Opinião

As aventuras da Ancine e sua diretoria na terra do nunca

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4 de junho de 2021, 15h09

Inicialmente, o título deste artigo faz óbvia alusão à peça teatral escrita por James Matthew Barrie e denominada Peter Pan ou The boy who wouldn’t grow up, que se transformou no famoso longa metragem produzido pela Disney conhecido em português como As aventuras de Peter Pan.

Como é cediço, a trama gira em torno de um menino que se recusou a crescer e que mora junto com os demais garotos perdidos na ilha fictícia denominada "Terra do Nunca", que é uma metáfora ao comportamento eternamente infantil, a imortalidade (porque se as crianças não crescem, elas são imortais) e o escapismo. E esses três conceitos serão fundamentais para se compreender este texto.

No artigo anteriormente publicado na ConJur em 8 de dezembro de 2020 denominado "A diretoria da Ancine e a Nova Roupa do Rei" foi demonstrado que, além do diretor presidente-substituto estar exercendo na época o mandato anual de presidente vencido, os demais diretores substitutos encontravam-se em situação irregular por desrespeitar o disposto no artigo 10, parágrafo 7º, da lei 9.986/2000, segundo o qual o mesmo substituto não exercerá interinamente o cargo por mais de 180 dias contínuos, devendo ser convocado outro substituto, na ordem da lista, caso a vacância ou o impedimento do membro do conselho diretor ou da diretoria colegiada se estenda além desse prazo.

Para contextualizar, no início do ano de 2020 foram nomeados os três diretores substitutos em razão da vacância de três cargos de diretor da Ancine. Porém, o presidente-substituto da agência, que naquela época estava com mandato de substituição da presidência vencido desde 31 de agosto de 2020, reconduziu os mesmos diretores que já estavam na diretoria colegiada, ocupando o cargo em substituição anteriormente. Ou seja, as mesmas pessoas que estavam exercendo as funções havia mais de 180 dias.

Após isso, novamente (e com direito a música no Fantástico porque os diretores substitutos já estão em seu terceiro mandato), como esposado no artigo publicado na revista ConJur em 11 de fevereiro de 2021 denominado "O looping da diretoria Substituta da Ancine e a teoria da Katchanga", em 5 de fevereiro de 2021, por intermédio das Portarias 14-E e 15-E de 1º de fevereiro de 2021, o diretor-presidente substituto, ainda no exercício de seu mandato vencido, reconduziu dois dos diretores substitutos que lá estavam "brincando de dança das cadeiras". Só não reconduziu o terceiro por motivo de renúncia ao cargo.

Para explicar melhor o estratagema, no caso concreto, como uma forma de se ater ao sentido extremamente literal da lei, foi criada uma espécie de dança das cadeiras na qual cada um dos servidores substitutos passava para a vaga de outro. Então, "A", passou a ocupar a vaga de "B", "B" ocupou a de "C" e "C" ocupou a de "A". Havendo, portanto, um verdadeiro "contorno" ao prazo legal de 180 dias.

Agora a situação posta é a seguinte: o mandato de diretor efetivo do ex-presidente substituto findou no dia 14 de maio de 2021 e um novo diretor substituto foi nomeado no dia 12 de maio de 2021 para a cadeira que estava vaga. De conseguinte, por intermédio da mensagem ao Senado Federal MSF 08/2021, expedida em 5 de maio de 2021, o ex-diretor presidente substituto está sendo novamente indicado para ocupar a função de diretor presidente (dessa vez na condição de efetivo e não como substituto). Não obstante o disposto no artigo 6º da Lei  9.986/2000 vedar expressamente a recondução. O que, de fato, com certeza não vale na "Terra do Nunca", pois os mandatos dos diretores são "imortalizados".

Mas não é só!

Além disso, a diretoria colegiada da Ancine, composta atualmente por três diretores substitutos, com mandatos precários de 180 dias (apesar de já termos observado que esse prazo não é válido na "Terra do Nunca", onde se brinca de "dança das cadeiras"), tem uma figura peculiar que diz respeito à autoproclamação como diretor presidente substituto.

Veja-se que a condição tratada nos artigos anteriores observava a hipótese de um diretor efetivo que ocupava as funções de diretor presidente havia mais de um ano e, por isso, estaria vencido. Confira-se o disposto no Anexo ao Decreto 8.283/2014, no Capítulo III, que trata da Direção e Nomeação da Agência nacional do Cinema, pois o artigo 5º, § 2º aduz que "a diretoria Colegiada indicará anualmente um de seus integrantes para assumir a presidência nas ausências eventuais e impedimentos do diretor-presidente, competindo ao ministro de Estado da Cultura submeter a indicação à aprovação do presidente da República".

Mas atualmente, a situação se agrava porque não há qualquer nomeação presidencial. Em comparação com a situação anterior da presidência da agência, fica evidenciado que havia, pelo menos, um ato de nomeação firmada pelo presidente da República, muito embora estivesse vencida. Agora a situação é digna de leading case para se imaginar como esse "escapismo da Terra do Nunca" será validado no mundo real.

E ainda tem mais!

Consoante o disposto no § 7º do artigo 5º da Lei 9.986/2000, somente diretores efetivos podem exercer a função de diretor presidente ou de diretor presidente substituto. E, como vimos, não há um diretor efetivo devidamente nomeado na Agência Nacional do Cinema.

Frise-se que os diretores substitutos de diretores efetivos são ventilados na lei para serem adotados em períodos curtos e bem esporádicos, não podendo se tornar a regra. Contudo, pela lei, um substituto não pode ser diretor presidente (titular ou substituto), e, ainda pior, sem um ato formal de designação. Confira-se:

"Artigo 5º — O presidente, diretor-presidente ou diretor-Geral (CD I) e os demais membros do Conselho diretor ou da diretoria Colegiada (CD II) serão brasileiros, indicados pelo presidente da República e por ele nomeados, após aprovação pelo Senado Federal, nos termos da alínea "f" do inciso III do artigo52 da Constituição Federal, entre cidadãos de reputação ilibada e de notório conhecimento no campo de sua especialidade, devendo ser atendidos 1 (um) dos requisitos das alíneas "a", "b" e "c" do inciso I e, cumulativamente, o inciso II:
(…)

§7º Ocorrendo vacância no cargo de presidente, diretor-presidente, diretor-Geral, diretor ou Conselheiro no curso do mandato, este será completado por sucessor investido na forma prevista no caput e exercido pelo prazo remanescente, admitida a recondução se tal prazo for igual ou inferior a dois anos" (Incluído pela Lei nº 13.848, de 2019) (grifos nossos).

Diante disso, fica claro que, pela lei, ainda que houvesse nomeação presidencial, haveria um óbice legal para que o diretor autointitulado presidente se tornasse, de fato, diretor presidente sem ter sido previamente sabatinado e, eventualmente, aprovado pelo Senado Federal.

Mas tudo é possível na Terra do Nunca… Já dizia Peter Pan: "no momento em que você duvida que pode voar, você deixa de ser capaz de voar para sempre".

Autores

  • é professor de Direito Regulatório na Pós Graduação da Facha, professor de Instituições de Direito Público e Privado da FTESM, especialista em Regulação da Agência Nacional do Cinema (Ancine) e mestrando em Finanças, Tributação e Desenvolvimento pela UERJ.

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