Também sugerem que os abusadores encontram certo benefício ao se retratarem como vítimas, pois se apresentariam bem perante o tribunal;

c) Tornar o litígio longo, caro e constrangedor: restou identificado que os abusadores procuram prolongar o litígio e torná-lo mais caro e embaraçoso para as sobreviventes, causando prejuízos de diversas ordens, inclusive emocionais e financeiras. Dentre as práticas citadas, necessário destacar o ajuizamento excessivo de ações judiciais, propositura por motivos fúteis ou que visem revisitar questões já decididas, buscar o prolongamento e a continuidade do processo com remarcação de audiências, prazos e requerimentos, fazer parecer ter o intuito de resolver o litígio por meio de acordo, mas decliná-lo. Foram também encontradas questões como a divulgação de informações pessoais, íntimas e às vezes embaraçosas das sobreviventes, bem como o descumprimento de ordens judiciais obrigando-as a retornar ao tribunal para buscar o cumprimento da ordem.

d) Falsas alegações: prática adotada por agressores não apenas para tentar para desacreditar as sobreviventes em litígios, mas também para ameaçar os sobreviventes com a perda da guarda de seus filhos ou seus meios de subsistência. Dentre as práticas, destaca-se a falsa denúncia das sobreviventes aos serviços de proteção à criança [3], aos conselhos de classe para prejudicar a manutenção da licença profissional ou mesmo questionar sua capacidade civil, fazendo alegações infundadas sobre saúde mental, problemas ou questões de abuso de substâncias;

e) Ameaças ou retaliação contra terceiros: quando os abusadores ameaçam retaliar amigos e familiares ou advogados do sobrevivente. Essa tática tem o efeito de isolar a sobrevivente de sua rede de apoio porque teme que o agressor os prejudique;

f) Ameaças contra vítimas imigrantes: duas das entrevistadas são imigrantes e relataram que os agressores tentaram usar contra elas questões inerentes à imigração.

No ano de 2020, foi aprovada em Washington uma lei específica contra a litigância abusiva [4], geralmente perpetrada por agressores em caso de violência doméstica, sendo a conduta descrita pela legislação da seguinte forma:

"Indivíduos que abusam de seus parceiros íntimos e muitas vezes abusam dos procedimentos judiciais a fim de controlar, assediar, intimidar, coagir e/ou empobrecer o parceiro abusado. Os procedimentos judiciais podem fornecer um meio para o agressor exercer e restabelecer o poder e o controle sobre uma sobrevivente de violência doméstica muito depois do término do relacionamento.
O sistema legal involuntariamente se torna outra via que os abusadores exploram para causar devastação psicológica, emocional e financeira. Este uso indevido do sistema judiciário por abusadores tem sido referido como bullying legal, perseguição nos tribunais, abuso de papel e termos semelhantes. A legislatura considera que o termo 'litigância abusiva' é o termo mais comum e que descreve com precisão o problema" (Tradução livre).

Outra pesquisa no mesmo contexto foi feita na Austrália; ela detectou os litígios vexatórios e a violência por parceiro íntimo como formas de coerção e controle no âmbito do direito das famílias [5]. A pesquisa foi feita por meio da rede eletrônica de centros jurídicos para mulheres e diversos escritórios de advocacia familista na região de Camberra.

De acordo com a pesquisa, restou demonstrado que comportamentos de controle podem ser indiretos, sutis e psicologicamente traumáticos, envolvendo ameaças de dano, humilhação e insultos e abuso financeiro ou legal.

A pesquisa mencionada também revelou como procedimentos mais usuais da litigância vexatória:
a) tentar obter acesso a uma criança, quando houver suspeita de que a pessoa a tenha abusado sexualmente;
b) usar o processo para obter "vantagem" em relação à custódia da criança;
c) tentar impedir a liquidação de propriedades e ocultar os rendimentos financeiros;
d) intermináveis apelações, processos, atrasos em andamento e audiências;
e) rejeição contínua de ofertas justas e equitativas de acordo, fazendo com que o cliente "brigue" para resolução;
f) múltiplas tentativas de suscitar algum episódio de saúde mental para beneficiar o agressor.

Dentre os efeitos da litigância abusiva, a pesquisa alerta para os custos emocionais que podem envolver estresse psicológico grave, custos legais aumentados, crianças expostas a ambientes prejudiciais, sentimentos de depressão e opressão, desesperança e desespero, desencadeamento de episódios de saúde mental e perda de fé no sistema de Justiça.

Sabe-se que igualdade de tratamento entre homens e mulheres consiste em uma garantia constitucional, assim como o direito à ampla defesa, o contraditório e o devido processo legal, conforme prevê o artigo 5º, I, LIV e LV da Carta Magna. Contudo, a disparidade de gênero ainda é uma realidade em diversos aspectos, desde a desigualdade salarial ao acesso à justiça.

Em recente relatório divulgado pela ONU Mulheres [6], uma a cada cinco mulheres com idades entre 15 e 49 anos sofreram violências física ou sexual de seus companheiros nos últimos 12 meses. Mulheres no Brasil sofrem "múltiplas violências ou violências sobrepostas" [7], posto que são diuturnamente expostas a misoginia, intolerâncias, discriminações, assédios, isolamentos, dentre outros. Nas relações amorosas, o véu da intimidade encobre muitos enlaces que são fundados no poder e controle dos corpos femininos.

No âmbito das relações familiares, a Lei Maria da Penha (Lei 11.340/2006) inova ao conceituar como formas de violência doméstica não apenas a violência física  cuja constatação é mais aparente, como as violências sexual, psicológica, moral, sexual e patrimonial. No que tange à prática da litigância abusiva nas ações de família, deve-se ponderar acerca da utilização do processo judicial como instrumento para a prática de violências, sobretudo das violências psicológica [8], moral ou patrimonial [9][10].

Importante salientar que o Brasil é signatário de diversos tratados e convenções internacionais que visam a proteção das mulheres, dentre eles a Convenção sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação contra a Mulher (CEDAW  Decreto 4.377/2002). Em 2015, o Comitê sobre a Eliminação da Discriminação contra as Mulheres proferiu a Recomendação Geral 33 sobre o acesso das mulheres à Justiça, constatando uma série de obstáculos e restrições que impedem as mulheres de concretizar seu direito de acesso à Justiça, com base na igualdade, incluindo a falta de proteção jurisdicional efetiva dos estados partes em relação a todas as dimensões do acesso à Justiça [11].

A referida recomendação sinaliza que as mulheres devem contar com um sistema de justiça livre de estereótipos e um judiciário cuja imparcialidade não seja comprometida por pressupostos tendenciosos, sendo um passo crucial para a garantia de igualdade e justiça para vítimas e sobreviventes. O comitê recomenda expressamente que os Estados partes adotem medidas visando a conscientização e capacitação dos agentes do sistema de justiça e estudantes de Direito, visando incorporar a perspectiva de gênero em todos os aspectos do sistema de justiça.

Nesse aspecto, é possível afirmar que a perspectiva de gênero precisa ser observada, inclusive, em matéria processual, no sentido de eliminar as discriminações de gênero dos processos judiciais, sobretudo na seara familista. Advogadas atuantes na área vêm denunciando a prática da litigância abusiva nos processos judiciais [12], relatando situações em que as ações judiciais acabam por servir à continuidade da violência antes sofrida no seio da relação.

Consoante se verifica do artigo 139, I, II e III, do Código de Processo Civil, é dever do(a) magistrado(a) assegurar tratamento igualitário às partes, zelar pela duração razoável do processo, sendo possível prevenir ou reprimir qualquer ato contrário à dignidade da justiça, tendo o dever de indeferir postulações meramente protelatórias. Do mesmo modo, também cabe ao magistrado(a), de ofício ou por requerimento, indeferir as diligências inúteis ou meramente protelatórias, conforme artigo 370, parágrafo único do mesmo diploma legal.

Não obstante, a legislação procedimental dispõe de seção específica visando a responsabilização por danos processuais, em relação às partes que litigarem imbuídos na má-fé, elencando no rol taxativo do artigo 80 do Código de Processo Civil as hipóteses de má-fé processual, merecendo especial destaque a conduta daqueles que alteraram a verdade dos fatos, opuserem resistência injustificada ao andamento do processo, procederem de modo temerário em qualquer incidente ou ato do processo, provocarem incidente manifestamente infundado ou interpuser recurso com intuito manifestamente protelatório.

O artigo 81 do Código de Processo Civil já autoriza a sanção ao litigante de má-fé que consiste no pagamento de multa, bem como a indenização à parte contrária pelos prejuízos que sofreu, devendo arcar com os honorários advocatícios e com todas as despesas efetuadas.

Não se pode deixar de mencionar, ainda que em apertada síntese, a aplicação da responsabilidade civil tanto no âmbito privado  invocando os artigos 186, 187 e 927, todos do Código Civil que tratam especificamente sobre o dever de indenizar nos casos de violação ou abuso de direito, quanto na responsabilização estatal em relação a eventuais falhas verificadas na condução pelo sistema judiciário, com fulcro no artigo 37, §6° da Constituição Federal.

Diante do exposto, pode-se dizer que o ordenamento jurídico possui dispositivos suficientes para prevenir ou mesmo para punir a prática da litigância abusiva daqueles que se utilizam dos processos judiciais para controle e coerção de vítimas de violência doméstica, sendo imprescindível a utilização de todas as ferramentas disponíveis visando a eliminação da violência de gênero nos processos judiciais, garantindo o acesso à justiça às mulheres, sob as lentes de gênero.

 


[1] WARD, David (2016) "In Her Words: Recognizing and Preventing Abusive Litigation Against Domestic Violence Survivors," Seattle Journal for Social Justice: Vol. 14 : Iss. 2 , Article 11, 2016. Disponível em < https://digitalcommons.law.seattleu.edu/sjsj/vol14/iss2/11 > Acesso em 02 de jun. de 2021

[2] Recomenda-se a leitura da cartilha sobre litigância abusiva disponibilizada pela Legal Voice.

Abusive litigation: when your abuser exploits the legal system, 2021. Disponível em < https://www.legalvoice.org/abusive-litigation > Acesso em Acesso em 02 de jun. de 2021

[3] No Brasil, pode-se interpretar como denúncia ao Conselho Tutelar, Juizado da Infância e Juventude ou outros órgãos que visem a proteção da criança.

[4] Disponível em< https://app.leg.wa.gov/RCW/default.aspx?cite=26.51> Acesso em 14/05/2021.

[5] FITCH, Emma, EASTEAL, Patricia. Vexatious litigation in family law and coercive control: Ways to improve legal remedies and better protect the victims, 2017. Disponível em < https://www.researchgate.net/publication/318988044_Vexatious_Litigation_in_Family_Law_and_Coercive_Control_Ways_to_Improve_Legal_Remedies_and_Better_Protect_the_Victims > Acesso em 02 de jun. de 2021

[6] UNWOMEN Progress of the world’s women 2019–2020. Disponível em < https://www.onumulheres.org.br/wp-content/uploads/2019/06/Progress-of-the-worlds-women-2019-2020-en.pdf > Acesso em 02 de jun. de 2021

[7] CAVALCANTI, V.R.S. Violência(s) Sobrepostas: Contextos, tendências e abordagens em um cenário de mudanças In: DIAS, Isabel (Org.). Violência de gênero. Lisboa: Pactor, 2018. p. 97-122.

[8] De acordo com o artigo 7º, II da Lei n°11.340/2006, a violência psicológica é entendida como qualquer conduta que lhe cause dano emocional e diminuição da autoestima ou que lhe prejudique e perturbe o pleno desenvolvimento ou que vise degradar ou controlar suas ações, comportamentos, crenças e decisões, mediante ameaça, constrangimento, humilhação, manipulação, isolamento, vigilância constante, perseguição contumaz, insulto, chantagem, violação de sua intimidade, ridicularização, exploração e limitação do direito de ir e vir ou qualquer outro meio que lhe cause prejuízo à saúde psicológica e à autodeterminação

[9] Segundo o artigo 7º, V da Lei n°11.340/2006, a violência moral é entendida como qualquer conduta que configure calúnia, difamação ou injúria.

[10] Conforme o artigo 7º, IV da Lei n°11.340/2006, a violência patrimonial é entendida como qualquer conduta que configure retenção, subtração, destruição parcial ou total de seus objetos, instrumentos de trabalho, documentos pessoais, bens, valores e direitos ou recursos econômicos, incluindo os destinados a satisfazer suas necessidades

[11] Comitê sobre a Eliminação da Discriminação contra as Mulheres – Recomendação Geral No 33 sobre o acesso das mulheres à justiça. Disponível em < https://www.tjsp.jus.br/Download/Pdf/Comesp/Convencoes/CedawRecomendacaoGeral33.pdf > Acesso em 02 de jun. de 2021

[12] Nesse sentido, é sugerida a leitura dos relatos baseados em experiências pessoais de advogadas que atuam nessa seara.

UOL "Vingativa e rançosa": agressão à mulher se estende a processos de divórcio, 2019. Disponível em < https://www.uol.com.br/universa/noticias/redacao/2019/11/28/violencia-psicologica-em-processos-de-divorcio-o-que-e-litigancia-abusiva.htm > Acesso em 02 de jun. de 2021

REGIS, Mariana. Litigância abusiva: quando o processo judicial reforça a violência contra a mulher, 2018. Disponível em < https://marianaregisadv.jusbrasil.com.br/artigos/647608325/litigancia-abusiva-quando-o-processo-judicial-reforca-a-violencia-contra-a-mulher > Acesso em 02 de jun. de 2021

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  • Brave

    é advogada, professora de Direito Civil de graduação e pós graduação, especialista em Direito Civil pela Faculdade Baiana de Direito, mestra em Família na Sociedade Contemporânea pela Universidade Católica do Salvador, doutoranda em direito pela Universidade Federal da Bahia, presidente da Comissão de Direito Internacional do IBDFAM/BA, integrante do projeto EcoWomen, vice-líder do subgrupo de pesquisa Direito Civil e Feminismos (DCFEM/UFBA), conselheira executiva da Revista Conversas Civilísticas (UFBA).

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