Opinião

Precisamos do duty of disclosure do MP:
O caso do advogado Vargas

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4 de junho de 2021, 15h27

Não nos impressionemos com o título com palavras em inglês. É uma coisa simples, como explicarei. É o dever de mostrar, colocar na mesa, comunicar o que o Ministério Público tem de provas contra o réu.

Spacca
Recentemente a ConJur publicou reportagem intitulada "Advogado diz que MP ocultou provas da inocência de ativista no sul no Pará". O ativista em questão também é advogado, milita especialmente na defesa de camponeses e indígenas na região sul do Pará e atuou, dentre outros casos, no episódio que ficou internacionalmente conhecido como "massacre de Pau D'Arco", quando dez camponeses foram executados por forças das polícias civil e militar do estado do Pará.

Tendo como supostas provas diálogos por WhatsApp com um então colega de escritório, o advogado foi preso acusado de ter participado do homicídio de um candidato a vereador. Em reportagem mais recente da ConJur, o advogado de defesa afirma que os mesmos diálogos são suficientes para inocentar o ativista. Isso porque, segundo o causídico, no pedido de prisão e denúncia, o MP utilizou 12 mensagens descontextualizadas de um total de 567 mensagens em que os colegas de escritório trataram do desaparecimento do candidato a vereador.

Se non è vero, è ben trovato. Esse é o busílis. Isso tem que ser investigado. A fundo. Observemos: mais do que a ocultação da íntegra dos diálogos pelo MP, a defesa do advogado reclama das dificuldades impostas para que tivessem acesso a tais diálogos, o que só ocorreu 113 dias após a prisão do defensor de direitos humanos. Preocupa o silêncio eloquente do Ministério Público sobre isso. E da própria imprensa, que rapidamente esquece das coisas.

Veja-se. Não faz muito, publiquei aqui na ConJur texto intitulado "Procuradores dizem: Sim, nós mentimos!", sobre caso ocorrido nos Estados Unidos. Trata-se do dever de disclosure ("duty to disclose a…"), que consiste, como assinalei no início, no dever institucional e funcional de apresentar todas as evidências, inclusive àquelas favoráveis à defesa. Isso consta não somente da jurisprudência dos EUA, como também no Estatuto de Roma, no Código de Processo Penal alemão e em outros ordenamentos.

No Brasil, infelizmente ainda não temos consolidado o dever de disclose e, se essa é uma discussão sempre oportuna, ganha maior relevo com o debate do novo Código de Processo Penal, tendo sido a primeira de diversas sugestões para o novo Código que publiquei recentemente em artigo aqui na ConJur.

Sendo o Código de Processo Penal o modo de fazer concretizar o devido processo legal na seara criminal e sendo este o direito fundamental que visa a resguardar e assegurar os demais direitos e garantias fundamentais, por óbvio o devido processo legal deve ser utilizado em favor do acusado e não do Estado, já que os direitos fundamentais são oponíveis pelo cidadão face do Estado justamente para combater o arbítrio desse.

Com um Código de Processo Penal que nasce sob a égide de um Constituição Democrática, é chegada a hora de colocar fim a alguns instrumentos que existem justamente para permitir o arbítrio do Estado, a exemplo da norma de que "não há nulidade sem prejuízo", como se a violação ao rito processual não carregasse em si um prejuízo intrínseco e evidente; e ao mesmo tempo deve o novo diploma normativo criar instrumentos para resguardar os direitos fundamentais dos réus, como o dever de disclose. O Ministério Público deve assumir o seu papel constitucional de "fiscal da lei" e abominar seu papel inquisitorial de "escritório de acusação". Um bom exemplo de como o MP não deve agir é o caso denunciado pela juíza Alice Nathan, de Manhatan, e do filme Luta por Justiça, em que o advogado Stevenson consegue demonstrar no Tribunal que o promotor agira sem disclosure.

No caso da prisão do advogado Vargas, a denúncia lhe imputa o crime de homicídio — mas sequer narra o fato (quanto mais um fato típico) — e não diz como a sua conduta se amolda aos crimes que lhe são imputados — ineficiência infelizmente comum em muitas peças acusatórias em um processo penal por vezes mais estratégico do que técnico-penal.

Mas em relação ao dever de disclose, causa estranheza não só o fato de a autoridade ministerial ter deixado de trazer à lume a quase integralidade dos diálogos, como também as dificuldades impostas para que o defensor tivesse acesso a essa prova. Fosse nos EUA, o precedente Brady v. Maryland resolveria isso em um par de minutos. Nesse caso, por se tratar de diálogos pessoais do próprio réu, este sabia da existência da prova. Mas e se essa prova fosse completamente estranha ao réu? Se ela tivesse sido produzida pela autoridade investigativa sem que dela o réu tomasse conhecimento? Com a inexistência do dever de disclose, como o réu reverteria o prejuízo que injustamente o incrimina? Sim, porque, por saber da existência da prova, já na audiência de custódia a defesa começa a reclamar a integralidade dos diálogos, e a própria magistrada afirma que as mensagens, utilizadas pelo MP para postular a prisão do paciente não faziam parte do processo. Muito estranho isso, pois não?

Há, pois, uma porção de pontos obscuros que devem ser esclarecidos, a começar pelo fato de todos os diálogos não virem à tona, conforme alegam os defensores do advogado Vargas.

Portanto, em termos processuais e de paridade de armas, é: por que o "sistema processual brasileiro" permite que a polícia e o MP mostrem apenas as provas contra o réu e deixem de apresentar eventuais elementos que desincriminem o acusado? É disso que se trata. É sobre a pergunta fundamental: o sistema acusatório é um sistema que se quer acusatório também "na coisa" e não só "no nome"? Estamos prontos para sermos aquilo que anunciamos que somos? Crise existencial no país. O Direito no divã.

O que parece mais é que a seletividade dos agentes do sistema penal sistematicamente produzida para criminalizar determinados extratos da sociedade — segundo critérios de classe social, etnia etc. — coloca em seu radar agora aqueles que se opõem a essa seletividade e são vistos como detratores das forças de segurança do Estado.

Daí a indispensabilidade do dever de disclose. Urgente. Além do dever de disclose, o novo Código de Processo Penal deve pensar também instrumentos de accountability, ou seja, que cuidem da responsabilização de quem não cumprir o dever funcional; do contrário, o agir segundo a prescrição normativa será uma sempre uma obrigação moral e não legal.

Veja-se também o problema sistêmico (e porque não, paradoxal): se a defesa exige como foi o caso que todas as provas sejam apresentadas (por exemplo, mensagens captadas), corre o risco de ser acusada de "tumultuar o processo" e "agir de má-fé" por insistir na juntada e acesso a todas as provas já produzidas, situação revertida apenas no Supremo Tribunal Federal quando, em reclamação pelo cumprimento da Súmula Vinculante 14, o ministro Edson Fachin reconheceu que: "não cabe ao magistrado censurar ou protelar, aprioristicamente, a acesso a material já documentado, sob a justificativa de que seria 'desnecessária' sua utilização no atual momento processual. A opção de utilizar ou não, e em que momento utilizar, os elementos de prova existentes é exclusiva das partes". Observemos: a defesa teve que ir ao STF.

No caso de Vargas, cabe registrar que, além de diversas organizações nacionais e internacionais, a própria ONU passou a acompanhar a investigação e persecução criminal que se desenrola contra o defensor de direitos humanos; se por um lado é positivo termos observadores externos acompanhando a atuação do Estado, por outro, melhor seria que não pairasse dúvida sobre a legitimidade das ações e decisões do Estado.  

Numa palavra final, uma reflexão final, volto exatamente ao começo do texto. Ao título. O fato de o título ser em inglês não é cabotinismo deste escriba. Mas é um sintoma de uma doença da qual este texto também é um sintoma: exatamente a falta desse padrão enraizado no Brasil. Ora, por que é que eu tive de escrever o disclosure em inglês? Porque não há disclosure no Brasil. Bingo. E isso é mais que um jogo idiomático.

E é triste. Porque estamos falando de um cenário em que é revolucionário cobrar que um Ministério Público instituição de Estado na qual militei, com muita honra, por quase três décadas, que possui garantias de magistratura não faça agir estratégico. E que se comporte como uma magistratura. Estamos em um país no qual sou quase um outsider, um estrangeiro na própria terra, por pedir que o Ministério Público aja como Ministério Público. Que diga a que vem, por que vem e como vem. Não há democracia possível sem "como", sem "por que". Essa é a grande questão.

Minha luta é pelo dia em que eu possa escrever na ConJur um texto sobre disclosure sem precisar falar em "disclosure". Ou melhor: minha luta é pelo dia em que eu possa escrever sobre outro assunto.

Até lá, lutamos para falar português. Por uma justiça que, em uma república, seja pública e republicana.

Não é só na Inglaterra dos 1600 que o republicanismo soa revolucionário, afinal…

Simples assim. Ou extremamente complexo assim.

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