Opinião

Processos estruturais e o trunfo do ativismo judicial no Brasil

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4 de junho de 2021, 6h38

Em discussões sobre a validade ou a legitimidade de uma decisão judicial, tão logo um dos debatedores consiga enquadrá-la como ativista, muitos dão a questão por encerrada como se, na essência da palavra ativismo, estivesse presente a própria inconstitucionalidade [1]. Nesses casos, o adjetivo "ativista" funciona como um trunfo argumentativo, superando os demais argumentos que possam ser utilizados para defendê-la.

Em outra oportunidade, discutimos o mito do "juiz Hércules" no processo estrutural [2]. Em que pese o enfoque do texto ter sido o de desmistificar o papel quase que impossível de ser desempenhado por um magistrado nesse tipo de processo e de ressaltar a importância dos diálogos institucionais, pouco debatemos acerca do "ativismo judicial" em si. Destacamos, entretanto, que usualmente as críticas nesse sentido são pouco científicas e acabam adentrando no campo da abstração, por denunciarem, simplesmente, a opinião do observador em relação a um juiz, a um tribunal ou a uma decisão do qual ele discorda.

Os professores Diego Werneck, Fabiana Luci e Leandro Ribeiro, em 2012, já apontavam a multiplicidade de definições que o termo assume, mapeando três sentidos em que, frequentemente, é utilizado na mídia brasileira, quais sejam:
a) ativismo como engajamento político e social;
b) ativismo como usurpação de poder;
c) ativismo judicial como "ocupação de vácuo de poder" [3].

O primeiro diz respeito a um maior engajamento político e social dos juízes, em oposição a uma postura mais conservadora e tradicionalista, que seria típica da função judicante do Estado, de modo que ao juiz caberia tão somente a aplicação da lei de forma imparcial e neutra, sem levar em consideração fatores além dos estritamente legais.

O segundo sentido, por sua vez, assume uma conotação negativa e define o ativismo como uma espécie de falta de legitimidade e respaldo constitucional do Poder Judiciário para decidir questões que, originariamente, são da competência de outros poderes, e de invalidar decisões tomadas pelos poderes eleitos.

Por fim, a terceira hipótese compreende o ativismo judicial como um modo de preencher um vácuo de poder deixado pelas instâncias majoritárias (sobretudo pelo Poder Legislativo).

O que esse trabalho demonstra é que não existe um parâmetro ou um "denominador comum" para categorizar um juiz, um tribunal ou uma decisão enquanto "ativista"; afinal, de uma perspectiva objetiva, o seu conceito ainda continua em aberto e em constante (des)construção.

O que é certo é que a expressão, para que seja estudada com seriedade e cientificidade pelo Direito, precisa ser compreendida em toda a sua complexidade e multidimensionalidade [4]. É preciso entender que o ativismo é um fenômeno — acarretado, sobretudo, por fatores políticos, econômicos e sociais, e não por um novo papel que o Poder Judiciário decidiu assumir "da noite para o dia" —, e não um argumento de ilegitimidade à disposição do crítico. Um juiz, por exemplo, não pode ser "ativista" simplesmente por decidir contra a opinião de um determinado observador.

Dessa forma, parece mais adequado adotar um conceito mais amplo de ativismo judicial, o qual é defendido por Campos [5]: podem ser assim adjetivadas as decisões que manifestam uma autoexpansão do papel político-institucional do Judiciário em face dos outros Poderes. Se essa é uma expansão constitucional ou não, dependererá do contexto no qual a decisão foi proferida. O autor também afirma que "(…) o ativismo judicial não pode ser considerado aprioristicamente ilegítimo, pois isso depende dos diferentes fatores envolvidos e da dimensão decisória manifestada" [6], de maneira que apenas a dimensão antidialógica, constituída por uma supremacia judicial e uma recusa a dialogar com os outros Poderes, deve ser tida como manifestação judicial ilegítima.

E aqui chegamos aos processos estruturais. Para a surpresa de alguns, que acusam os processos estruturais de instrumento de solipsismo judicial [7], essas demandas têm sido caracterizadas exatamente pela atuação dialógica do Judiciário. Dois exemplos recentes ilustram bem o ponto.

No julgamento de medida cautelar na ADPF 709, que trata das omissões da União na proteção das comunidades indígenas durante a pandemia de Covid-19, o relator, ministro Luís Roberto Barroso, fixou algumas medidas para a proteção dos grupos indígenas: criação de sala de situação para gestão de ações de combate à pandemia quanto aos povos em isolamento; necessidade de elaboração e monitoramento de um Plano de Enfrentamento da Covid-19 para os povos indígenas, com a participação do Conselho Nacional de Direitos Humanos (CNDH) e de representantes das comunidades indígenas. Além disso, a Fundação Osvaldo Cruz e o Grupo de Trabalho de Saúde Indígena da Associação Brasileira de Saúde Coletiva (Abrasco) deveriam fornecer o apoio técnico necessário à elaboração do Plano [8]. Tanto o plano de ação como o seu monitoramento deveriam ser construídos pela União, em parceria com as entidades competentes e com o grupo afetado. Não seria, portanto, fruto de um solipsismo do juiz.

Outro exemplo de ação estrutural de caráter dialógico é a ADPF 635 [9], conhecida como "ADPF das favelas", que questiona o quadro de constante violência policial nas favelas do Rio de Janeiro. A ação possibilitou uma audiência pública histórica, nos dias 16 e 19 de abril deste ano, com participações de representantes de movimentos sociais, organizações e entidades relacionadas aos direitos humanos e às vítimas de violência do Estado.

Logo, devem-se afastar eventuais preconceitos e antipatias em relação ao ativismo judicial dialógico [10], visto que essa postura intenta justamente mitigar as principais críticas feitas às condutas excessivamente proativas do Judiciário. As decisões dialógicas definem, assim, as metas e os caminhos para a implementação de políticas públicas, acompanhando o progresso do cumprimento das decisões e deixando as escolhas mais importantes para as agências governamentais [11]. O foco seria construir um diálogo institucional para que os entes estatais responsáveis atuem conforme as suas atribuições típicas, construindo soluções adequadas dentro de suas esferas de competência [12].

Antes de utilizar o adjetivo "ativismo judicial" como trunfo para encerrar um debate, os críticos dos processos estruturais deveriam se preocupar em responder algumas questões: Ele foi ativista por quê? Sobre qual dimensão do ativismo judicial está a se falar? Essa dimensão é, a priori, ilegítima? Como e por qual via o grupo vulnerável pode, efetivamente, obter a proteção aos direitos fundamentais violados pelo Executivo e pelo Legislativo? Sem responder a essas perguntas, a repetição da palavra ativismo será insuficiente para afastar a necessidade de um processo estrutural.

 


[1] KLARE, Karl. Criticial perspectives on social and economic rights, democracy and separation of powers. In: GARCÍA, Helena Alviar; KLARE, Karl; WILLIAMS, Lucy A. (Ed.). Social and Economic Rights in Theory and Practice: Critical Inquiries. Nova York: Routledge Research In Human Rights Law, 2014. p. 3-22, p. 5.

[2] FRANÇA, Eduarda Peixoto da Cunha; SERAFIM, Matheus Casimiro Gomes. O mito do "juiz Hércules" no processo estrutural. 2021. Disponível em: https://www.conjur.com.br/2021-mai-25/franca-serafim-mito-juiz-hercules-processo-estrutural. Acesso em: 25 maio 2021.

[3] Diego Werneck; OLIVEIRA, Fabiana Luci; RIBEIRO, Leandro Molhano. Ativismo judicial e seus usos na mídia brasileira. Revista Direito, Estado e Sociedade, nº 40, 2014, p.50.

[4] Alguns juristas brasileiros destacaram, em suas obras, as dimensões do ativismo judicial. Nesse sentido, ver: CAMPOS, Carlos Alexandre de Azevedo. Dimensões do Ativismo Judicial do STF. Rio de Janeiro: Forense, 2014; LIMA, Flávia Danielle Santiago Lima. Jurisdição constitucional e política: ativismo e autocontenção no STF. Curitiba: Juruá, 2014.

[5] CAMPOS, Carlos Alexandre de Azevedo. Dimensões do Ativismo Judicial do STF. Rio de Janeiro: Forense, 2014. p. 347.

[6] CAMPOS, Carlos Alexandre de Azevedo. Estado de Coisas Inconstitucional. Salvador: Juspodium, 2016, p. 15.

[7] STRECK, Lenio Luiz. Estado de Coisas Inconstitucional é uma nova forma de ativismo. Revista Consultor Jurídico, v. 24, 2015. Disponível em: https://www.conjur.com.br/2015-out-24/observatorio-constitucional-estado-coisas-inconstitucional-forma-ativismo. Acesso em: 2/6/2020.

[8] BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental nº 709. Decisão monocrática sobre os pedidos cautelares. Relator: Ministro Luís Roberto Barroso. Diário Oficial da União. Brasília, 2020. p. 33-35. Disponível em: http://portal.stf.jus.br/processos/downloadPeca.asp?id=15343710124&ext=.pdf. Acesso em: 31/10/2020.

[9] BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental nº 635. Relator: Ministro Edson Fachinº. Diário Oficial da União. Brasília, 2019. Disponível em: https://portal.stf.jus.br/processos/detalhe.asp?incidente=5816502. Acesso em: 27/5/2021.

[10] LIMA, Flavia Danielle Santiago; FRANÇA, Eduarda Peixoto da Cunha. Ativismo dialógico x bloqueios institucionais: limites e possibilidades do controle jurisdicional de políticas públicas a partir da Sentencia T-025/04 da Corte Colombiana. Argumenta Journal Law, nº 31, p. 209-243, jul./dez., 2019, p.212.

[11] CHAGAS, Tayná Tavares das et al. Estado de coisas inconstitucional: um estudo sobre os casos colombiano e brasileiro. Revista Quaestio Iuris, [s.l.], v. 8, nº 4, p.2.596-2.612, p. 2.206, 26 dez. 2015.

[12] SERAFIM, Matheus Casimiro Gomes; ALBUQUERQUE, Felipe Braga. A desencriptação do poder pelos processos estruturais: uma análise da experiência sul-africana. Revista da Faculdade Mineira de Direito, v. 23, nº 46, p. 299-323, p. 314-315, p. 311-313, p. 317-318, 2020.

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